quinta-feira, 24 de março de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXI

UM SONETO DE ANTERO DE QUENTAL (1842-1891)


EM VIAGEM

Pelo caminho estreito, aonde a custo
Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
Mas só bruta aridez de áspero monte
E os sóis e a febre do areal adusto,

Pelo caminho estreito entrei sem susto
E sem susto encarei, vendo-os defronte,
Fantasmas que surgiam do horizonte
A acometer meu coração robusto...

Quem sois vós, peregrinos singulares?
Dor, Tédio, Desenganos e Pesares...
Atrás d'eles a Morte espreita ainda...

Conheço-vos. Meus guias derradeiros
Sereis vós. Silenciosos companheiros,
Bem-vindos, pois, e tu, Morte, bem-vinda!

In: Antologia/Antero de Quental: organização José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

Notas Cotidianas e Literárias LXX

OS MARGINAIS


1

O negócio suspeito
no refúgio do beco
pela rua escondido

onde está a saída
dessa boca de fumo
onde um bar se pergunta

o que foge do medo
enlaçado no enredo
entre trama e recuo

indo e vindo ligeiro
se livrando do cúmplice
implicado futuro

caso haja revista
caso chegue a polícia
de plantão no subúrbio.

2

Eu agora estou preso
e me sinto perdido

nesse trampo do tráfico
tudo leva ao crime

minha mãe vai me ver
na TV com algemas

não tomei seu conselho
vou pagar minha pena

nesta hora maldita
é preciso ser prático

não adianta cinismo
de quem foi grampeado

meus comparsas esperam
a cobrar o indevido

pelo pátio e nas celas
qualquer um traz perigo

a direção e outros presos
que no aperto transitam

os chaveiros e agentes
monitorando os motins

dia e noite atentos
a vigiar nós bandidos.

3

O privilégio de poucos
é a desgraça de muitos

os inimigos lá soltos
com estiletes e chuchos

tudo é moeda de troca
desde a cachaça ao fumo

há sempre um golpe rasteiro
de violência profunda

não facilita a cadeia
a traição e os abusos

a influência o dinheiro
é que implode esse mundo.

(Inédito, 2010)

Notas Cotidianas e Literárias LXIX



O HOMEM DENTRO DE UM CÃO

Composto de 26 narrativas, O homem dentro de um cão (Terceiro Nome, SP), é o segundo livro de contos do jornalista Fernando Portela, sem se considerar as histórias infantis que já publicou. Nas quatro subdivisões deste trabalho, o autor transita em diversos ramos da experiência humana e constrói histórias para todos os gostos, desde literatura policial a descrições de fatos e situações do sabor mais prosaico. Alguns tipos humanos que apresenta removem-se entre o banal e o mirabolante, entre o pirotécnico e o corriqueiro. A personagem Zefinha, de “Na hora marcada”, do bloco inicial, é um bom exemplo disso, ao deixar tensos os moradores da casa onde vive e trabalha, no dia em que anuncia a própria morte para a meia-noite, contudo, no outro dia, logo cedo malograda. O suicídio do velho gringo suíço de “O colecionador de insultos”, bloco segundo, faz com que uma mulher o insulte indiscriminadamente porque ele teria se matado num “prédio cheio de inocentes”. Em “Este convite caiu do céu”, terceiro bloco, Maria do Socorro, a mulher barbada, sai da realidade para a fantasia ou vice-versa, ao aceitar o convite para fazer um número de circo, e recebe total apoio do marido, podendo agora se apresentar para um público muito maior do que o das pessoas conhecidas.

O protagonista inominado do conto “No franzir das culpas”, do primeiro bloco, Uivos no dia-a-dia, tem um acesso de culpa por ter recebido um trabalho que caberia a um antigo amigo, Giacomo Ranieri. Este, por sua vez, era conhecido nas hostes teatrais como delator e aliado dos banqueiros e militares durante a ditadura brasileira. A finalização do texto ensina como a culpa deve ser tratada nos nossos dias: “A culpa não pode ser, assim, como uma fatura eterna que vamos pagando a cada minuto da nossa existência. Para isso existem os psicólogos, os psicanalistas: os bons profissionais nos ensinam a conviver com a culpa. Se não funcionarem, ainda temos os antidepressivos. Os atuais chegam a ser milagrosos”. Neste mesmo bloco, a narrativa “Seja discreta, menina”, toda entre aspas, certamente para não baixar o tom veloz da conversa, mostra o assessor de um deputado tentando convencer uma mulher que tem a beleza como atributo principal, a se casar com o político homossexual para manter as aparências. A certa altura, argumenta: “Sua alternativa é trabalhar feito uma mula, dar pra todo mundo, até conseguir uma fortunazinha de merda. Provavelmente na tevê. Você é linda, mas não tem talento. Então, se não vier o ibope, tchau. Pra modelo mesmo, da moda, você não tem mais idade. Pense bem. Aqui no Brasil, nenhum executivo de multinacional, mesmo com o que possa levar por fora, ganha isso que você vai ganhar. E você só precisa ser discreta. A discrição é o seu dote”. Este trecho do mesmo conto estabelece a denúncia de corrupção política que todo mundo está cansado de ver e ouvir: “Você sabe quantas vidas duplas existem em Brasília? Quantas autoridades, algumas pelas quais você poria sua mãozinha no fogo, têm contas correntes bem gordinhas em paraísos fiscais? A maioria delas fala em corrupção, e defende o Brasil com unhas e dentes”.

Na coletânea, o bloco de maior unidade e coerência textual é o segundo, Hemorragia fashion, que traz narrativas de cunho policial, onde se podem reconhecer, sem muito esforço, sugestões fonsequianas. No texto “Lágrimas vãs por um cadáver romântico”, faz-se exemplar a descrição inicial de um tiro num quadro pendurado na sala de um barraco: “Um dos tiros atingiu o gancho do quadro do Coração de Jesus, pregado na parede da sala do barraco há mais de trinta anos. O quadro desabou e o vidro partiu. A imagem, impressa, perdeu carisma e status, solta no chão: ficou parecendo uma folha de calendário, em meio aos cacos de vidro e pedaços de reboco da parede”.

Numa palavra, para ler Fernando Portela, o leitor tem de se acostumar a conviver com o pitoresco e o grotesco, somados a laivos e erupções do fantástico e do mágico bastantes presentes na prosa latino-americana de décadas passadas. Em certas narrativas, o leitor parece estar vivendo, junto ao contista, o acontecimento que este narra, o que informa sobre a dimensão da verossimilhança e a força da oralidade presente nas histórias de Portela. Seus diálogos ocorrem geralmente entremeados de aspas, resultando, talvez sem que o autor o queira, numa maneira pessoal formal e estilística inesquivável. A atualidade do seu texto é mantida, no entanto, pela grande movimentação dos personagens, pelas situações ocorrentes no espaço virtual e competitivo de agora, pelas conversas em tom aberto e desmedido, e pelo acúmulo de vida que pulsa em suas páginas.

(Inédito, 2007)

Notas Cotidianas e Literárias LXVIII

ENTREVISTA VIRTUAL À JORNALISTA MÔNICA MELO

No mês de janeiro deste ano, a jornalista Mônica Melo solicitou-me respostas a nove perguntas sobre literatura e cultura. Penso que essas questões deveriam chegar ao conhecimento público, já que somente alguns trechos da entrevista foram aproveitados pela jornalista em reportagem para um jornal local. Publico-a agora na integra, e espero que os eventuais leitores deste blog façam bom proveito.

1) Como era concebida a questão da autoria antigamente? Como as escolas literárias concebiam a figura do autor? O autor no pedestal? Inacessível?
R - Até o século 19, muitos autores assinavam seus textos de poesia e prosa sob pseudônimo. Isso acontecia em vários países do mundo, inclusive no Brasil e em Portugal. O escritor ou poeta, se por um lado era admirado, por outro não era bem visto por aqueles que faziam parte das classes produtivas. As escolas literárias eram compostas de pequenos grupos de escritores, alguns de grande importância, e os restantes que eram chamados de epígonos. Exemplo: no Parnasianismo brasileiro havia a tríade de poetas consagrados: Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira. Todos os outros parnasianos eram considerados seguidores destes três. E assim também em outras escolas. O que determinava a relação com o público era a obra realizada satisfatoriamente: o bom poema e o bom romance, que se espalhavam entre as pessoas a partir da publicação em jornal (eram comuns os folhetins, a publicação das obras em capítulos) ou livro, e no boca a boca (a prática da recitação era também bastante comum) e ainda nos saraus literários da burguesia. Para que um autor se isolasse na torre de marfim, creio que já deveria ser de algum modo conhecido, e isto revelava um trabalho anterior de divulgação. Ao evitar o contato mais elastecido com as pessoas no cotidiano, duas coisas poderiam estar acontecendo: o autor recolhia-se para escrever a obra que dele se esperava, ou estava a padecer de um surto egocêntrico ou de um excesso de estrelismo. Contudo, em todas as escolas literárias existiam também aqueles que transitavam o tempo todo nas ruas, restaurantes, teatros, saraus, footings e outros lugares e eventos públicos.

2) Em contraponto, como hoje a imagem do autor se apresenta? Como você analisa essas intervenções literárias deles dentro das livrarias, apresentações em festivais, postagens literárias na rede? Quais as preocupações para além da obra literária?
R - Os autores hoje são bastante midiáticos. Poucos resistem a uma nota de jornal, uma resenha, um estudo acadêmico de seus textos. Alguns não guardam nenhum pudor em aparecer, e aí não importa a forma ou o veículo. Resta saber se estão produzindo boa literatura ou se se vinculam ao espaço público apenas por vaidade, sem nenhuma espécie de autocrítica. Acredito que as intervenções e eventos diversos contribuem para a ampliação do campo literário, o que é importante e definidor, tanto para o conjunto de autores de uma época, quanto para a veiculação da própria literatura num país de poucos leitores.

3) Como você caracterizaria essa mudança? Uma dessacralização da figura do autor? Qual nome você considera apropriado para essa mudança de postura do autor (de querer visibilidade) e de percepção do público sobre o autor?
R - Essa mudança é benéfica no sentido de facilitar ao autor o acesso a novos canais de divulgação. Por outro lado, nem todos têm a devida consciência estética, tanto do próprio trabalho, quanto do trabalho que realizam os seus pares. Há alguns autores consagrados que ainda se mostram bastante reservados: resistem ao celular, ao desktop ou ao notebook, às redes sociais. Mas estes casos são raros. As novas mídias são, atualmente, uma necessidade de todas as pessoas. Seria paradoxal um autor que escreve para o presente ou o futuro recusar-se a utilizar as tecnologias da informação. Penso que os autores, mesmo aqueles que viviam nas torres de marfim, desejavam ser reconhecidos, e se não investiam muito no presente em que viviam, investiam fortemente numa escrita para a posteridade. Tudo isto me lembra o excelente livro de Tom Wolfe, A Fogueira das vaidades (The Bonfire of the Vanities), de 1987, obra do Novo Jornalismo. À falta de um nome adequado para essa transformação, deixaria este como sugestão: “Fogueira das vaidades”.

4) Nesse sentido, o autor criou personagens para si mesmos? (um Carpinejar, por exemplo, que posta no Twitter aforismos. Um perfil é ali apresentado ao público...)
R - Carpinejar talvez tenha percebido que a poesia não se presta a uma tão grande divulgação como a prosa minimalista. Espero que ele não tenha assassinado o poeta dentro de si. Os aforismos que posta o tempo todo podem ser apenas um substrato para a poesia que gostaria de tornar mais e mais conhecida. Em 140 caracteres cada “tuiteiro” faz a opção que melhor lhe cai como carapuça.

5) Em tempos de construções literárias "sobrepostas" nas redes (criação coletiva), como passa a ser considerado no meio acadêmico (na versão "oficial") a reivindicação da autoria, da originalidade?
R - Não há nenhum problema na autoria coletiva. Desde que não haja plágio ou apropriação indébita para utilização em outro espaço de mídia. Desde que todos estejam de acordo com quem criou o quê, ou que todos assinem o que escreveram simultaneamente. Tudo isso ficará registrado na rede porventura utilizada.

6) A questão da autoria hoje está mais próxima de que escola literária? De que tendência, vanguarda ou próxima ao pensamento de que teórico(s) contemporâneo(s)?
R - Imagino que a questão da autoria se fragmenta entre os preceitos da estética da recepção alemã e os efeitos da desconstrução derridiana. Mas isto exigiria uma discussão mais ampla e cuidadosa. No caso brasileiro, o movimento concretista foi exímio em estabelecer contatos internacionais, em inserir o Brasil nos países chamados desenvolvidos a partir da literatura vanguardista. Decio Pignatari e os irmãos Campos anteciparam toda uma tecnologia como prática do poema minimalista e como forma rápida e visualizada de divulgação. Basta dizer que eles inauguraram uma espécie de exportabilidade vanguardista no Brasil, com a associação, a partir de 1955, com vanguardistas de todo o planeta e exportando a própria poesia e teoria do concretismo.

7) Hoje eles se preocupam com a imagem, divulgação das obras, inclusive, há os que interrompem a produção por um tempo para cumprir agenda: dedicar-se a apresentações em festivais,
bienais, festas literárias. Como você analisa essa postura?
R - É uma postura necessária e remete novamente à torre de marfim: no mundo veloz de hoje, ninguém pode ficar em casa esperando que sua obra caminhe por si mesma. Há autores e livros aparecendo a cada minuto. O autor deve intervir, sim, vender o seu peixe. A sua repercussão ou anonimato depende desses contatos com outros autores, leitores, editores e jornalistas.

8) Vou trazer na matéria o exemplo do Sarau Plural, promovido por temporadas (mensalmente) pela Arte Plural Galeria. Como você enxerga, inclusive historicamente, o sarau literário como espaço para
o autor se apresentar à sua maneira?
R - O sarau literário existia, em outro formato, desde os tempos imperiais, nas casas de nobres aficionados da literatura e da música, como já fiz referência acima. Mas o Sarau Plural tem um papel importantíssimo, a partir dos depoimentos dos convidados de várias modalidades artísticas. O testemunho dos artistas e de outras pessoas ligadas à cultura, envolve colocações que somente afloram naquele preciso instante, improvisadas, espontâneas, não aparecendo em outras ocasiões do modo como apareceram ali.

9) Nesse contexto de visibilidade a que o autor se lança, como podemos inserir as aulas-espetáculo de Ariano Suassuna?
R - Alguns trabalhos pontuais precisam do mínimo de dinheiro público. Eventos que às vezes se tornam mais importantes para uma cidade do que as costumeiras apresentações diversificadas em festivais, shows, oficinas, congressos, palestras. Um trabalho subterrâneo e sem alarde midiático, de poesia, fala e teatro popular, a exemplo do que faz Ariano Suassuna. Composto de aulas que param e mobilizam as numerosas cidades aonde chegam, mesmo sendo a divulgação restrita. Os resultados mostram-se avassaladores, pois exibem momentos e funções populares de alegria autêntica, conscientização artística e interação criativa.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXVII


UM POEMA DE SÔNIA BARROS

Sônia Barros, poetisa paulista nascida em 1968, tem vários títulos infanto-juvenis publicados, inclusive de poemas nessa categoria. Sua estreia em poesia, para um púibico mais ampliado, se deu em 2007 com Mezzo voo, pela Nankin Editorial, de São Paulo. O poema "Sonho de mezzo poeta" é o último do livro, e explicita o desempenho de quem já escrevia anteriormente, e, dado positivo, não satisfeita com o dito e o escrito, persegue um mais "alto  voo". Dona de uma escrita delicada, de canto e tessitura que primam pelo sensível e o inteligível, pela voz e mãos em busca da dicção de "perfeita urdidura". Contudo, para alívio de seus leitores anuncia que, além do "pouco" que sugere ter conseguido, continuará a tecer em palavras e a cantar em soprano os seus voos metapoéticos possíveis. Inaugurou  há pouco um blog de literatura, cujo endereço é: (http://www.escritorasoniabarros.blogspot.com). Confira-se o poema:

Quando canto
                     teço um manto,
quase o mesmo manto
                     feito por minhas mãos
quando escrevo:
                     balé de finas cordas
à (vã) procura
                     da perfeita urdidura.
Quando canto
sinto o tênue limite,
a linha fina que limita e denomina esta meia-voz:
mezzo soprano.

Quando escrevo almejo o alto voo
da voz que exercito,
                               insisto,
incito a rsepirar, tecer, bailar, cantar sempre
                               através da alta máscara.
Quero o mais fino manto
por minhas mãos urdido,
como se fora um canto
                                           de soprano.

(quando acordo,
o que consigo não passa de roupa rota
de mendigo)

Notas Cotidianas e Literárias LXVI

O “GAUCHE” DAS MUITAS FACES


Em 1930, quando vivia ainda em Belo Horizonte, Carlos Drummond de Andrade lançou o seu livro de estreia, Alguma poesia, publicado às próprias expensas. O aparecimento deste primeiro trabalho do poeta de vinte e oito anos representou algo de grandioso, definidor e definitivo para a poesia brasileira, vindo juntar-se ao que já existia de exponencial na poesia de Manuel Bandeira e na lírica de Mário de Andrade. Além disso, a poética drummondiana passará a exercer, pelos próximos anos e mesmo nos nossos dias, uma notável e marcante influência sobre numerosos poetas, sem distinção excludente entre iniciantes ou experimentados.

Certas ressalvas foram feitas pela crítica da época, notadamente à vertente “piadística” constante no livro, derivada de um modernismo recente mas sem dúvida atuante, explicitada no curtíssimo e já bastante citado “Cota zero”: “Stop./ A vida parou/ ou foi o automóvel?”. Ou ainda, em um poema como “Caeté”, terceiro da série “Lanterna mágica”, caracterizado por uma dicção oswaldiana inconfundível, embora a estrutura formal o negue, pela aplicação de pontos e reticências infrequentes num Oswald de Andrade iconoclasta, inquieto e radical, inovador de formas e destruidor de mitos. Encontra-se presente também uma confluência sintática e diccional que lembra bandeira, como na ressonância da voz longínqua e distanciada “que sobe do morro”, no entanto demasiadamente humana e composta da mesma carne e estatura comum: “A igreja de costas para o trem./ Nuvens que são cabeças de santo./ Casas torcidas/ E a longa voz que sobe/ que sobe do morro/ que sobe...”.

Em “Outubro 1930”, subdividido alternadamente em poesia e prosa, esboça-se a sua visão problematizadora e “participante” dos acontecimentos nos anos intermediários às duas grandes guerras e nos dias históricos e expectantes de um levante tenentista sempre iminente e anunciado desde a segunda metade do século 19 e intensificado com a proclamação da República. E que fará também a crítica da política vigente, enquanto pulsar e renovar-se a sua voz de poeta, mesmo sob a condição um tanto contraditória de assessor de um ministro getulista, o mineiro Gustavo Capanema.

O tom abertamente polêmico de outros poemas, como o controvertido “No meio do caminho”, o mais famoso deles, chegou a gerar uma quantidade considerável de réplicas, achaques e críticas, tendo este material sido recolhido por Drummond em 1967 no volume Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema; “O sobrevivente” instigaria o poeta Murilo Mendes a escrever, em 1956, no final da “Advertência” constante na sua coletânea poesias (1925-1955), uma frase que é um verdadeiro e direto arremate a esse poema de Drummond, “Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo”. Neste rol, figura também o “Poema de sete faces”, que será referido mais adiante, em andamento e performance de comparação analítica com dois poemas do último livro do poeta, Farewell, publicado em 1996, nove anos após na sua morte.

Alguma poesia define, de modo certeiro e inequívoco, parte da orientação subsequente do fazer poético drummondiano. Poética que, ao ser inaugurada, se reinventará continuamente. E que se entremostrará concordante, de um lado, com a estruturação semântica e formal inicial, quando estas categorias do poético forem se alargando e elastecendo ao máximo de suas possibilidades. De outro lado, tal estruturação poderá também vir a contrair-se, e assim, em certos instantes, intentar renegar-se, no entanto ainda com o propósito interno da própria reinvenção, pelo abandono e eliminação do já escrito.

Em Brejo das almas, o segundo livro, datado de 1934, Ana em que mudou-se para o Rio de Janeiro, alguns poemas ainda serão escritos com o tom típico de um Drummond assumidamente provinciano, mas já ensaiando uma linguagem prenunciadora dos temas contemporâneos, universais e urbanos posteriores. Mais à frente, em Sentimento do mundo (1940), ele começará a mostrar verdadeiramente a sua faceta de universalidade e maior abrangência temática, incluindo aí uma safra de novos conteúdos, embora sem desvestir-se totalmente dos temas localistas iniciais. Tal fase de sua poesia vai desembocar em A rosa do povo (1945), livro que absorveu toda a radicalidade do gauche, do engajado e do militante comunista temporário, mas que continuaria alinhado à luta social do país daqueles tempos. Os poemas “cívicos” – no termo cunhado por José Guilherme Merquior –, extensivamente expressivos e dedicados à parcela da sociedade afastada da centralidade das decisões, e portanto refreada em seus impulsos e desejos mais legítimos, em suas carências e necessidades mais urgentes e características, serão uma prática constante nessa poesia, promovendo uma inegável e saudável abertura ao mundo de fora e dos homens.

Perfazendo aqui uma guinada arbitrária, entretanto sem muito distanciar-se dessas obras iniciais, Fazendeiro do ar é o livro de 1954, cujo título sui generis e insigne originou-se de um episódio curioso, mostrando outra das facetas do Drummond auto-irônico. Surgiu da reclamação e do protesto do poeta ao receber uma cobrança de impostos descabida, pela posse de uma fazenda deixada por seu pai, fato que o levou a escrever uma carta informando à fiscalização que não poderia pagar a quantia estabelecida, já que era apenas “um fazendeiro do ar”.

O livro contém um poema intitulado “Estrambote melancólico”, que põe a descoberto o fato de que, nos nossos dias, mesmo tendo-se em conta as turbulências da vida cotidiana, o sentimento melancólico permanece, talvez não com a intensidade romântica e subjetivista de antes, mas agora limitado pelas novas imposições de urgência, eficácia e competitividade. O poema revela um tratamento entre sério e irônico que o poeta confere a tema tão solene. Ele utiliza-se de uma forma fixa, o soneto, que aparece com um estrambote, neste caso, apenas um verso acrescido aos quatorze anteriores do poema. E, suprema ironia, ao escrever uma poesia altamente vinculada e comprometida com seu tempo, não esquivava-se também de praticar uma forma ancestral e de uso relativizado e delimitado pela competência intrínseca e pelo nível de exatidão rítmica de cada poeta.

Nos quatro primeiros versos, Drummond deixa entrever o estado melancólico a partir do qual se estratifica seu poema: “Tenho saudade de mim mesmo, sau-/ dade sob aparência de remorso, / de tanto que não fui, a sós, a esmo,/ e de minha alta ausência em meu redor.” São palavras definidoras deste quarteto, relacionadas a melancolia, saudade, remorso e ausência, ou ainda, expressões como “a sós’ e “a esmo”. O poema deflagra-se quando ele anuncia e faz a confissão de saudade que tem de si mesmo, embora esta seja uma espécie de saudade que adquire a feição incômoda de um remorso inesquivável e sem remédio. Saudade que traduz também as vivências pessoais e coletivas que ele talvez não teve, embotado pela solidão (como na expressão “a sós”) e pelos descaminhos do abandono (caso da expressão “a esmo”). Tudo isto reforçado por uma ausência que não é apenas a do mundo ao redor, mas a sua própria, que naquele instante paira acima das circunstâncias humanas.

A adjetivação “alta”, proposta para ausência, funciona em termos bastante positivos, numa recuperação dos três primeiros versos, sendo como é uma “alta ausência” dele enquanto poeta que recria o mundo e a linguagem. E ainda mais, apesar desta diferenciação, essa ausência não exclui o mundo de fora, quando ele tem notícia e interage com o que se passa ao seu redor.

A referência interna mais direta é o lugar onde está instalado – escritório, quarto ou sala – e onde pensa ou escreve. Espaço interior que tem o dom de facilitar a abstração de si mesmo e o mergulho constante no eu. E de outra parte, na condição de espaço privilegiado, pode vir a permitir também a sua reiterada reflexão do real,, a visão

Instantânea de uma realidade que o deixa perplexo, e o que é mais definidor ainda, a absorção do mundo externo através do pensamento, dos sentimentos e das emoções proporcionados pela poesia. A experiência individual e social – vivida ou imaginada – é apreendida neste momento único em que ele comete seus versos, arruma suas estrofes, constrói o seu poema e ultrapassa as fronteiras do próprio corpo.

Em artigo escrito para o Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo, na ocasião do lançamento de Farewell, o poeta Alcides Villaça, estudioso de Drummond, fez um registro importante: “a figura inaugural do ‘gauche’ culmina na de ‘O malvindo’”. Na trilha aberta pelos termos comparativos dessa afirmação, pode-se acrescer inicialmente que no “Poema de sete faces’ há a indicação de um estágio premonitório intuído pelo próprio poeta, que vai passar a emancipar-se através da condição requerida de “gauche”, Aliás, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna desenvolveu, no período de 1955 a 1969, sua tese de doutorado O gauche no tempo, sobre a ideia característica de “gauche” presente no “Poema de sete faces”, inclusive submetendo seu trabalho a um computador para, entre outras coisas, obter dados estatísticos e “quantificar o emprego do verbo” na poesia de Drummond.

O fato é que se sobrepõem no “gauche” as nuances de uma consciência tremendamente irônica dos acontecimentos diários e das relações surdas e controvertidas entre os homens. Essa consciência irônica e à sua maneira humana, histórica e política, envolve fortemente a capacidade de fazer rir, de rir tanto de si como dos outros. O anjo torto que diz “Vai, Carlos! ser gauche na vida”, na época do “suposto nascimento” do poeta – pois que oscilante entre a sua realização unilateral em poema e o ritual comum à normalidade dos nascimentos –, será o mesmo que o abandonará com os requintes do Deus castroalvino. Mas ele ficará ainda com a leveza e a vastidão do seu coração, com uma cota de esperança que aos poucos se suavizará e declinará, com o tempo sendo substituída por uma forma geral de ver o mundo discreta, porém descrente e desvestida de ilusões.

Essa perspectiva irá inverter-se bruscamente em “O malvindo”, no qual demonstrará um profundo e irado desgosto, emparelhado a um duro e amargo ceticismo. A iminência da destruição total do corpo, a fatalidade inelutável da vida se extinguindo, mais a inutilidade de um passado vivido ou um futuro inexistente, encontram eco nestes versos: “Inútil corpo, alma inútil/ se não transfunde alegria/ e esperança de renovo/ no universo fatigado/ em que repousa e não ousa./ Sua ficha foi rasgada,/ por ausência de sinais./ Seu nome – por que sabê-lo? E sua vida completa/ já nem é vida, é jamais”.

Se no “Poema de sete faces” ele situa-se sob uma malha temática que envolve a memória da província e da família, as poucas relações de amizade que serão cultivadas permanentemente, o seu remover-se ante um urbanismo não tão ostensivo quanto o de hoje, em “O malvindo” fica patente um balanço final e melancólico do que foi a sua experiência de poeta, funcionário público e jornalista, além de marido, pai e amante, tendo como saldo apenas a certeza de uma morte que rondava bem perto, como nos versos iniciais: “Vive dando cabeçada./ Navegou mares errados,/ perdeu tudo que não tinha,/ amou a mulher difícil,/ ama torto cada vez/ e ama sempre, desfalcado,/ com o punhal atravessado/ na garganta ensandecida”.

O “Poema de sete faces” suscitou outra colocação de evidente interesse aqui, do escritor e crítico Silviano Santiago, no “Posfácio” a Farewell: “Sua última coleção de poemas, planejjada enquanto em vida (...), abre sintomaticamente com um texto que contradiz o mais antigo poema publicado em livro: ‘Unidade’”. Transitando pela via do confronto e da colisão verificada preferencialmente no feitio conteudístico e na escolha da voz que se ensejará em cada poema, à maneira de apreensão do dito como uma espécie de fixação do sujeito da fala, no “Poema de sete faces” constata-se uma maior ocorrência do sujeito que fala de si, ainda quando referir-se em terceira pessoa a um “homem” que continua sendo ele mesmo. Este efeito não cessará, nem com a inserção da extensão “gente”, atrelada e puxada por um “eu” que abre a confissão ingênuo-coloquial da última estrofe: “Eu não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo”.

Em “Unidade” – o único poema que, segundo a vontade de Drummond, destoará da ordem alfabética de Farewell – há um “nós” que intenta solidarizar-se na luta contra a destruição dos seres e elementos naturais, tanto em sua relativa mobilidade de “plantas” e sensibilidade de “flor”, como na sua imóvel e impotente dureza de “pedra”. Tais elementos humanizam-se no cerne de um sofrimento universal, como seres-objetos indispensáveis à compreensão da realidade do mundo, que sem eles não poderia ser dita, vivida ou escrita pelo poeta.

Estão ali, talvez, apenas para evidenciar e após deixar intocada uma contradição aflorante e recorrente, e de certo modo insolúvel, pela impossibilidade de inclusão de um novo “nós” de representação e caracteres humanos na inevitabilidade e consecução desse sofrimento. Um “nós” que assim não retém o privilégio de banhar-se no misterioso rio do sofrimento, que não possui a percepção nem “a chave da unidade do mundo”, porque demonstra-se em alguma medida incapacitado e impermeável à dor que se manifesta naqueles elementos e serres naturais: “Não temos nós, animais,/ sequer o privilégio de sofrer”.

No seu confessar-se enviesado, no entanto sustentado por ímpar e surpreendente eficácia, Drummond praticamente esgotou as formas de dizer as vivências cotidianas do homem brasileiro contemporâneo e multifacetado, que com frequência se reconhece nessa poesia. Uma firme e alta sintonia a um presente no qual a vida não permite tréguas, inseparável do instante vivido ou a viver, talvez o levasse a relutar entre os foros oponentes de uma entrega total ao amor e o afastamento deliberado ou forçado dos seus des/semelhantes. O poeta, que em certos instantes, reprimia-se e esquivava-se, poderia seguir também se doando por inteiro a esse amor tão insistentemente cantado em momentos definidores e solidários da obra. Ou em livros mais específicos do enlace amoroso como Corpo (1984), Amar se aprende amando (1985).

O Amor natural, de publicação póstuma em 1992, todavia já conhecido de uns poucos em 1981, e com poemas editados em revistas de nu feminino da década de 1970, é o mais eroticamente explosivo deles. Contém uma fruição amorosa radical que parece desmitificar um Drummond resguardado enfaticamente da ambiência externa e da constância de contatos humanos mais dilatados no recato de uma propalada e invencível timidez, como um quase fechar-se ao mundo circundante.

Com a exposição pública através do exercício continuado da crônica em jornais e do acompanhamento direto da edição de seus mais de quarenta livros, no Brasil e em traduções estrangeiras, em coleções, reuniões ou antologias, ele não deixará de desfrutar, ao longo de quase sete décadas de poesia, a partir de uma conquista paulatina e paciente, da atenção e do alcance de um público significativo e fiel. Em contrapartida, logrará contemplar seus leitores com o fundamental da obra publicado enquanto vivo.

Numa linhagem de grandes poetas brasileiros, Drummond empenhou-se, no decurso de toda uma vida impulsionada por um estado permanente e privilegiado de poesia, em recompor os efeitos, comoções e premissas de uma solidão imponderável, aos transplantar para o poético imagens e vivências sociais do coletivo, com a coragem de dividir e expor tanto o mais rasteiro e poeticamente óbvio, como o mais raro e insuspeitado.

Suplemento Cultural (CEPE), ano XV, novembro de 2000

quarta-feira, 16 de março de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXV

A CONQUISTA DO SERTÃO

Não se fez sem grandes perigos e dificuldades a conquista do sertão nordestino entre os séculos 17 e 18. O colonizador português, pretendendo ampliar seu domínio, até então firmado no litoral, ensejou pôr em prática estratégias para o desbravamento. Nas áreas onde se dava a exploração da cana-de-açúcar, a Coroa Portuguesa arrebanhou um contingente formado pelos moradores pobres e vadios das vilas ali existentes para o enfrentamento dos índios bravios. Com riqueza de documentação, dados estatísticos e depoimentos de época, Kalina Wanderlei Silva argumenta ter sido a ocupação do sertão executada a partir de povoações como o Recife, Olinda, Goiana e Tracunhaém, entre outras. O que era inicialmente uma tese de doutorado, foi posteriormente transformada no livro Nas solidões vastas e assustadoras (Recife, CEPE, 2010), indispensável a quem se interessa pela história local e seus desdobramentos que envolvem conexões e personagens de outras regiões e países, feito portugueses e holandeses.

Kalina Wanderley mostra que a ideia corrente de sertão era de um lugar deserto, imenso, inóspito, selvagem e inabitável. Concepção esta aceita e emitida pela tipologia humana do litoral, submetida ou mandatária do Reino, que se considerava a sua feição urbana e civilizada. A entrada no sertão das tropas régias, índios aldeados e recrutados de última hora encontrou fortes barreiras dos índios nativos. Tais resistências foram pouco a pouco sendo vencidas, não sem muita luta e baixas de ambos os lados, configurando o que se convencionou chamar de Guerra dos Bárbaros. A presença de diversos rios circundantes atestou ser o lugar propício à pecuária e à pequena lavoura. Assim se instalaram grandes currais para o gado, terras foram delimitadas e ocupadas, desfazendo e contrariando a visão inicial do sertão como um ´deSertão`.

Obviamente que alguns hábitos e práticas antigas ainda persistem na vastidão da caatinga, como as questões de honra e valentia, mas agora em menor intensidade. Certos vaqueiros substituíram o cavalo e a indumentária de gibão e perneira pela moto, o bermudão e a camiseta. Ao invés de botas de couro cru, o tênis urbano e, se possível, de marca. Uma acelerada eletrificação trouxe antenas parabólicas, celulares e desktops que fazem parte da rotina de muitos moradores rurais. Em dias recentes, o esforço da transposição das águas do São Francisco já demonstra ser um elemento altamente transformador da economia da região.
 
Diario de Pernambuco, 8 de março de 2011