terça-feira, 12 de julho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCIX

DOIS POEMAS DE MICHELINY VERUNSCHK


HISTÓRIA

Desenterrar os mortos
e chupar seus ossos,
sugar seu mosto
de terra e sangue seco,
seu gosto secreto
de anos infindáveis,
arcos,
costelas,
arquitetura.

Se infeccionar com os mortos.
Triturar seus artelhos
de esponja ressequida,
pintar de negro e noite
de dentes e saliva
e abandonar o sonho
viva, muito viva.



ARRECIFE

Desse ponto
partem distâncias imaginárias
que contam
das reais distâncias entre nós.
Um homem posto
à frente de uma janela
é o fantasma de si mesmo
suspenso por linhas
e cores improváveis.
Somos ele
e ele é todos nós
como se não fôssemos
(ainda)
a cidade em seu entorno.
Somos ele
e seus ombros caídos.
Somos ele
e seu rosto roído pelos peixes.
Somos ele
e as ruas estreitas
que o cortam
e que nele se impalam
como postes
travas
e outras saudades sem sentido
(como qualquer outra saudade).
Uma estátua
observa
a constelação das águas.
Sua roupa cinza
se agita
e veste por um instante
a pele nua do rio.
O homem se agita
e com ele
a cidade costurada
em nossas carnes.
Tudo cabe num selo
ou num traggo de cigarro.
Tudo cabe no verde
mais próximo do branco.
Tudo brada:
relógio ensandecido.
Somos o real
e nada somos.
E isso é tudo.

In: Verunschk, Micheliny. A cartografia da noite. São Paulo: Lumme Editor, 2010.

Nenhum comentário:

Postar um comentário