quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XII

O APRENDIZADO DE NÉLIDA

A construção de um testemunho intelectual com entradas no foro existencial sempre seduziu poetas e ficcionistas. As referências e exemplos são numerosos no tempo histórico-literário, começando com as civilizações greco-romanas, passando pelo medievo, até chegar à contemporaneidade. Esse testemunho pode manifestar-se em diários, cartas, poemas, memórias, discursos, diálogos, textos de autocrítica e ensaios autobiográficos. No caso brasileiro, de Machado de Assis a Carlos Drummond de Andrade, aparece de modo direto ou implícito na prosa de ficção memorialística ou autobiográfica ou na poesia que não esconde o eu subjetivo porém descarnado e centrado no referencial histórico do autor.
Com a publicação de Aprendiz de Homero, Nélida Piñon disponibiliza ao público o seu próprio testemunho intelectual que envolve ensaios sobre carreira, preferências literárias, concepções de assuntos polêmicos como magistério, religião, família ou a condição da mulher. Obviamente que em sua obra, configurada por uma competência que referenda a extensão, ela vem se descobrindo e descobrindo as faces ignoradas de seus leitores e personagens, além de mapear um país que assumiu como seu, quando se pensa nas suas origens galegas. A estreante de 1961 com Guia mapa de Gabriel Arcanjo, que teve recepção favorável da parte do crítico Fausto Cunha, não mais parou de escrever e vem se afirmando como autora de romances antológicos e reconhecidos de público, a exemplo de A casa da paixão, A força do destino e A República dos sonhos. Estes trabalhos abordam respectivamente, entre outras coisas, um erotismo sem concessões mas não pornográfico, a paródia bem humorada de uma ópera de Verdi e a imigração espanhola para o Brasil, mais especificamente de um grupo de pessoas que veio da Galícia. O reconhecimento internacional alcançado por Nélida Piñon comporta uma extensa listagem de prêmios, homenagens, traduções ampliadas de seus livros, passagens por universidades, além de títulos de doutorado honoris causa.
A mulher ocupa um lugar destacado nos ensaios de Aprendiz de Homero. Começa com Sara a conspirar contra Abraão e a rir de Deus por querer o divino romper a sua esterilidade depois de velha. A memória de Sara é a memória da submissão de todas as mulheres ao patriarcalismo de Abraão e à unilateralidade religiosa de Jeová, embora ela esconda segredos que ouviu dos diálogos entre ambos, a que nem o próprio Abraão conseguiu ter acesso. Em “Dulcinea – a agonia do feminino”, retorna até o texto cervantino, a inquirir sobre o visionarismo de Maritornes, mulher mundana e empregada da estalagem onde o Quixote e Sancho se hospedaram, e que não aceita o fato de o Cavaleiro ter idealizado uma dama tão impossível de existência quanto Dulcinea.
Todo um tratado sobre a ilusão é feito em “O espetáculo da ilusão”, que talvez seja um dos textos de mais difícil realização, pois analisa por dentro o livro A doce canção de Caetana, da própria Nélida. Uma leitura dentro da leitura, onde ela fornece as motivações para a escrita do romance, informa sobre a evolução da personagem Caetana, que tem como objetivo transformar-se em Maria Callas, numa apresentação teatralizada no lugarejo Trindade. A romancista não esquece de aludir à performance e ao sacrifício de artistas que impulsionam o teatro mambembe: “Caetana, contudo, na condição de atriz pobre, integra-se às expectativas geradas pelo espetáculo teatral que se anuncia no cine Íris. Sua natureza exigente requer da grei de artistas ativa participação. E, graças à ilusão que vai semeando em torno, sentem-se todos condenados à aliança imposta pela arte”.
As grandes amizades refletem-se nos textos sobre Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, estendendo-se a suas mulheres. Mas, o vetor analítico de Nélida não deixa ofuscar a sua crítica da obra de ambos, sobre a narrativa que engendraram. De Vargas Llosa em “O escriba Mario” ela faz o percurso crítico aprofundado do seu livro El hablador, onde Mario é personagem e autor ao mesmo tempo, narrador onisciente e sujeito participante junto aos índios machiguengues do Peru. Segundo ela, Vargas Llosa “infiltra o texto com artimanhas e artifícios. Impõe-nos, como consequência, o convívio com um autor que, de seu mirante de observador, fortalece-se por meio da perícia com que situa o imbróglio narrativo sobre o tablado livresco”.
Em Aprendiz de Homero, Nélida Piñon perfaz um roteiro crítico-interpretativo que alia uma marca subjetiva visível em toda a sua prosa, ao expressionismo de afirmações seguras e pensadas racionalmente sobre a obra de numerosos autores, canônicos ou não. Por isso seu estilo pode, em certos instantes, oscilar e bipartir-se explicitamente entre o real e o onírico, entre a cidade e o campo, entre o antigo e a modernidade. E é neste ponto que ela faz a defesa da inserção do clássico no contemporâneo, e vice-versa. Disserta sobre o deslocamento das massas rurais para os alojamentos urbanos precários e compartimentados, descarnando certa aculturação proveniente do êxodo rural para as grandes capitais, da substituição da natureza e da vida simples pela luta desigual pela sobrevivência, que só permite de passagem e fugazmente a consecução do tempo e do lugar para o sonho.


UM POEMA DE MONTEZ MAGNO

Em 1978, o poeta e pintor pernambucano Montez Magno publicou Floemas, volume de poemas que se caracterizam por uma economia interna da condensação e da brevidade. Tais poemas encontram-se permeados de uma ironia vibrante e contundente, às vezes leve, com laivos de uma metafísica para cultivo próprio e de quem se dispuser a lê-lo. O primeiro poema de Floemas, cujo título aparece apenas no índice do livro como sendo o mesmo do primeiro verso, “Folhas livres, intactas, caindo”, traduz um firme contato com a natureza, a contemplação ativa dos elementos em volta e o roteiro áspero da memória:

Folhas livres, intactas, caindo
no chão macio do ar envolto em finas
substâncias e acaso.
Olho, e enquanto cai a folha se repete
pura e leve no gesto imaginado
na manhã de silêncios e afagos.
Traço no tempo, solta, a memória
de inúmeras esperas,
de imagens arquivadas, desenhos construídos e firmados
dos quais me lembro apenas a demora.

Aqui o movimento das folhas faz-se material pelo que as compõe de substância viva e ainda pulsante, e imaterial pelo acaso das imagens e sombras desenhadas. As folhas, em ambiência aleatória, se movem sem direção ordenada previamente até o solo. Há um momento em que alguém as observa e recria artisticamente, retirando-as da memória que não se emerge nem se manifesta com facilidade. Poemas com essa disposição contemplativa do movimento das “folhas” repetem-se em vários instantes da obra de Montez Magno, a partir de outros elementos como a chuva, o rio, o monte, o sol, a floresta, o deserto, o céu e a fonte.


PARACHOQUES

Toda poesia autêntica tem um fundo essencial de verdade:
Um substrato lírico que se faz visível, palpável e onipresente.


COTIDIANAS

1) Em 9 de fevereiro, Luzilá Gonçalves Ferreira deu a nota seguinte, na sua coluna do Diario de Pernambuco, Letras às Terças: Sobre mulheres - O blog de Luiz Carlos Monteiro desta semana está dedicado a mulheres escritoras. A destacar um estudo sobre Versilêncios, poemas de Gerusa Leal e A escrita da nova mulher, coletânea de artigos diversos, sobre aspectos da obra de Edwiges Sá Pereira, Ercília Cobra, Ignez Mariz, Virginia Woolf, Albertina Berta, Maria Augusta Meira de Vasconcelos. Suas autoras cursaram Letras na UFPE e são agora especialistas e grandes difusoras da literatura em colégios e Faculdades. Entre elas Andrezza Almeida, Irma Maranhão, Ana Maria Coutinho, Ilzia Zirpoli, Telma Dutra, Marli Hazin, Alcina Bechara. Endereço: http://www.omundocircundante.blogspot.com

2) Passei o Carnaval em Sertânia, como venho fazendo já há algum tempo. Revi velhos amigos, fiz outros novos, passeei pela terra sertaneja. Não se pense que lá não existe Carnaval. A abertura, na Praça de Eventos, foi feita pelo maestro Spok, cuja performance estendeu-se noite afora. Nas ruas, foram muitos os blocos e troças que desfilaram: o Bloco dos Garis, o Leite (apenas para mulheres), os Tangerinos, o Xerém, entre outros. Na quarta-feira de cinzas, exatamente quando retornava ao Recife, os foliões do Bacalhau do Romeu estavam em concentração na Rua Velha. É altíssimo o consumo de álcool, mas tudo correu em paz, sem nenhuma morte. Uma ou outra briga sem maior importância. Agora, pós-Carnaval, é hora de retomar o cordão de atividades interrompidas durante a folia.

3) Na sexta-feira 29 de janeiro, Nélida Piñon foi contemplada em Cuba com o Prêmio Casa de las Americas, na categoria Literatura Brasileira. Em maio de 2008, Homero Fonseca, então um dos editores da revista Continente, me pautou para escrever um texto sobre Aprendiz de Homero, o livro vencedor. O texto saiu em julho, na edição 91 da revista, e é o que vem republicado acima.


RELEITURAS

O comedor de sonhos - Cláudio Aguiar. A fábula de Uoromaca, o “maciste” halterofilista que representa, alegoricamente, a opressão e a violência nos países latino-americanos, quando passa a chicotear as pessoas, e elas gostam e pedem mais, formando-se aí a instituição nacional da Surra. O casamento exótico e extremado de Rosa de Windsor, a loucura de Dino Silas observada de fora talvez por outro louco que se pretendia normal e a sina de Juarez Morente que teve sua vida pessoal abalada porque lhe roubaram toda possibilidade de silêncio, perfazem recortes do substrato ficcional de narrativas de Cláudio Aguiar, em O Comedor de Sonhos. Neste livro, diferentemente de Caldeirão ou do longo ensaio sobre Franklin Távora, a prosa de Aguiar intenta ultrapassar, propositivamente, as fronteiras regionais. Tal prosa traz, no seu “corpus” de sonho aliado a uma espécie de erudição natural, a negação de reflexos localistas. Cada conto é iniciado pelas citações de autores ou referências a personagens de livros de domínio universal – A Bíblia, Aristóteles, Sêneca, o provérbio chinês, García Lorca, o guerreiro Napoleão. Apenas o texto “Os Cavalos Inteligentes” possui ambientação no Recife, e ainda assim, segundo o narrador, feito mistério “um tanto forçado pelas circunstâncias, se não me falasse mais alto essa inusitada compulsão de recordar um velho amigo”.


PONTO DE CORTE

Não te abateu a recusa
da comissão dos senis –

esse teu rosto de lutas
nunca tentou evadir-se –

se isto agora ocorresse
não mais serias inteiro –

se teu mister verdadeiro
por outra te parecesse

com falsas mortes em vida,
sem seu quinhão de argúcia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário