segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Notas Marginais IV

UMA ANTOLOGIA DO CANGAÇO

Publicada em São Paulo, pela Escrituras Editora, a antologia poética O cangaço na poesia brasileira. A organização é do escritor pernambucano Carlos Newton Júnior, que fez um trabalho de alta garimpagem no que se poetizou sobre o assunto. Mesmo que Lampião seja o cangaceiro mais lembrado pelos poetas, há poemas sobre Antônio Silvino, Corisco e Jesuíno Brilhante que, ao lado de outros menos representativos, compõem o romanceiro deste ciclo de violência sertaneja.
O ciclo épico dos cangaceiros nas primeiras décadas do século 20 realizava-se no estigma aventureiro de homens transitando desabridos e solitários, ainda quando em bando, circulando a pé ou a cavalo pelas terras sertanejas desoladas na sua imensidão e miséria. A caatinga eleita como palco incendido de balas de rifles e fuzis, recortada pelas lâminas de sabres e punhais, se insurgindo como reinado sombrio de noites propícias a emboscadas, ataques e traições. Uma ambiência revelada nos meandros naturais de vales, rios e lajedos em estágio primário, ao mesmo tempo letárgica e brutal.
Na coletânea aparecem 35 poetas eruditos, com apenas quatro não-nordestinos: Murilo Mendes, Maria José de Carvalho, Walmir Ayala e Alexei Bueno. Os contemplados participam com um ou mais de um poema, sendo o esforço criterioso de seleção e escolha o único norteador da unidade temática alcançada. Tanto pode ser conferido, em versão de poesia culta, o folheto de cordel, como as formas reelaboradas do quadrão e do martelo. Há outras estruturas vérsicas como o soneto decassilábico e o poema curto sem definição estrófica, podendo constatar-se também certo equilíbrio na incidência de versos rimados e brancos.
Um poema algo espacializado de José Nêumanne Pinto tem como motivação o cinema de Glauber Rocha, um de Jorge de Lima convoca Marcel Proust a sair dos salões parisienses e vir conhecer o sertão e um de Ascenso Ferreira canta o misticismo cruel dos “guerreiros” Cabeleira, Conselheiro, Tempestade e Lampião, “que já nascem feitos”. O gaúcho Walmir Ayala participa com o único texto ilustrado da coletânea, glosando xilogravuras de José Altino. Não se encontrarão na obra as vertentes populares do cordel e do repente, praticadas pelos poetas profissionais desses ramos, embora ninguém possa negar a grande contribuição dada por eles ao tema.
Três mulheres participam do livro, e o que é digno de nota, com poemas longos ou tendendo para o longo. A paulista Maria José de Carvalho, com fragmentos do seu texto Romance de Lampião, a baiana Myriam Fraga, com o poema “Maria Bonita”, além de Janice Japiassu, que já deu mostras de sua inclinação para a poesia de feitio rural. Janice Japiassu estabelece comparações entre Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, entre a agilidade feroz e traiçoeira de um e o olho cego do outro, que valia por dois e iluminava a caatinga com os gritos guerreiros seguidos do clarão dos estampidos, como nesta passagem: “Silvino, o temido/ De punhal ligeiro/ De esperança morta/ E fogo certeiro// Lampião, o louco/ Desacorrentado/ Um olho de tigre/ O outro de espasmo”.
As opiniões ainda hoje se dividem, principalmente quando se atenta para o fato do que representou o cangaço, em sua voga violenta, para as populações do interior nordestino e para o poder público e privado. Para uns, Lampião aflora como um herói que suplanta todas as atrocidades conhecidas ou apenas imaginadas que cometeu. Para outros, não mais que um facínora alucinado. Tal duplicação mítica de Lampião tem sido responsável por distorções e confusões na análise do cangaço, que se expande desde a vingança familiar e a luta localista, até se converter na guerra sem tréguas contra todo o poder instituído na região nordestina (com exceção do fogo amigo dos religiosos e coiteiros), mobilizando forças políticas de boa parte do país. Acossado e duramente perseguido, Lampião esteve sempre a padecer, como escreveu Carlos Pena Filho, de uma sina anunciada em que “A morte será tão grande/ que até mesmo a solidão/ que há tantos anos te habita/ será cortada a facão”.
Na antologia, poetas consagrados convivem com poetas pouco conhecidos, formando uma tessitura em que o que está em jogo e passa a prevalecer é a qualidade individual dos trabalhos, agora expostos à leitura pública e extensiva. O que vale, para a eficácia da reunião, é exatamente a compulsão de cada poeta em expressar o que o emocionou, espantou ou instigou ao ponto de não poder deixar de registrar em poesia a sua visão sobre a saga e o fenômeno do cangaço.


RETRATO DO BRASIL

A revista Retrato do Brasil de outubro deste ano traz um artigo esclarecedor sobre Emily Dickinson, “Emily entre nós”, de Antônio Carlos Queiroz. Na fronteira entre o biográfico e o analítico, o ensaísta empreende o levantamento crítico de algumas traduções de poemas de Dickinson feitas no Brasil. Do ponto de vista fonético, mostra sutis diferenças entre o original e o traduzido, onde às vezes o emprego de uma única palavra pode definir todo o ritmo e alcance do poema, para melhor ou para pior. Queiroz não teme a profundidade interpretativa numa resenha para uma revista mais inclinada à política, à economia, ao jornalismo investigativo e científico. Mas, no quesito cultura, a revista acerta em cheio com esse artigo. Confira-se um trecho que ajuda a compreender os propósitos do autor: “A ironia e a transgressão dos valores de sua época e sociedade são elementos centrais na arte de Emily Dickinson, muito estudada, mas ainda pouco compreendida. No Brasil, é auspicioso o crescimento da fortuna crítica da poeta, muito embora haja mais fortuna do que crítica. Há falta de debate, motivada – quem sabe? – pelo receio da polêmica. Seria útil questionar, por exemplo, a qualidade de nossas traduções, que, por leitura equivocada dos originais, às vezes tornam a versão em português mais difícil do que em inglês.” E arremata com a solução lexical e semântica para um poema traduzido por Augusto de Campos, demonstrada concretamente no texto, afirmando ainda que “esse tipo de exercício contribuiria sobremaneira para a melhor apreciação da grande poeta norte-americana”.


RECORTES

Guardo numerosos recortes de jornais e revistas. Muita coisa se perdeu no tempo e em mudanças sucessivas de casas, pensões, hotéis e apartamentos. Uma perda que lamento, ainda hoje, foi a da coleção do jornal Versus, da esquerda internacional. Trazia contribuições de jornalistas e escritores de vários países, além de abrir espaço para contos, poemas, pequenos textos biográficos e relatos gerais da resistência latino-americana e das colônias sob o jugo português. Preservo, mesmo assim, recortes de poemas meus publicados em jornais de Minas Gerais, Goiás e Pernambuco.


OS AMANTES DESCOBREM SEU ÓCIO

Os amantes descobrem seu ócio
entre orgasmo, prazer, alegria.

Só muitos poetas não vemos
descobrir neste tempo a poesia.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Notas Marginais III

FLIPORTO

O Jornal do Commercio veiculou,no Caderno C, no dia 05/11/2009, a matéria "Começa a festa em Porto", da qual destaco trecho que fala dos lançamentos a serem realizados em Porto de Galinhas: "É natural que um evento como a Fliporto promova um agendamento de lançamentos e relançamentos. Selecionamos aqui as principais sessões de autógrafos da festa, que acontece no Pavilhão do Centro de Convenções 2 do Hotel Armação. Além de realizar a conferência de abertura da Fliporto, o uruguaio Eduardo Galeano autografa logo mais, às 19h30, Espelhos – Uma história quase universal. O autor conta a (sua) história da humanidade para além da biografia de grandes reis – o que importa aqui é o drama de subalternos e esquecidos. O lado B do que entendemos por história.
Com edição de bolso (formato no qual a Cepe Editora tem, com razão, apostado suas fichas), Luiz Arraes lança nesta quinta, às 11h, A noite sem sol. Suas histórias são permeadas por ótimos desenhos de Renata Cadena e trazem preocupações que se dividem entre o filosófico e o social, pedindo sempre a participação do leitor. “Nos contos que escreve, Luiz Arraes adota dois elementos que o circunscrevem no rol dos contistas mais modernos: a brevidade de uma leitura que não expurga a forma e ‘aquela intensidade como acontecimento puro’, de que trata Julio Cortázar no ensaio sobre Poe”, destaca a orelha do poeta Everardo Norões.
Ainda nesta sexta, o crítico literário Luiz Carlos Monteiro autografa, às 18h, o seu novíssimo Musa fragmentada. A obra traz um estudo da poética de Carlos Pena Filho. O autor procura redimensionar a importância do poeta do azul: “Apesar da obra de dimensão reduzida, Carlos Pena Filho destaca-se como um dos poetas mais vigorosos da década de 50, ombreando-se a poetas locais de repercussão nacional como João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo, Mauro Mota e Ascenso Ferreira”.
No sábado, o português José Luís Peixoto aproveita, às 17h, para lançar a novíssima edição brasileira do seu segundo romance Uma casa na escuridão. O público brasileiro já conhecia o autor pelo elogiado romance Nenhum olhar, uma espécie de bestiário fantástico pelo interior de Portugal. Nesse lançamento, JLP faz uma espécie de livro temático de amor, mas de um amor às avessas, mais para o horror que qualquer outro arroubo sentimental. Ainda no sábado, às 19h, Raimundo Carrero e Sidney Rocha autografam, respectivamente, Minha alma é irmã de Deus e Matriuska.
Também no sábado, às 19h, Valéria Torres da Costa e Silva autografa o seu estudo A modernidade nos trópicos – Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. O livro traz uma minuciosa leitura do pensamento de Gilberto Freyre nos anos 1920 e 1930, tentando entender como se formou sua obra dali para frente."

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Notas Marginais II

Apresento um trecho do meu livro Para ler Maximiano Campos (Edições Bagaço, 2008), que fala basicamente sobre a faceta de contista do escritor. Neste livro, construí um roteiro sobre a escrita de Maximiano Campos, trazendo a público a análise breve de sua obra, cronologia, iconografia, opiniões sobre sua ficção e recortes de livros seus.


OS CONTOS DE CIDADE E CAMPO

Maximiano Campos publicou, logo depois de Sem lei nem rei, dois livros de contos, As emboscadas da sorte em 1971 e As sentenças do tempo em 1973. Nos contos rurais destes volumes predominam os relatos das vivências que se enraízam fortemente entre a fome e a riqueza, a valentia e o acovardamento, a preguiça e o trabalho. O verde do canavial farto e exuberante contrasta com a exploração secular dos trabalhadores rurais, que vivem e labutam praticamente sob o mesmo regime de política salarial que foi estendido e transferido da Colônia e do Império à República. Representam assim elementos propulsores e motivadores da sua contística a alusão social aos conflitos entre capital e trabalho, as formas precárias de mobilização e persuasão ideológica, os castigos de morte, surra e prisão como consequência das campanhas salariais no campo.
Ao escrever o texto de apresentação da seleta de contos Na estrada, em 2004, Raimundo Carrero alinha Maximiano ao Movimento Armorial: “Por ter uma técnica – o que não significa sofisticação formal – e por não ser apenas regional, no sentido do documento, é que integrou o Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna, que está baseado nos valores culturais e artísticos do Nordeste e não na cópia da realidade”. É certo que, nos seus livros, existem referências temáticas e construção de personagens que lembram instantâneos do romance de Cavalaria, da poesia popular nordestina e do misticismo sertanejo. Pela via dos folguedos populares entranham-se nas narrativas, vestidos a caráter para uma festa da insanidade, os loucos desbaratados, os santos falseados e os foliões inconsequentes. Estas mesmas pessoas do povo que brigam, discutem, deliram e gritam incitadas pelas próprias subcondições de vida e por uma espécie de alegria despojada de pudores e sem artificialismos. Há ainda, os cavaleiros rurais que enlouquecem em consequência dos reflexos da decadência familiar e financeira, lembrando os fidalgos arruinados de todas as épocas, pelas crises econômicas e mudanças políticas e científicas processadas em reinos e repúblicas. Não podem ser esquecidos os cangaceiros, que utilizavam o cavalo, o armamento e a indumentária peculiarmente enfeitada como componentes da função guerreira.
Na sua armadura ficcional de personagens, assumem uma espécie de autonomia fomentada pela verve do seu criador, através da própria fluência da trama em que estão enredados e dos acontecimentos que a circundam. Colocados à deriva pelo contexto político repressor e oscilante em que se abrigam, tanto nos tempos do cangaço quanto em dias mais recentes, por ocasião da vigência do regime militar no Brasil, tais personagens terminam por explodir em revolta ou morrer desprezados e à míngua no meio da rua, no campo, em casa ou na prisão.
O ficcionista descarna vícios mundanos que assolam suas criaturas como o jogo de azar e a prostituição, com a aguardente e o tabaco sendo substitutivos para a fome, além das lendas e fatos da cultura popular onde não deixam de estar presentes os folguedos nordestinos e os versos dos poetas improvisadores da viola, que as revitalizam e divulgam. Os contos que revelam o ludismo infante, a alegoria circense e os excessos da descontração carnavalesca derivam-se da infância de jogos e brincadeiras no engenho (“O menino e o reino”, As emboscadas da sorte) ou da juventude marcada pela boemia e pelos carnavais recifenses, resultando na criação de personagens surreais e fantásticos como um rei negro e mecânico de profissão, um cangaceiro folião mas descendente legítimo de sertanejos e um astronauta pequeno-burguês bêbado e brigão (“O rei, o cangaceiro e o astronauta”, As emboscadas da sorte). Alguns deles não possuem locação determinada, parecendo estar soltos no tempo e no espaço do mesmo modo que seus personagens palhaços, anões, trapezistas. Em “O sonho real” (As sentenças do tempo), o operário negro João se fantasia de rei no carnaval e termina por enlouquecer, ao assumir no real o papel que vivera na folia. Em vários contos de As sentenças do tempo, percebe-se uma inclinação surreal inesquivável, uma forte tendência ao sonho e ao delírio, à entrada no mundo do absurdo.
A sexualidade na ficção de Maximiano Campos faz-se presente como algo a ser vivido entre seres que se atraem natural ou instintivamente, sem nenhum laivo de obscenidade ou espúrios complexos de culpa, como necessidade humana de realização do desejo sexual reprimido ou latente, que urge ser aplacado. O conto “A visita” (As emboscadas da sorte), põe a nu o sexo instintivo do pescador Cícero e da prostituta negra Joana, que aceita deitar-se com ele sem nenhuma paga pelo amor feito. Em “O sonho do rapaz”, também de As emboscadas da sorte, deslinda a iniciação sexual de um jovem do campo com uma “mulher-dama”, além dos meandros do prazer solitário. A narrativa “O escorpião”, de As feras mortas, oscila entre o lírico e o trágico, a sensualidade desenfreada e a solidão anunciada “pelo escorpião venenoso de bote armado”, apesar do alto grau de envolvimento carnal entre os amantes.
Outro lado dessa produção salienta aqueles contos metalingüísticos, ou seja, aqueles textos que questionam a linguagem ficcional dentro da própria narrativa em termos de construção de personagens e enredos, monólogos ou diálogos. E que chamam a atenção para o próprio ato da escrita, sua serventia ou falta de objetivo. Além disso, ele interpreta e analisa nos textos metalingüísticos os autores canônicos do gênero, com Cervantes e Tolstoi sempre reaparecendo. Nos contos de dimensão mais elastecida, a surpresa a cada página ou trecho da narrativa será o melhor elemento. Os dois melhores exemplos de contos mais longos aqui são “Na estrada” (As emboscadas da sorte) e “A vingança” (As sentenças do tempo), dinamizados pelas viagens boiadeiras de Luís Jatinã e Antônio Jesuíno. Em “Na estrada”, Jatinã destaca-se pela persistência humana levada ao limite. Ele é um homem que não quer se entregar nem mesmo diante da morte que o surpreende cavalgando, mas não o faz cair da montaria. Venceu todas as batalhas que encampou como vaqueiro, tendo como recompensa final pelo esforço aplicado e contínuo, a morte traiçoeira a que, por uma postura de apego desarvorado à vida, não se rendeu.
O conto “A vingança”, de andamento circular e de diálogos extremamente rápidos, é a história de um conflito entre Antônio Jesuíno e Ezequiel Mão de Pilão. A cidade de Mimoso, no final do agreste pernambucano, serve como cenário dos acontecimentos fatídicos. Ezequiel matou Rivaldo, irmão mais novo de Antônio, por causa de uma traição conjugal. O fato é que Rivaldo teve encontros amorosos com Luísa, mulher de Ezequiel. São outros personagens ativos na trama o pai de Antônio, que deflagra a ação, quando dá a incumbência a este de vender um gado ao marchante Ezequiel. A mãe, que aconselha o filho a não esmorecer na sua missão e viagem. E Joaquim, um apaixonado por Luísa, que propõe a Antônio uma parceria para darem fim a Ezequiel.
Uma situação de extrema tensão mostra-se como o diálogo de Antônio e Joaquim, ambos na mesa de um bar e cada um portando sorrateiramente armas de fogo. Joaquim é morto por Ezequiel, e este é morto por Antônio. Luísa sobrevive a tudo, e Antônio faz a viagem de volta. Na maior parte do texto, a vingança não fica explicitada, citada ou referida. No entanto, ela está implícita nos gestos e nas falas dos personagens, mesmo quando dizem ou sugerem o contrário. Destacam-se as reflexões irônicas de Antônio, no monólogo desenvolvido paralelamente em todo o episódio, desde os instantes iniciais do conto, quando diz ou pensa “Nós, os da família Jesuíno, nunca fomos vingativos”. Nas suas palavras finais, após concretizar a vingança motivada pela morte do irmão mais novo, Antônio conversa com o pai: “Pronto, pai, vendi o gado; só que não foi Ezequiel quem comprou”. E Antônio continua, refletindo e falando: “Notei certa tristeza no seu olhar. Aí remendei: ‘Defunto não pode comprar gado’. Ele nunca me perguntou nada. Voltei a trabalhar. Já estava com saudade do meu filho, da minha mulher. Minha mãe continua rezando, reza muito.” Antônio intenta convencer a si mesmo de que os seus exercem um tipo de pacifismo que só se emerge em violência quando sumariamente atacados, ao confessar ao seu interlocutor oculto: “Mas, moço, a gente, os Jesuínos, até que somos um povo cordato”.
O humor subterrâneo de Antônio reflete todo o seu esforço e amor pela vida, em contraste com a banalização da morte, pois no meio rural, valendo ainda hoje para certos locais, quem não lava sua honra com sangue não merece respeito. O homem rural esmera-se numa espécie de vingança às avessas contra a própria vida, a sua e a dos outros, contra a sina e o destino que lhe chegam sempre permeados por misérias, atribulações e desencontros. O pretexto do pai de Antônio foi a venda de dez garrotes, mas com um comprador definido, Ezequiel. “A vingança” traz uma grande mobilidade de diálogos e uma construção de personagens e cenários que reafirmam e referendam o inusitado dos acontecimentos, a surpresa permanente e o desvendamento dos fatos, todo este esforço só chegando a seu termo com o desfecho da história.
De As feras mortas, o conto “Noite”, de feição mais urbana, representa um dos trabalhos que se removem entre a recordação e o presente, entre o que aconteceu num passado ainda próximo e a vida vivida no momento em que tudo está acontecendo. Obedece a um ritmo delirante e mistura lembranças da cidade e do campo. Inicia-se com a referência a uma música do argentino Astor Piazzolla e finaliza com uma valsa. A infância, a vida boêmia, o circo, os letreiros luminosos. Também a festa com champanha, muita alegria, mulheres elegantes e refinadas. A visão enviesada dos marginalizados da sociedade, daqueles que vivem impulsionados pela teimosia e a insistência, espremidos nas subcondições das favelas: “Homens, mulheres, crianças e ratos amontoados”. Vinganças e perdões, a espera e a Esperança.
As feras mortas, assim como os livros anteriores do gênero conto, é composto de narrativas rurais e urbanas. A quantidade de textos líricos suplanta os textos de outras tendências e orientações, como os que privilegiam o delírio surrealista, a loucura visionária ou a angústia provocada pelo entrave na escrita. O conto “Perto do fim”, sustentado num lirismo pungente e resignado, sugere a presença inesquivável da morte. O personagem, vivendo um processo de lenta agonia, pede à mulher que conte histórias da juventude de ambos. Enquanto ela vai desfiando um tecido de recordações de um passado feliz e venturoso, ele vai relaxando até que adormece plenamente, sem mais retorno à vida. No balanço que faz, a literatura predomina em detrimento da própria saúde, pois ensaia o término de uma novela, mesmo sem as condições físicas mínimas. Contempla a biblioteca de “mil volumes, [onde] seis eram de sua autoria, romances escritos entre os vinte e os quarenta anos”. A constatação de sua vida se esvaindo, do seu corpo em processo de decomposição pelas dores do coração, emerge-se como um fantasma onipresente e impiedoso: “Ele sabia que estava bem perto do momento final. Breve se fecharia a cortina e para ele desapareceriam o cenário, os atores. A platéia se retiraria deixando o recinto vazio”. Mesmo que aplicado a um alguém inominado, guarda semelhanças, em certos momentos, com a própria jornada do escritor em direção à grande travessia para o desconhecido da morte, e nisto exprime um conteúdo autobiográfico latente.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Notas Marginais I

A INTERNET

A sociedade contemporânea tende a sustentar seus valores, no século 21, através do esforço de uma rede de comunicação intensamente poderosa e eficaz. O complexo da tecnologia da informação distribui-se em numerosas ramificações e polarizações intercontinentais. Os seus modelos culturais diferenciados de produção e consumo situam-se na fronteira estética que delimita o gosto popular e o erudito, e como produtos gerais desta oferta, a informação e o entretenimento ilimitados.



PRAGMATISMO

Tudo é relativamente cíclico, passageiro, eventual. Ninguém permanece para sempre num posto privilegiado, que pode ter vários formatos: desde aqueles de execução implacável, passando pelos de favorecimento político ou de tráfico de influência, aos arrumados em amizade. No âmbito empresarial, os mais competentes e supostamente indispensáveis podem um dia amanhecer sem emprego. Em política, um deslize ou o descontentamento do chefe pode ser fatídico. No caso da amizade, às vezes qualquer arranhão no relacionamento torna duas pessoas antes fraternas, desafetas figadais.



SERTÂNIA

Na extinta Revista da Educação, vol. X, Secretaria do Interior/PE, abr., mai., jun. 1945, encontro os seguintes esclarecimentos sobre a mudança do nome de Alagoa de Baixo para Sertânia: “Alagoa de Baixo, cidade, tomou o nome de Sertânia. Vila por lei provincial nº 1093, de 24 de maio de 1873; cidade por lei estadual nº 991 de 1 de julho de 1909. Sertânia, por solicitação dos habitantes, em virtude de ser a primeira cidade, de leste para oeste, da zona sertaneja”.



INFÂNCIA

Em Sertânia passei toda a minha infância. Viajava constantemente com parentes pelas cidades circunvizinhas. Fui menino solto, tendo direito a tomar banho de poço, rio e açude, caçar e pescar, jogar futebol, andar de bicicleta e patins. Na pré-adolescência, pude peruar sinuca e vagabundear nos bares e cabarés. Passei longas férias em fazendas de familiares, num mundo mais rural ainda, recuperando vivências que me foram tiradas logo após o meu nascimento no sítio Cacimbinha. Não tenho grandes ressentimentos dessa infância, apesar dos extensos bigodes e da severidade de meu pai, da educação extremamente rigorosa e exigente de minha mãe.



ALBERTO LINS CALDAS

Gorgonas (Recife, 2008), do poeta pernambucano Alberto Lins Caldas, é um livro estranho, radical, violento. Exprime a angústia de alguém que jamais se adaptou ao mundo, o descrédito total nos valores humanos. Sua sintaxe subverte o discurso poético com artifícios como cortes vocabulares e supressões morfológicas, utilização diferenciada de signos e sinais de pontuação. Seus poemas são invariavelmente longos, repartidos e subdivididos internamente, numa fragmentação que explicita também o estado íntimo do autor. Como exemplo, destaco este trecho, que é também um poema, do poema “Morto”:


sempre diferente.

sem saber como depois de tantos

inda sou o mesmo.

cada vez mais ignorante.

nunca impostor.

roda viva depois de tanta luta.

sei q nada disso é verdade.

devia ta inchado de vaidade.

mas naum.

fico assim.

cheio de escrupulos y terrores

atribulado de sonhos y martirios

sem ânimos.

nem me iludir posso.

finjo espalhar escuridaum como fingem a luz.

dos bons fasso maus y deles melhores.

todos somem.

eu mesmo ambiciono poder

sempre mais sem fim.

y vivo pobre.

pobre demais.

mais pobre do qeu ta morto

podre de pobre.

cobisso pouco mas muito poder.

qé a unica coisa que vale.

o resto é tolice.

naum espero nada da vida.

igual aos cães da rua.

mas esses esperam

carne osso ou lixo.



GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Em Memória de minhas putas tristes (2006), Gabriel García Márquez mostra o quanto há de incestuoso – e também de isenção induzida de culpa do personagem em relação a si mesmo – no relacionamento entre um homem de noventa anos e uma garota de catorze. Além disso, a mania e o exagero de catalogar, ávida e criteriosamente, mulheres: “Lá pelos meus vinte anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo. Até os cinqüentas anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez.”



ANA CRISTINA CESAR

A bela poetisa carioca Ana Cristina Cesar, nascida em 1952, suicidou-se violentamente com pouco mais de trinta e um anos, em 29 de outubro de 1983. Um suicídio, como se sabe, nunca é explicável de todo. Os argumentos que se apresentam para justificá-lo sempre esbarram na estranheza própria e insólita do gesto e nas aparentes desrazões que o motivaram. Além destes entraves, não se pode mais contar com o único ente que poderia, de alguma forma, dar um testemunho inequívoco e esclarecedor, o suicida.

O que um poeta deixa como herança a quem provisoriamente fica é o brilho ou a falência de seus versos. E nestes, algo de seu espírito, lucidez, racionalidade, ânsias, concepções e idealizações pessoais e de suas vivências mais profundamente arraigadas. Um dos últimos poemas escritos por Ana Cristina Cesar, Contagem regressiva, descarna e põe a nu o sentimento amoroso vivido com uma intensidade altamente dramática e angustiante. O amor, no poema, não se amesquinha e nem se envergonha de sua condição de perda cotidiana e conquista permanente, nem se amofina diante da hipocrisia do senso comum.

Embora o poema afunde-se num tipo de intimismo inflamado e grandemente confessional, algo dele se passa também na velocidade virtual e alucinada do cenário urbano do Rio de Janeiro, ou, de outra maneira, na perigosa calmaria de um apartamento inquietantemente familiar. Os minutos que antecedem um encontro definidor para os amantes, mostram-se tensos, extremados e arrebatadores. Mesmo quando o recurso utilizado para uma possível reconciliação seja o silêncio perscrutador e desolado, quando não mais uma espécie de desespero calmo e contido. Neste poema, o amor não tem nome catalogável ou explícito, e o seu encanto revela-se justamente no fato de não se saber a que ser amado é dedicada uma paixão tão sublime e radical. Neste anonimato, onde desaparece também a noção convencional de sexo, trabalha contra o amor apenas esse tempo retido na mais exigente volição e impulsão do ser que ama.

Há um contraste nítido entre a pressa da viagem paranoica pela grande cidade e a busca do ser amado em sua morada e recolhimento. A resposta para essa busca é a empatia do silêncio tornado comum pelas circunstâncias do encontro doloroso entre os amantes. O silêncio mágico e definitivo que se instaura, desaquece os ímpetos mais fortes ao estabelecer as regras do jogo e o preço inglório de não se saber o que o outro deseja ou pensa. As palavras passam a perder a densidade de sua aura, e a ser momentaneamente desnecessárias e dispensáveis, ensejando assim, no bojo dessa situação conflitante, a sua contagem regressiva.



A ESCRITA

Minha relação pessoal com a escrita literária impulsiona-me mais diretamente à poesia, ao ensaio e à crítica. No caso da prosa de ficção, assumo uma posição que é a do leitor, de um leitor algo especializado, mas que não resume suas leituras apenas à interpretação ou à análise. Se não fosse assim, não praticaria a releitura de textos que um dia me instigaram e comoveram, que me proporcionaram prazer e emoção.



OS MENDIGOS


No Brasil

               até mesmo

                                uma ferida

vira meio de vida.