A GUERRILHA VISTA POR DENTRO
Soledad no Recife, do jornalista e escritor Urariano Mota, publicado pela Boitempo, é um livro imprescindível para se compreender o movimento guerrilheiro em Pernambuco na década de 1970. Inicia-se numa sexta-feira de carnaval de 1972 no Recife, no bar Aroeira, no Pátio de São Pedro e finaliza com as mortes de um grupo de seis guerrilheiros na chácara de São Bento, em Paulista, cidade da região metropolitana recifense, em janeiro de 1973. Não sem haver uma intensiva e vigilante atualização temporal, pois o relato é também datado, e se realiza em 2009.
O encontro de militantes de esquerda naquele carnaval deflagra toda a ação posterior. Assim como o encontro do narrador que está ocultado enseja o tom explicadamente subjetivo do amor, da paixão do poeta comunista pela guerrilheira paraguaia culta, destemida e cosmopolita. Elaborado numa perspectiva em que o detalhe sugere a amplidão, o fato isolado atinge o país todo, o texto traz a reflexão dialética permanente, insistente e, em certos instantes, obsessiva até. Porque o autor tende a explicar e desenvolver pormenores, a não deixar nada sem esclarecimento. A narrativa transforma-se, assim, num testemunho ficcional que comporta forte sentido do real, como se a ficção se entranhasse ao cotidiano e a poesia tivesse alcance alargado e consequências práticas.
O narrador-personagem se remove na sombra, embora interfira diretamente nas vidas dos outros personagens. Mas de um modo discreto, sem causar danos à maioria deles. No entanto, o amor por Soledad e a solidariedade aos companheiros são entremeados pelo ódio e a desconfiança que, ao tempo, já se manifestava contra um deles, o infiltrado Cabo Anselmo. O capítulo mais longo é dedicado justamente à tentativa de compreensão da figura do verdugo e dos motivos e intencionalidades que levaram o traiçoeiro Anselmo a entregar a própria mulher, Soledad. Mesmo assim, em vista do nojo e do ódio que nutre, esse personagem inominado mantém o necessário equilíbrio e a tremenda frieza da precisão na análise dos acontecimentos. E isto, apesar da dor inominável que os eventos lhe causaram. O ato de escrever torna-se, aqui, necessidade premente e urgente de livrar-se, um pouco que seja, ainda que 37 anos depois, do fluxo trágico da memória da chacina da chácara de São Bento. E da perda do amor ali bem próximo, para, exatamente, Anselmo, que tem no livro o cognome de Daniel, um dos maiores dedos-duros da América Latina, alcaguete subordinado ao Delegado Fleury. Que não teve pulso suficiente para evitar a morte da companheira grávida, mesmo que isso significasse a separação definitiva de ambos em vida.
De outro lado, os membros da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária, ou de outras organizações, não perdoavam àqueles que fossem suspeitos de infiltração em suas fileiras. A execução era certa, a decretação de morte um caso decidido. O espião, contudo, era mais esperto, usava roupas de estilo hippie, conhecia o jargão revolucionário e conspiratório, tinha uma postura aparentemente destemida, radical, combativa. Depois da sua chegada ao Recife, sucessivos pontos foram caindo, a repressão passou a atuar sem contemplações.
Em muitas passagens de Soledad no Recife a percepção crua dos fatos cede lugar ao lirismo, a inclinação socialista se abre para sentimentos, vivências e emoções geralmente vetadas aos revolucionários, à gente que queria mudar os rumos do país. É nessa direção que Urariano Mota escreve sua melhor ficção, quando o jornalista se afasta do flagrante e da informação para que o escritor se revele em toda a sua potencialidade e fruição. A construção inteligente dos diálogos, a visão intensa da mulher amada sem esperanças, o companheirismo que não admite nem mesmo as fronteiras oscilantes da experiência da morte em clima propício a isto, o cuidado do jovem suburbano recifense que morava com a mãe em não cair nas malhas da polícia política são relatados com o vigor e o desempenho de quem sabe os segredos do ofício. Pode-se imaginar o sufoco de quem esteve, como é o caso do narrador, que se confunde com o próprio autor, bem próximo daquela chacina, de desencavar o pesadelo em papel e tinta, quase quarenta anos depois.
Não se pode negar que Urariano Mota conseguiu seu intento com eficácia, presteza e honestidade intelectual. Um firme distanciamento se desfaz em certos trechos, pois se coloca inevitavelmente ao homem que conta uma história algo de sua participação, o afloramento de uma psique quase sempre reprimida por orientação partidária em descontração, boemia e sentimentos. No fogo cerrado da preparação da guerrilha urbana, ou da ação em si, na clandestinidade forçada, existiam momentos para se conversar, ler poesia, assistir a bons filmes, ouvir a música tropicalista e de resistência da época.
Soledad no Recife chega no tempo certo, bem depois de outros livros bombásticos e sensacionalistas sobre a temática, alguns já esquecidos. Entre as boas realizações nesse campo, pode-se lembrar o impactante Poema sujo, de Ferreira Gullar, guardando-se as respectivas diferenças de gênero, tragicidade e alcance literário. O longo poema de Gullar foi escrito em 1975 em Buenos Aires e editado um ano depois, no Brasil, e tem como assunto a cidade de São Luís do Maranhão, propiciando uma mirada visceral que nada escamoteia ou esconde, desde as mazelas das vivências familiares, a circunstancialidade urbana da pobreza nordestina, os personagens populares inesquecíveis.
O romance de Urariano Mota fala também de uma cidade, o Recife, estendendo-se por vezes a outras duas, Olinda e Paulista. O texto centra-se em algumas poucas casas, bares, encontros e reuniões políticas. A partir do que ocorre nessa ambientação, toda uma teia de experiências existenciais e políticas é entretecida, atingindo uma profundidade ímpar, pela forma detalhista como é realizada a narrativa. A escrita perfaz-se articulada por dentro, modelar e insubstituível em suas contradições, paradoxos, contrações, tensões e sinuosidades, pondo a nu o entendimento e desvendando impiedosamente os anos terríveis do governo Médici. São razões fortes estas e outras somente descobertas no texto, que fazem a leitura de Soledad no Recife, como dito lá no início, imprescindível.
UM POEMA DE SÉRGIO DE CASTRO PINTO
Um poema de Sérgio de Castro Pinto, “Papel de jornal”, chama particularmente a atenção, pela forma como sintetiza a efemeridade e o engodo dos papéis do jornal: o papel literal de embrulho para peixe e outras mercadorias e o papel de veicular sub-repticiamente a informação, de escamoteá-la e deformá-la sem que nem sempre se perceba. O poema é de 1982 e faz parte do livro O cerco da memória (1993), podendo ser encontrando também em O cristal dos verões, poemas escolhidos: 40 anos de poesia (1967-2007). A precisão poética é uma das marcas reconhecidas de Castro Pinto. Suas visadas e tiradas inteligentes produzem versos densos, comprimidos, satíricos, de um humor que se situa entre o trágico e o lúdico. As palavras se acumulam em estrofes breves e semanticamente inter-relacionadas, em vocabulário rico e fértil em suas escolhas. Além disso, o poeta paraibano exerce, entre outras atividades, o jornalismo profissional, o que o autoriza a escrever um poema crítico e incisivo como esse. Eis o texto em sua inteireza:
no papel de jornal
cabe o presente
e o seu papel
de estocar embrulhos.
o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.
no papel de jornal
transporto o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.
o presente
e o seu papel
de provocar engulhos.
no papel de jornal
cabe todo presente.
o presente
e o seu papel
de sonegar futuro.
CLUBE NÁUTICO CAPIBARIBE
Torço pelo Náutico desde menino. Comecei aí pelos onze anos de idade, ainda em Sertânia, continuando fiel ao time até hoje. Assisti a jogos memoráveis na década de 1970, mas não vou mais a campo. Assim, não me peçam escalações completas, pois para isso teria de pesquisar nas seções esportivas dos jornais ou consultar torcedores mais antenados a isso. As vitórias do time trazem aquela alegria leve, descontraída e esperançosa. Na derrota é preciso ter a cabeça fria, não procurar desculpas esfarrapadas para o fracasso de uma partida.
Quando o Náutico entra em campo, com o fascínio das cores branco e vermelho, o coração pulsa mais forte. Um sentimento épico e indizível atinge seus torcedores, e honrosamente me associo a eles. A vontade de estar também vestindo a camisa alvirrubra faz com que o sonho, por instantes, se transmute em real e a realidade fique sendo, flagrantemente, a expectativa do início do embate.
O único inconveniente no futebol mostra-se na circunstância de se assistir a um jogo sozinho. Os amigos desaparecem às vezes, a família pode estar ocupada em outras atividades, e não há mais escolha coletiva. Resta, apenas, a concentração total no jogo que os canais de TV competentemente permitem e facilitam. O domingo se passa mais movimentado e alegre ao sabor da bola rolando no campo.
LITERATURA E ARTE NOS GROTÕES
A paisagem rural do Sertão é áspera, estática, solar, misteriosa e pouco muda ao longo do tempo. Há, ainda, vaqueiros que são telúricos, primitivos, destemidos. Entretanto, estações de telefonia móvel, rádios FM, antenas parabólicas, o aparato receptor para internet e TV a cabo proliferam paulatinamente. Com seus poetas, artistas, artesãos e intelectuais nativos o Sertão produz a sua arte, música e literatura, os seus objetos de barro e madeira para exportação. E isto, em dosagens discretas do urbano e da tecnologia, conectadas à inquietação do mundo e ao presente.
Lá não existem apenas os grotões, como já classificou o Sertão, um tanto pejorativamente, um conhecido político pernambucano numa polêmica eleitoreira. Feito aquele mesmo político que sempre cabalou, surrupiou e vilipendiou milhares de votos destes mesmos grotões.
PASSOS SUBTERRÂNEOS
À margem do silêncio
a perplexidade
da cidade aflita,
seu visível teor
de concreto e quimera.
Delírios/ tramas/ cômputos
aqui ecoando:
colagens, laivos de vida.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
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