sexta-feira, 11 de junho de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXIV

RAVELSTEIN
UM LIVRO IRÔNICO E INQUIETANTE

Uma década depois de seu aparecimento, Ravelstein se coloca ainda hoje como livro saudavelmente irônico e inquietante, além de provocante e explosivo. É o último livro de Saul Bellow (1915-2005), judeu americano nascido no Canadá e prêmio Nobel de 1976. Outras obras de Bellow, dentre o seu considerável acervo ficcional de décadas diferentes, como Por um fio, As aventuras de Augie Archer, O planeta do Sr. Sammler e Dezembro fatal despertaram a curiosidade do público americano e europeu pelas verdades do escritor ditas em tom polêmico e desassombrado, sem medo de desagradar a ninguém. Apareciam nas suas páginas referências repetidas das consequências desastrosas da Grande Depressão de 1929 em diante, das duas guerras mundiais e do anti-semitismo massivo e intercontinental, do ceticismo perante a América como a nação mais influente e democrática do planeta em contraponto com a vida miserável da gente esquecida dos guetos, bairros amontoados e similares de favelas tropicais. O mundo da alta cultura e da crítica não poderia desprezá-lo ou ignorá-lo, pois no seu desempenho narrativo encarregava-se de falar em absoluto a seu tempo, sem renegar a sintonia com um passado literário demasiado próximo ou distanciadamente clássico, e sem deixar de projetar e confrontar situações de sua própria época com essa tradição e os dias vindouros.

Judaísmo e guerra, velocidade tecnológica e desmoronamento progressivo do corpo, filosofia grega e gastronomia francesa, música clássica e esportes, compõem um conjunto de assuntos e uma sequência de acontecimentos desenvolvidos em Ravelstein (Rio de Janeiro, Rocco, tradução de Léa Viveiros de Castro). Ravelstein, um conhecido e bem-sucedido professor de filosofia política pede a seu amigo escritor Chick que faça a sua biografia. Ravelstein se encontra à beira da morte, acometido por vários males infecciosos, entre eles AIDS, mas resiste com determinação e coragem enquanto o corpo se decompõe vertiginosamente. O escritor reluta bastante, pois sabe que ao biografar o filósofo estará também retratando a si mesmo, ao considerar que os ligava uma amizade de várias décadas. É aí que reside o viés polêmico do texto: Bellow, identificado como Chick, – e Abe Ravelstein como o filósofo Allan Bloom (1930-1992) – teria cometido exageros no perfil e na visão do amigo. Mesmo que a obra tenha todo um lastro ficcional, a introdução de situações reais e ainda muito recentes da vida de ambos foi contestada, talvez pela maneira extremamente crua, sincera e irônica que Bellow utilizou.

O escritor e o filósofo promovem um duelo intelectual que expõe no limite o que pensam sem escamoteações. São diálogos encetados e construídos com a finalidade de analisar a alma por dentro, o flagrante nem sempre previsível das intrincadas relações humanas, a falta de entusiasmo nas coisas que são feitas como rotina. E também a corrida desabalada das últimas décadas do século 20 em direção a um caos irreversível e às vezes não identificado, ensejando a luta inglória pela sobrevivência entre predadores de todo tipo, o consumismo exacerbado e a indiferença pelo humano e o humanismo, a metafísica cambaleante, cambiante e teimosa por isso viva ainda, a tremenda desesperança dos rostos da maioria desorganizada.

O escritor se manifesta a partir do novelo literário de suas percepções, falhas, defeitos, titubeios, vacilações e acertos. O filósofo a partir do saber acumulado numa inteligência privilegiada volta-se para as causas da loucura do mundo moderno de informatas, burocratas e tecnólogos, estabelecendo a conexão possível entre o mundo antigo e o declinar do século 20. Filósofos gregos são trazidos e retransformados para a atualidade da alta política liberal europeia e norte-americana. Surgem daí reflexões sugestivas e entremeadas sobre Platão, Sócrates, Maquiavel, Rousseau e Keynes. O mundo patriarcal, monoteísta e dominador de Moisés permite que se fale sobre Jerusalém e a longa tradição das Escrituras, sobre a condição dos judeus agora incluídos geopoliticamente em países e continentes, mas ainda com sanções e efeitos restritivos nem sempre explícitos.

Ravelstein, um homem de muitos desafetos intelectuais, era o controlador dos amigos (monitorava os casamentos de Chick), de alunos (incitava-os a afastar-se de suas famílias, a imitá-lo na aparência exterior de ternos, gravatas e sapatos caros) e de quem quer que fizesse parte de suas relações acadêmicas, mundanas ou de amizade. A dependência de Chick relativamente a Ravelstein era apenas aparente e parcial, pois o escritor pensava por si mesmo e uma ou outra vez não desejava contrariar o amigo. Essa suposta humildade de Chick, que defendia a conversa franca entre ambos que nada deveriam esconder um do outro, talvez seja responsável pela extrema acidez e pelo humor constante que destila no perfil traçado, para muitos críticos e colegas do filósofo, incômodo, ao expor pós-morte fatos que não eram de domínio público.

Quando Ravelstein, que sempre gastou mais do que podia, chega a endividar-se sistematicamente, Chick propõe que ele escreva um livro sobre sua experiência acadêmica. A grande semelhança Ravestein-Bloom começa nesse ponto: o filósofo publicou em 1987 O fechamento da mente americana (The closing of the American mind), com prefácio de Bellow, um best-seller contundente, que vendeu milhões de exemplares e o tornou um sujeito rico, podendo transitar sem economizar em lugares luxuosos de Paris, manter um apartamento no mesmo hotel onde estava hospedado Michael Jackson, comprar acessórios pessoais, louça e prataria sem pensar nos seus custos dispendiosos. Os hábitos alimentares de Ravelstein são explicitados numa passagem esclarecedora, num almoço promovido pela esposa do fundador do seu departamento universitário: “Abe Ravelstein, na época um jovem membro do corpo docente, foi convidado para um almoço em homenagem a T. S. Eliot. Marla Glyph disse para Abe Ravelstein quando ele estava indo embora: – Você bebeu do gargalo da sua garrafa de Coca, e T. S. Eliot estava olhando, horrorizado.”

Um tema recorrente nas obras de Bellow, como não poderia deixar de ser, é o papel do nazismo na vida dos judeus, que continua a abrir sequelas quando nele se pensa a fundo. Ravelstein, um ateu liberal e filósofo de algumas ideias próprias, que aprendeu o esotérico em filosofia com seu mestre Leo Strauss (no livro, Davarr) não descarta totalmente o talento de apenas um nome vinculado aos nazistas, o do escritor francês Cèline. Mas a condição judaica de Ravelstein, aliada a uma mente de inteligência poderosa e contestadora, permitiu a exposição de uma visão independente, polêmica e diferenciada que atacava em todos os flancos as feridas recentes das duas guerras, a exclusão judaica de muitas decisões populares e nos altos círculos intelectuais e políticos de países. Essa mesma condição facilitou o envio de torpedos filosóficos e políticos envenenados no rosto sorridente da América do século 20: a falência do sistema educacional norte-americano, a paralisia da juventude entupida de rock’n roll, o engessamento de professores acomodados em sua rotina ideológica de esquerda ou de direita, a defesa intransigente da educação como formação de cabeças e quadros novos para exercer funções importantes nos setores públicos e privados do poder, que contribuíssem efetivamente nas escolhas políticas e econômicas de eventos como negociações envolvendo guerras, conflitos raciais e religiosos, invenções científicas e tecnológicas.

Críticos americanos não conseguiram entender como o filósofo convivia no cotidiano com seu ateísmo militante, seus impulsos conservadores e seu desregramento sexual. No final, ele reconcilia-se com o judaísmo, mas mantém a base pragmática e eclética de sua filosofia e não mais se importa com o risco advindo de parceiros ocasionais de rua. Bloom-Ravelstein afirmava que os seus mentores intelectuais poderiam ser listados rapidamente, mas nada era tão simples assim: Sócrates para o discurso filosófico, Maquiavel para o político, Nietzsche para o niilismo distribuído em modos de concepção diferenciados para americanos, judeus, ingleses, alemães, italianos e franceses, além de Rousseau para instigar o individualismo, a auto-exclusão da maioria como rebanho que não pensa, ou não pensa em termos do bem-pensante filosófico.

Chick adoece ao comer um peixe estragado numa praia caribenha, escapando da morte por pouco. No longo período de convalescença é que decide dar início à escrita de Ravelstein, cumprindo a promessa feita no leito de morte de Abe. Bellow-Chick admirava o raciocínio filosófico radical e a capacidade do amigo em mobilizar grandes plateias na Europa e nos Estados Unidos, para divulgar suas ideias em larga escala, nem sempre aceitas compulsória e compassivamente. Na última frase do livro, “Você não desiste facilmente de uma criatura como Ravelstein em favor da morte”, Bellow reconhece a presença de uma figura excepcional que não se acaba com o corpo. Pensamento e matéria, ideias e necessidades diárias que puderam andar juntas enquanto complementares de um mesmo jogo, se revelam onipresentes na experiência efêmera e dessacralizada da vida em confronto e simbiose com a violência inesperada e pacificadora da morte.

CRÔNICA-POEMA ESPORTIVA DE
PAULO MENDES CAMPOS

O jornalista e escritor mineiro Paulo Mendes Campos (1922-1991), dividia seu tempo entre a crônica, a poesia e a vida boêmia. Era um expert em futebol e em frases espirituosas e bem-humoradas. Ao longo de sua vida teve colunas diversas, fixas ou menos duradouras, em jornais e revistas. Nesta crônica-poema, Paulo Mendes homenageia os jogadores da seleção brasileira de 1962, que ganharam o bicampeonato mundial. Ela compõe o livro O gol é necessário: crônicas esportivas (RJ, Civilização Brasileira, 2009, org. Flávio Pinheiro) e intitula-se 13 maneiras de ver um canário. Dos treze canários que o poeta cantou, dois não eram titulares, Pelé e o homem da rua. Mas gozavam da importância dada aos demais, pela condição de fenômeno de um e pela indispensável torcida do outro. Vamos à crônica-poema:


13 MANEIRAS DE VER UM CANÁRIO

I

Gilmar, quando Deus é servido,
come um frango
psicanalítico
por partida. Depois tranquilo-tranquilo, fecha a porta do inferno.

II

Vê Djalma Santos, indo e vindo, saltando, disparando,
correndo, chutando, cabeceando, apoiando, defendendo,
corrigindo, ajudando às vezes, inexplicavelmente, até sorrindo
em seu combate.
Vê Djalma Santos e reconhece logo:
ele acredita em Deus, é um servo de deus, um lateral direito
de Deus.

III

Mauro afirma em Marden, Samuel Smile, na força da vontade,
na vontade da força, na constância do caráter, na vitória
suprema da coragem, e em todos os sentimentos de aço, que
eu, por exemplo, não li.

IV

Nilton Santos confia na bola; a bola confia em Nilton Santos;
Nilton Santos ama a bola; a bola ama Nilton Santos.
Também nesse clima de devoção mútua não pode haver problema.

V

O povo disse tudo: antes Zózimo do que mal acompanhado.

VI

Zito é mensageiro de dois mundos:
o da vida, na área adversária (onde residem os mistérios gozosos)
e o da morte, na área do coração brasileiro (onde residem os
mistérios dolorosos).
Zito ziguezagueava zunindo para o Norte.
Zito ziguezagueava zunindo para o Sul.

VII

Como o poeta limpando as lentes do verso,
como o microscopista debruçado sobre o câncer,
como o camponês a separar o joio do trigo,
como o compositor a perseguir a melodia,
o futebol de Didi é.
É lento, sofrido, difícil, inspirado, idealista.
Eis um homem que quase achou o que não existe: perfeição.

VIII

É pela cartilha da infância que se joga futebol.
Garrincha vê a ave. Garrincha voa atrás da ave.
A ave voa aonde quer.
Garrincha voa aonde quer atrás da ave.
O voo de Garrincha-ave é a chave,
a única chave.
E um bando de homens se espanta no capim.

IX

Vavá não crê, Vavá confere, Vavá vai ver.
Zagueiro faz escudo das traves da chuteira:
Vavá vai ver.
Goleiro faz maça medieva do osso do joelho:
Vavá (de Pernambuco)
vai ver.
Para o que der e vier, Vavá vai ver.

X

Há uma dramaticidade em Pelé que eu não me consinto adivinhar.
Como Cristóvão Rilke, Pelé tem um canto de amor e de morte.
Como Cristóvão Rilke, Pelé é o porta-estandarte.
Como o de Langeneau, Pelé está no coração das fileiras mas está sozinho.

XI

E eis que um jovem disse: “Quando vinha acaso um leão ou urso e levava um carneiro do meio do rebanho, eu corria após eles e os agarrava e os afogava e matava; o mesmo que fiz a eles, farei a este filisteu.” E foi assim que Davi-Amarildo liquidou Golias-Fúria com duas pedradas de sua funda.

XII

Minuto por minuto, durante 540 minutos, Zagalo cumpriu o seu dever.

XIII

Olhei por fim o XII canário
e era o brasileiro anônimo da rua, do mato, do mar,
o coração batendo, bicampeão do mundo.


O QUE DISSE O ATOR MARCO NANINI
SOBRE O TERMO CELEBRIDADE

Em entrevista recente (Playboy, maio 2010), o ator Marco Nanini (pernambucano do Recife, onde nasceu em 1948), ao afirmar que “celebridade é uma coisa insuportável”, foi instigado a explicar por que. E disparou: “Porque na verdade é um pobre-coitado o cara que se acredita celebridade. É um adjetivo tão vago... Quem disse que você é celebridade? Esse título valoriza demais a vaidade de quem está em foco. Se você acredita muito nesse canto de sereia, isso se reverte contra você. Porque quando você vira uma celebridade, seja em que nível for, isso é uma consequência do que você fez, não é a semente do seu trabalho. E, se você começa a acreditar na consequência, tira o foco do conteúdo do trabalho.”


A FORÇA DA POESIA FESCENINA

Existe uma literatura que não pode aparecer em lugares que exijam certa contenção ou recato, pois o comportamento e a etiqueta de algumas pessoas não aceitam conhecê-la, fazer sua leitura e muito menos ouvi-la. Decerto por isso, o norte-rio-grandense Oswaldo Lamartine de Faria, quando da primeira edição de Uns Fesceninos (Rio de Janeiro, Artenova, 1970), na coleção “Erotika lexicon”, avisava que seu livro era “publicado especialmente para bibliófilos e colecionadores em edição fora de mercado”. As manifestações dessa literatura tanto se veiculam em poesia quanto em prosa, sabendo-se embora que a poesia fescenina tem maior ocorrência do que a segunda, porque a rima é de mais fácil memorização e divulgação.

Um mote bem-sucedido que leva a determinada estrofe fica martelando na cabeça de espectadores ouvintes e poetas que apreciam as diferentes modalidades da poesia popular, estando a poesia fescenina aí incluída. Para que alguém verseje sobre atos cotidianos que desafiem o pudor, que desvelem o escondido da genitália e que exponham situações do ridículo humano, basta que esteja em ambientes coletivos principalmente, na rua ou no bar, na cidade ou no mato, onde quer que ocorram flagrantes que desenredem o novelo popularmente satírico e criativo dessa poesia.

A segunda edição de Uns Fesceninos saiu em 2008 no Recife, pela Bagaço, organizada pelo poeta e professor pernambucano Carlos Newton Júnior. Reproduzida em fac-símile diretamente da primeira, a partir de um exemplar que continha anotações feitas minuciosamente à mão por Oswaldo Lamartine. Envolvendo parte da produção norte-rio-grandense do gênero, deste livro participam 17 poetas com breves contribuições, pequenos poemas quase todos acompanhados de um relato em forma de causo, para ilustrar o acontecimento que deu origem aos versos. O tom é invariavelmente jocoso, gozador, sem papas na língua ou sem peias no lápis de quem os criou.

Os poetas que praticam a poesia fescenina glosam sobre situações as mais inusitadas. Há o caso de um delegado que queria empastelar um jornal interiorano, quando alguém da redação escreveu circunstancialmente num papel qualquer em forma de paródia “Liberdade! Liberdade!/ Onde estás, fela da puta?” O autor do desabafo foi preso pelo delegado da cidade, um sujeito que atendia por Aguiar, e logo após o poeta Damasceno Bezerra cometeu estes versos em cima daquele mote: “Não sei, ao certo, a verdade,/ Do fato como se deu./ Sei que Mesquita escreveu:/ Liberdade! Liberdade!/ E, por infelicidade,/ Um guarda-civil recruta/ Vai entrando, à força bruta,/ Sem nada o interceptar,/ Chamando por Aguiar:/ Onde estás, fela da puta?” A encomenda de um bodegueiro para conter e prevenir os seus devedores resultou na quadrinha de Jayme Wanderley: “Para não haver transtorno/ Aqui neste barracão,/ Só vendo fiado a corno,/ Filho da puta e ladrão.” Os versos anônimos de um ex-detento permitem que ele se vingue impiedosamente do juiz que um dia o condenou. A autoridade funcionava como barbeiro nas horas vagas, mas um barbeiro especial: “Eu afirmo e dou-lhe fé/ com toda convicção:/ Já tem outra profissão/ o juiz de São José./ Tosou Maria José,/ raspou-lhe as beiras da greta,/ por causa dessa faceta,/ é que todo mundo diz,/ que ele, além de juiz,/ é barbeiro de boceta.”

A morte não é levada a sério por alguns poetas. No cotidiano, de resto, pode-se comumente observar pessoas rindo em velórios, bebendo cachaça, fumando e arriscando um namoro. O poeta José Areias, numa roda de cachaça, ouviu de um dos boêmios presentes uma quadra de outro poeta, Américo Falcão: “Não há tristeza no mundo,/ Que se compare à tristeza/ Dos olhos de um moribundo,/ Fitando uma vela acesa”. Areias arrematou com esta quadrinha infame: “Não há tristeza no mundo,/ Que se compare à tristeza/ Do sujeito olhar um fundo,/ Sem ficar de vela acesa”. A última estrofe do soneto “Enterro do pecado”, de Abner de Brito, sugere um rito profano ao comparar o corpo da mulher a um cemitério no qual, numa metafórica sexualizada, será enterrado o pecado: “Abre os teus braços, mata-me desperto,/ Se tens no corpo um cemitério aberto,/ Vamos fazer o enterro do pecado...”.

A condição do pobre, jamais esquecida em poesia, inspirou os versos de Renato Caldas a partir do mote Se merda fosse dinheiro/ Pobre nascia sem cu!: “Talvez não tivesse cheiro,/ Servia de brilhantina./ Ninguém cagava em latrina/ Se merda fosse dinheiro./ Todo mundo era banqueiro!/ Sanitário - era baú,/ Porém aqui no Assu,/ A terra do interesse,/ Se tal coisa acontecesse/ Pobre nascia sem cu...”. O mesmo Renato Caldas, desejando publicar um livro, soube da presença do jornalista Carlos Lacerda em visita ao Rio Grande do Norte, no início da década de 1950. Lacerda estava a promover a campanha contra a seca nordestina “Ajuda teu irmão”, e o poeta aproveitou para sapecar a estrofe: “Seu doutor Carlos Lacerda/ Já que inventou essa merda/ De Ajuda a teu irmão,/ Publique Fulô do Mato,/ Ajude ao velho Renato,/ Poeta lá do sertão...”.

Ainda que seja feita de palavrões, irreverência, sátira e ataque ao duvidoso bom gosto pequeno-burguês, essa poesia continua a transitar de boca em boca, atravessando gerações, cidades e países. Seria difícil alguém imaginar que, por trás da seriedade de um Manuel Bandeira ou de um Carlos Drummond de Andrade, havia os cultores de versos altamente eróticos, sem excluir cargas do obsceno e do pornográfico. Mais recentemente, na obra de um Glauco Mattoso, encontra-se toda uma literatura vinculada ao calão fescenino. Mesmo os que hipocritamente se voltam contra e olham de viés construções desbocadas e chulas, motes lascivos e às vezes impróprios, se tiverem oportunidade, certamente vão conferir e se deleitar sozinhos com o proibido estampado em versos que a musa popular facilitou e ditou aos seus poetas.


A WEB E OS LIVROS

Contrapondo tipos raros de livros e textos ao formato do texto na Web, Alberto Manguel em A biblioteca à noite (SP, Companhia das Letras, 2006, trad. Samuel Titan Jr), argumenta em favor das formas consolidadas e seculares do livro e ataca a compulsão de velocidade que sustenta e caracteriza a Web: “O menor livro do mundo (o Novo Testamento gravado numa tabuleta de cinco milímetros quadrados) ou o códice mais antigo (seis folhas encadernadas de ouro de 24 quilates, escritas em língua etrusca e datadas do século V a.C.) possuem qualidades que não podem ser percebidas apenas por meio das palavras que contêm, e devem ser apreciados em sua presença física plena e única. Na Web, todos os textos têm a mesma forma, convertidos em nada mais senão texto fantasma e imagem fotográfica. Para o usuário da Web, o passado (a tradição que nos levou a nosso presente eletrônico) é irrelevante, uma vez que tudo o que importa já esta ali, à mostra. Comparado a um livro que revela a idade por seu aspecto físico, um texto na tela de computador não tem história. O espaço eletrônico não tem fronteiras. Os sites – essas pátrias autodefinidas – têm seu lugar nesse espaço, mas não o limitam nem o possuem, são como água vertida em água. A Web é quase instantânea, não conhece nenhum tempo senão o pesadelo de um presente constante. Superfície sem volume, presente sem passado, a Web aspira a ser (ou se apresenta como) o lar de todo usuário, onde todos pode se comunicar com todos os outros na velocidade do pensamento. É essa a sua característica principal: velocidade”.


GERALDINO BRASIL: UMA POÉTICA DA HUMILDADE

Sonetos de sol e outros poemas, sexto livro de Geraldino Brasil, pseudônimo literário de Geraldo Lopes Ferreira (1926-1996), foi publicado originalmente no Recife em 1979, numa edição do autor, com impressão executada nas oficinas da Companhia Editora de Pernambuco (CEPE). Na verdade, só chegaria a conhecer o livro em 1982, através do poeta Alberto da Cunha Melo, num encontro informal de poetas no Beco da Fome, após um recital dos poetas independentes, que ocorria sempre aos sábados. O beco ainda existe, está lá nas cercanias da extinta livraria Livro 7 desde o início dos anos 70, só que agora com frequentadores diferenciados dos poetas e escritores de variados matizes que o prestigiavam, dos estudantes e militantes de esquerda oriundos do diretório central que ficava próximo, das menininhas assanhadas e sequiosas de sexo, cerveja e conhecimento do mundo, dos porra-loucas, dos malandros, dos anarquistas e de outros bichos e artistas exóticos que por ali transitavam. Mas o livro, para além do seu valor simbólico e afetivo, resistiu tanto ao entrevero etílico daquele sábado, como atravessou valentemente algumas residências onde me instalei nos últimos anos, desgastado apenas pelo manuseio periódico a par das diversas leituras que fiz dele.

Também nesse período 1970/80, o poeta e crítico colombiano Jaime Jaramillo Escobar veio a descobrir a poesia de Geraldino Brasil no livro Poemas insólitos e desesperados, de 1972, passando a divulgar o nosso poeta e sua obra em Bogotá e outras cidades da Colômbia. Talvez por isto fosse comum afirmar-se no Recife que Geraldino Brasil era mais conhecido na Colômbia do que em Pernambuco, principalmente depois da edição colombiana de Poemas, um outro livro seu de 1982. No entanto, creio não se dispor de elementos seguros para uma afirmação desse tipo, a qual envolveria uma enquete mínima que fosse entre leitores e aficionados de poesia daqui e de lá. O que se sabe com certa margem de segurança é que ele continua sendo pouquíssimo conhecido em Pernambuco – e numa extensão que comportaria talvez um outro risco, no estado em que nasceu, Alagoas.

A primeira seção do livro, “Sonetos de sol”, engloba doze sonetos que têm como núcleo motivador e central o sol, como o próprio título indica. Estes sonetos não primam pelo rigorismo formal do metro mais comumente utilizado, o decassílabo. Eles permitem variações que, se de um lado ensejam dificuldades óbvias de contagem, pela quantidade de vogais soltas e de vocábulos que permitem uma dupla contagem e metrificação, de outro lado os versos se prestam, numa proporção satisfatória, ao que o poeta quis exprimir. Exceto o primeiro da coletânea, “Um soneto de sol para o meu irmão de tristeza, Cézanne” (moldado no rimário do modelo tradicional) e “Sol solidão” (onde há apenas uma quebra de sonorização, nos versos que rimam melhor/amor), os restantes estão vazados em versos brancos ou obedecem a um rimário nitidamente ocasional. Num soneto como “Sol sertão”, de temática áspera e reconhecidamente difícil, Geraldino Brasil alia pelo menos dois elementos característicos e de grande ocorrência na sua poesia: uma espécie de ironia direta e despojada de sofisticações e a solidariedade como marca de fé na vida e no homem: “Sol de que mais se morre que se vive./ Vi a gente de lá. Gente, tinha olhos,/ falava. Só a fome era de bicho./ E fé. O sertanejo é antes de tudo// um crente ou sua fé não é de gente.”

Em “Poemas de ler sem tempo” enfileiram-se vinte e quatro tercetos vazados em hexassílabos, podendo constatar-se ainda uma amplitude de variação métrica que se expande em mais de dezoito versos. Observe-se um exemplo escolhido pela justeza do que enuncia, o poema “Homem moderno”: “Eis o que faço e vou mal:/ do principal o acessório,/ do acessório o principal”. Em tais versos, torna-se flagrante, como um achado inesperado, a admirável síntese dialética – não sem uma certa angústia ou desolação –, presentificada no reconhecimento da inutilidade e do sem-remédio que circundam o fazer criativo, as ações humanas e o malogro destas ações quando pretendem ser e significar. Estes tercetos configuram uma vertente aforística peculiar a Geraldino Brasil, com reflexões pertinentes ou contextualizadas do homem, da vida, do tempo, do mundo, do amor e da morte, entre outros assuntos de escolha universal e recorrentes em poesia.

Na terceira seção do livro, “Conhecimento da solidão”, a forma fixa é descartada – com exceção de dois sonetos, “Amor” e “Na estação”, e de uns poucos poemas aleatoriamente rimados e de métrica irregular. Ele pratica agora o verso longo e desmedido, como se os assuntos enfocados exigissem um maior desdobramento sintático-coloquial. Uma faceta do homem-poeta Geraldino Brasil que reitera uma condição especial de humildade no seu universo poético e humano, pode ser entrevista no poema “No cárcere esquecido”: “Sou um pequeno poeta e não sei ver/ todas as belezas. Mas pelo pouco que vejo/ nem posso imaginar as outras que não sei ver.”

Dois poemas desta série incursionam pela inauguração de uma religiosidade condicionada a um diálogo, em alguns instantes transformado em confronto ou fuga, entre o homem e a divindade. O primeiro deles, “Identificação com o Senhor”, referenda, ao mesmo tempo que põe em dúvida e renega, certas atitudes do “Senhor”: “Eu sou triste, não sou de dizer amém!,/ portanto sou daqui, apegado a estranhos,/ ao sonho, à esperança, ao desespero,/ recusarei o céu,/ antes mesmo da minha condenação (...) Reparem, não é virtude, não me atribuo bondades./ Pelo contrário, é um desentendimento com Deus ou,/ quem sabe?,/ completa identificação.”

Já o drama de um homem condenado ao amor de uma mulher, e lutando por esquecê-la, é narrado em “Desconversa”. Ele tem um santo protetor que sempre o atende, em ocasiões diversas e inusitadas, e resolve apelar para o santo. Ao chegar à igreja, ajoelhar-se e começar a formular o seu pedido, estremece quando lembra que o santo forçosamente o ajudará. É então que se impõem um dilema e uma surpresa, logo resolvidos pelo poeta, onde valem as suas próprias palavras: “E com receio de perder o amor de que sofria,/ com reserva mental desconversou sua oração, tossiu,/ olhou para o relógio, simulou espanto,/ baixou o olhar ao chão, pra não fitar o santo,/ fez um sinal da cruz mal feito e escapuliu.

Ele esmera-se na tematização da infância e suas sugestões infindáveis, no poema “As coisas eram certas”: “Menino, meu futuro,/ a próxima manhã,/ e, certa de chegar,/ não era a espera vã.” Torna-se particularmente enfático quando retrata a circunstância da recepção, nas casas burguesas, de um cão, um mendigo, ou mesmo o leiteiro e o homem do pão em “Ninguém sobrenome não”: “Quando batiam à porta/ do meu santo lar cristão,/ às vezes era um Senhor,/ muitas vezes Ninguém Não (...) E me lembro: tanto ouvias/ o teu nome: - Ninguém Não,/ que se de cá perguntavam,/ respondias - Ninguém Não.” E esmera-se mais ainda na sua condição irrealizada de pintor de naturezas mortas e intérprete eventual de formas e motivos cromáticos, quando intenta substituir a “caneta esferográfica” de poeta um tanto passadista pelo pincel de Cézanne, seu irmão de tristeza, como no primeiro poema do livro, ou em “Quase Modigliani”, poema desta seção.

Fica a constatação de que a seleção destes vinte e dois poemas não obedece a nenhum critério estrutural específico, de forma ou de fundo previamente pensados e elaborados. Mas, devido a essa aleatoriedade que os reveste, eles ressentem-se de certa conformação de conjunto, restando quando não mais uma dicção que enuncia a presença explícita ou, de outro modo, recobre essa presença subliminar do poeta.

A expressão poética deflagrada em Sonetos de sol e outros poemas revela um Geraldino Brasil amadurecido e calejado, pois que à época já entrado nos cinquenta anos (segundo Drummond, referindo-se a Joaquim Cardozo, uma boa idade para poetas). Esta expressão, na sua totalidade, reparte-se em muitas falas e dons, reforçada por um estilo e uma sintaxe que veiculam e ensejam o gosto e a experiência pessoal desse poeta que jamais se afasta das suas fontes geradoras originais, dinamizadas a partir da busca de diálogo direto com um leitor nem sempre acessível. Poética que se retempera também nos arcabouços formais de poemas espalhados em direções multifacetadas: o soneto, o terceto “sintético”, a sextina, o verso livre, longo ou breve, branco ou rimado. E ao circular habilmente por tematizações e complexos conteudísticos e formais sustentados numa poética dividida entre o essencial e a objetividade, ele passa a elaborar a indagação do sentido irrevelado das coisas, além dos destinos e rumos, quase sempre inglórios, reservados ao homem comum no cotidiano.

(“Geraldino Brasil: uma poética da humildade”, Suplemento Cultural da CEPE, ano X, abr. 1997.)


UM POEMA DE FERNANDO PESSOA

O poema abaixo integra o volume Primeiro Fausto, da lavra dos textos dramáticos de Fernando Pessoa, organizado por Duílio Colombini, cuja primeira edição saiu em dezembro de 1986 pelas Edições Epopeia em São Paulo. A única sugestão de título é sinalizada por uma nota do organizador: Encimava o poema a indicação: “Ato III – Cena I”. Afora isso, o poema, no corpus do livro, aparece como o inicial do III Entreato, seguido de “Uma voz” e de outros dois sem titulação. Esse poema caracteriza-se por certo tom goethiano, coisa absolutamente normal, quando se pensa na condição antecipatória do Fausto de Goethe. É revelada, ainda, a faceta “dionisíaca” do Primeiro Fausto em tais versos que cantam o amor sensual e o vinho, numa tentativa de afastar o tédio da vida e a dor terrena:


Cantemos, que a vida
De nada nos serve.
Que em nós a garrida
Canção desmedida
Do vinho referve!

Cantemos, cantemos:
É medrosa a dor
E pegando em remos
Buscando-as viemos
Às praias do amor!

Cantemos as belas
Que sabem amar
Vamos que as estrelas
Sem pudor ou cautelas
Nos vêm escutar!