sábado, 27 de fevereiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XIII

O RETÁBULO DE JERÔNIMO BOSCH: UMA POÉTICA EM LOUVOR DA VIDA

Diante da poesia de Everardo Norões em Retábulo de Jerônimo Bosch constata-se, com margem razoável de acerto, que ele chegou a um ponto de sua criação que pode ser traduzido como domínio da palavra poética. Uma afirmação deste tipo suscita questionamentos, embora, de início, devam ser afastados resquícios da rigidez totalizante que sempre acompanham as afirmações. O fato é que Norões, um cearense radicado no Recife, vem mantendo um cuidado especial no manejo da linguagem poética desde os Poemas Argelinos (1981), porém se manifestando com mais força em A Rua do Padre Inglês (2006).
A Rua do Padre Inglês traz poemas que têm como características básicas a densidade e a precisão, onde se inclui com bastante desvelo a utilização constante de insights técnicos como comparações, metonímias e metáforas. E isto resulta numa multiplicidade de efeitos estilísticos, fonéticos e rítmicos buscados e rebuscados poema a poema, verso a verso, palavra a palavra. Assim como no Retábulo de Jerônimo Bosch, há poemas e palavras que estabelecem relações linguísticas, notadamente nominativas, fora da língua-pátria, e também retratam vivências, paisagens, situações, encontros e ausências referentes a outros países e regiões, que não apenas o Brasil.
Tal zelo em sua poesia se reflete na grande maioria dos versos e poemas que constrói, mesmo quando troca a rima pelo ritmo, a música pela liberdade da escrita, e isto sem sacrificar a fruição nem o reflexivo. O leitor verificará que alguma sonoridade esperada no andamento de um poema poderá, de repente, ser quebrada. O simples deslocamento de um vocábulo altera foneticidades óbvias, promovendo, assim, um novo olhar estilístico e, em consequência, uma nova maneira de ser ler o poema. É preciso, ao fim de determinadas estrofes, um retorno ao início do poema ou da estrofe para melhor verificar correlações específicas do poético como o emprego localizado de anáforas, aliterações, assonâncias e recortes rítmicos dissonantes.
Livro afora, os exemplos são numerosos. Porque ninguém se engane: mesmo o poema de inspiração, aquele que vem como um jorro na hora em que é escrito, passará por alguma transformação posterior. Muitos poetas, especialmente os românticos, não tiveram o tempo de vida necessário para definir as formas finais de sua escrita ou cotejar versões de um mesmo texto. Já outros, que viveram mais e puderam trabalhar melhor o que escreveram, na escolha, no acréscimo ou na supressão de palavras, conseguiram desvendar minúcias formais, promovendo a inovação de estruturas materiais em seus versos.
Norões fixa e rememora situações de conjunto que alertam para questões políticas ainda não totalmente esclarecidas. No poema “Os desaparecidos”, traça um quadro do que foi a destinação de quem se opunha ao regime militar no Brasil: a morte sem aviso ou lápide, o silenciamento de quem deixou de ser visto ou ouvido. Os versos retratam os acontecimentos velados e o poema assume voz coletiva e histórica. Mas podem fazer vir à tona a individualidade ansiosa de quem deseja escapar do desterro, à espera de um barqueiro símile dos mensageiros de boas-novas como em “Dies irae” (Dia de ira). Ou à espreita em “Janela”, um poema do bloco IV, que vale a pena ser citado: “Uma janela dilacera a paisagem:/ lá fora não é o meu país./ Arde a palavra estrangeira/ em minha palma:/ tempo traço giz.// O silêncio/ retalha nossa língua:/ há tantas horas tristes nesta tarde.../ A cal do muro aviva esse vazio/ e cala.”
Nos sete poemas do bloco V, intitulados Meditações de Frei Martinho de Nantes, percute a voz, a solidão e a persona histórica do Frei que cuidou dos índios Cariris às margens do rio São Francisco. Frei Martinho, do mesmo modo que a maioria dos religiosos que vieram para o Brasil na colonização, tinha muito de aventureiro, mesmo quando se pensa na sua missão educativa e doutrinadora. No seu roteiro missionário estava presente um modo de vida obstinado que nem as hostilidades ambientais do locus sertanejo, o convívio difícil com os indígenas, a demora na chegada de notícias da terra francesa o levavam a desanimar. A sua grande motivação talvez fosse legar, ao fim, um possível testemunho escrito aos séculos depois do seu.
A alternância entre o mundo rural nordestino e a vivência em outros lugares e países se processa através da subdivisão dos blocos do Retábulo. Em duas partes torna-se mais explícito o relato rural das vivências familiares. O bloco I mostra o “tempo caprino” no país do algodão: tudo ali se faz em lida e brancura, em breu e escuridão noturna, com poucos e bem vividos momentos de lazer. O poema pode ser desenredado da volta ao abrigo da casa para um trago e a refeição, do intervalo para a música, o sono e o voo, da desolação das mãos maternas que dizem adeus para sempre.
No bloco VI, exceto por “Os encourados”, nova designação para os vaqueiros que tangem e botam os bois no pasto ou em jornada, a religiosidade se destaca em poemas ainda que de teor profano como “Ofício” e “Bolero”, “As tias’ e “Natal”. Pode haver, como no bloco final VII, a interpenetração natural dos dois universos: “O quarto de Faulkner” aparece junto a “Os do vento nordeste”, estabelecendo associações entre o localista e o externo, o deserto da caatinga e a planície americana. Referências que se constatam e se repetem também em outros instantes envolvendo personagens nativos nordestinos e de outras paragens, sejam francesas, árabes, argelinas, latino-americanas ou italianas.
Everardo Norões escreve tanto sobre coisas simples, comuns e cotidianas, como sobre assuntos metafísicos, graves, não-fáceis e tensionados. Estabelece um equilíbrio entre as duas instâncias, sem apelo ao popularesco, mantendo sua inclinação de poeta erudito. Pode-se discordar dele, da metaforização intrincada que empreende às vezes, mas não se pode duvidar de seus firmes e definidos propósitos em poesia. Mesmo porque essa poesia tem o sentido de demarcar um espaço essencial e instigante no mundo para a louvação do amor e da vida.


UM POEMA DE LAU SIQUEIRA

Lau Siqueira é poeta nascido em Jaguarão (RS), mas vive em João Pessoa (PB) desde 1985. Do seu quarto livro, Texto sentido, retiramos o poema “Teia” que fala na mudança e no aprendizado de vida do poeta. Ele assume a atitude de quem retorna da viagem dos primeiros anos de juventude para o choque da vida cotidiana. Não aponta mais caminhos nem busca soluções políticas e existenciais datadas, voltando-se apenas para “o círculo visceral da existência”. Admite também que viveu uma espécie de loucura leve e sem decadência, o medo e a superficialidade que não incluía “a lapidação da alma”. A essência, agora, configura-se na vida em si, na radicalidade de sentir-se humano e frágil, atento e predisposto às vicissitudes e desencontros, contudo humilde e corajoso o suficiente para reconhecer que “pleno de [si] mim/ não sei [sabe] nem sou [é]”. Confira-se o poema:

então fui diluindo a loucura
ao compreender que a nascente
de tudo era um caos

urbano e diurno

aprendi a velejar pelas calçadas
como uma sombra entre sombras

sem inventar rastros
ousei vestir os sapatos da morte
e revelar-me ao círculo visceral
da existência

nem fui o
insano ou o decrépito humano

apenas despi a coragem e vivi
sem pele a lapidação da alma

perdi o que
não era essência

e agora
pleno de mim
não sei nem sou


PARACHOQUES

O país ansiado é uma fábula comum
feita de liberdade, alegria e justiça.


COTIDIANAS

Em 6 de fevereiro passado, o jovem Alcides do Nascimento Lins levou dois tiros na cabeça e foi morto defronte à sua casa, no bairro da Torre, no Recife. Até aqui nada de novo, não fosse Alcides um negro de 22 anos e morador de comunidade pobre que se destacou por ter passado no vestibular de Biomedicina da UFPE, com a melhor classificação entre os egressos da rede pública de ensino. Terminaria seu curso em setembro deste ano. Sua mãe D. Maria Luiza foi catadora de lixo e sentia um orgulho especial pelo filho. Os moradores da Vila Santa Luzia, onde morava, admiravam-no e conclamavam seus filhos a tê-lo como exemplo.
O fato crucial é que Alcides não foi morto em confronto com a polícia por algum tipo de contravenção que houvesse praticado. Foi executado por dois bandidos cruéis e alucinados porque não soube dar uma informação. Alcides poderia ter tido o mesmo destino deles: roubar, matar, estuprar, traficar. Mas tentou o caminho inverso, a busca de cidadania pelo estudo e pela persistência de quem praticamente nada tinha a seu favor. Seu sonho foi interrompido pela fatalidade inevitável de uma morte por motivo banal e desarrazoado. Um dos seus assassinos, menor de idade, já está encarcerado. O outro, de maior, conseguiu burlar o regime semi-aberto e fugir. Estive na missa em louvor de Alcides, no Centro de Convenções da UFPE, e verifiquei que uma espécie de comoção coletiva tomava conta de todos os rostos ali presentes. A sociedade, os colegas e familiares de Alcides nada mais têm a esperar do que a devida e necessária justiça para o crime.


RELEITURAS

Olinda: 2º Guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira – Gilberto Freyre. Em 2007, saiu a sexta edição de Olinda: 2º Guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira, obra de Gilberto Freyre de 1939, contando com apresentação e textos de atualização de Edson Nery da Fonseca. Trazia ainda as ilustrações do pintor Manoel Bandeira, o mapa turístico da artista plástica Rosa Maria e os desenhos e capitulares de Luis Jardim. Gilberto Freyre já tinha escrito anteriormente um Guia Prático para o Recife que serviu, inclusive, de inspiração a um poema de Carlos Pena Filho. Este de Olinda inicia-se com a origem do nome Olinda, que aborda desde a especulação bastante conhecida e atribuída a um criado de Duarte Coelho e depois ao próprio Duarte, para abarcar também monumentos, igrejas, conventos e prédios antigos da cidade. O mar comparece com sua beleza azul-verde e as jangadas, barcaças e canoas que o recortam. O Guia não deixa de falar sobre a forma como vivem os moradores de Olinda, seus trabalhos, hábitos, costumes e lazer. Sobre a luz de Olinda, Freyre escreveu este trecho: “É ela que dá às águas do mar que se veem do alto de qualquer dois oito montes de Olinda e aos montes da cidade que se veem do alto-mar, vindo de vapor da Europa ou dos Estados Unidos, do Norte ou do Sul do Brasil, a riqueza extraordinária de cor que encantou ao alemão Guenther e já tinha encantado o pernambucano Joaquim Nabuco”. Passagens como esta se sucedem no livro, tanto reafirmando o estilo sinuoso e elíptico do autor, quanto a sua forte sensibilidade poética. A prosa poética impregna o Guia de Olinda que se torna, assim, de agradável leitura, como a cidade e o leitor bem o merecem. E não só para quem é de Pernambuco, mas talvez muito mais para quem venha de outros locais ou cidades.


PARA SENTIR O TEU CORPO

É tão ínfima a distância
quanto viva a lembrança –

E é tão vivo e tão próximo teu corpo
que não se perde a esperança

2 comentários:

  1. Obrigado poe lembrar da minha poesia, amigo. Um grande abraço!

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  2. Caro Luiz Carlos. Grato pela sua crítica. Valeria a pena lutar pela reedição do livro de Frei Martinho de Nantes, com o belo prefácio de Barbosa Lima Sobrinho. Mas...quem se ocuparia disso?
    Forte abraço,
    Everardo Norões

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