segunda-feira, 19 de abril de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXI

AS CIDADES E A CULTURA

É um fato consumado que as capitais brasileiras se movimentam com grande avidez cultural, nos campos extensivos da arte e da literatura, nestes inícios do século 21. Ninguém pode negar que, em cada uma delas, há a insurgência de um surto cultural que jamais se revela em mero continuísmo de outras décadas e gerações, em espúria macaqueação de outras regiões e países. Mas somente quem pode absorver o melhor de gerações anteriores, saberá os rumos a tomar quanto à sua própria geração. Porque os artistas, intelectuais e escritores buscam caminhos que, se não trazem nada de extraordinário no campo da inovação e da inventividade, não se caracterizam apenas pela repetição e esvaziamento. No meio destes encontros, aparições e performances organizadas ou caóticas, há que separar a palha verde do milho, o manguito mofado e travoso da manga-rosa saudável e restauradora.

Em várias manifestações artísticas e culturais existe gente se destacando. Não será preciso alinhar Brasil afora tantos nomes das artes plásticas, dança, cinema, teatro, música, literatura. Todos os dias aparecem caras novas em jornais de grande circulação. Contudo, o hábito de ler jornal diariamente está cada vez mais perdendo espaço para uma visada rápida nas manchetes, para a leitura superficial e sem compromisso de um ou outro artigo. Está se tornando uma prática maciça acompanhar o que acontece localmente ou no planeta pela Internet. Gente de empresas privadas e públicas produzindo eventos de grande, média ou pequena dimensão, blogs e sites que proliferam geometricamente, mídias mais atuais e em voga que se popularizam do dia para a noite. O acesso do mundo se faz ao alcance da mão, desde as teclas de um desktop ou de um notebook. A característica geral e em vias de uniformização dos seres humanos do pós-moderno traz de volta o individualismo e a exclusividade dos ambientes virtuais em casa, no lazer, no trabalho, na escola, em todas as extensões setorizadas da vida social.

Rasgos da cultura rural convivendo com o mais ferrenho urbanismo, com espaço para todos que quiserem trabalhar e ousar. Forrozeiros, declamadores e violeiros bem aceitos por plateias ecléticas, abrangendo desde o pesquisador universitário dos núcleos acadêmicos fechados, passando pelo funcionário público sacramentado, pelos empreendedores de opções financistas menos ambiciosas, até chegar aos jovens iconoclastas em formação. No Recife há um pessoal tão ousado que faz de toda a cultura uma festa só. São escoceses deslocados em suas saias tropicais, meninas sem senso de humor de longos coturnos e cabelos curtíssimos. Os maduros, idosos e senhoras longevas abrigam-se em academias e sociedades culturais, sem perder o vigor e a alegria de continuar burguesamente produzindo, expondo e publicando.

Neste torvelinho de vaidades em escala estática e sem ascensão visível, uma interrogação saltita no ar, pois ela deseja encontrar o artista: o poeta, o ficcionista, o pintor, o ensaísta, o cineasta, o fotógrafo. O poeta que não acumule versos no papel ou na tela simplesmente, desarrazoado e sem o senso secreto do ritmo. O ficcionista que, dentro de seu remover-se ocidental e cósmico, mostre a que veio, e se poderá ser partilhado por tantas pessoas que a vista não alcance. O pintor que não saiba apenas misturar cores e tintas, e sim transformá-las em objetos de desejo, prazer e conhecimento. O ensaísta que, na ambiência de sua especialização, mostre-se desabrido e aberto às múltiplas manifestações da arte e da cultura. O cineasta e o fotógrafo que vejam mais do que a realidade chã logra propiciar, libertos dos naturalismos e impressionismos que teimam em espetacularmente ressuscitar.

Um objeto para se brincar como outro qualquer, e de preferência, para aqueles amigos mais à frente do tempo, é a crítica cultural multifacetada em crítica sorriso, crítica coluna social, crítica acrítica. A matriz larga e cilíndrica da crítica se transforma em coisa tênue, barato, curtição para estes simulacros de analistas da própria sombra e do umbigo alheio. Abastecem e confortam uns poucos egos, a retirar de suas pretensas obras e trabalhos vistos de passagem, um salto qualitativo que tais supostas obras não comportam nem podem gerar.

É impossível negar, entretanto, ainda quando se espalham vertiginosamente tribos, confrarias e guetos, que as grandes cidades não cochilam quando se trata de cultura. A maioria dos agentes culturais não tem votos, a não ser o próprio, embora quando unidos interfiram nos orçamentos disponíveis. Posam às vezes de lideranças políticas e sujeitos politizados, cuja popularidade não resiste à primeira sabatina, enquete ou provocação pública. É preciso reconhecer que, nos cargos culturais onde corre dinheiro, não está descartado um político profissional comandando em surdina. Verbas vs. votos. E vice-versa. É o braço amigo quem aprova projetos, oficinas, shows, publicações. Que é o mesmo braço inimigo e desconhecedor da cultura, a promover nulidades. Ninguém pode mais do que estes braços todos comprimidos e juntos em torno dos fogos ambíguos e utilitários.

Não basta somente liberar verbas para pessoas ou entidades. Tem de haver algo mais que atinja a população carente de acertos básicos. Com trabalhos pontuais que precisam do mínimo de dinheiro público. Eventos que à vezes se tornam mais importantes para uma cidade do que as costumeiras apresentações diversificadas em festivais, shows, oficinas, congressos, palestras. Um trabalho subterrâneo e sem alarde midiático, de poesia, fala e teatro popular, a exemplo do de Ariano Suassuna. Composto de aulas que param e mobilizam as numerosas cidades aonde chegam, mesmo sendo a divulgação restrita. Os resultados mostram-se avassaladores, pois exibem momentos e funções populares de alegria autêntica, conscientização artística e interação criativa.

Quando se coloca um político profissional num cargo de gestão cultural, o desastre é certo e esperado. Ele vai levar consigo amigos, correligionários e gente auto-indicada ou indicada por pessoas de suas relações. Daí ao nepotismo disfarçado em obscuras genealogias ramificadas e à ausência de estratégias e ações é um passo. Se o gestor, de outra parte, é um fazedor de cultura, poderá ter bom trânsito entre fazedores de cultura, mas, quase sempre, se mostrará sofrível administrador e político. Um terceiro caso é o do gestor que é apenas técnico na área envolvida, que poderá ser bom administrador, contudo não gozará de transitação política nem entre quem produz cultura.

Para o mandatário de um Estado ou de uma cidade, esta é uma equação difícil de ser resolvida. No seu íntimo, preferiam talvez nomear alguém da política, por motivos e injunções óbvias. Podem ceder à tentação de indicar um nome proposto em amizade. Ou pela mera competência técnica. O desejável seria, para os cargos da cultura, nomes que aliassem, além de compromisso cultural já comprovado, as três condições referidas: a política, a técnica e a cultural. Algo espinhoso de se encontrar nos dias de hoje, pois todo mundo tem a necessidade de especializar-se em alguma área ou matéria, como consequência dos avanços da globalização e da competitividade.


QUANDO LUCILA DESCOBRIU O AZUL DA POESIA

Chega um momento na vida de todo artista verdadeiramente criador em que aflora a urgência de uma guinada nos rumos e moldes de sua criação. Como algo que pode emergir na forma de ruptura de atitudes estéticas e valores humanos até então assumidos e praticados, gerada pela forte insatisfação com o já realizado. Na outra ponta do novelo, oscila o barco sóbrio e conformista de quem irreversivelmente se ajustou às injunções e exigências diárias de um questionável senso comum, que não ensaia nenhum passo fora das rotas e trilhos de antemão concebidos.

Para a poetisa Lucila Nogueira, esse instante de um novo caminhar pelo campo extenso, desconcertante e quase sempre desconfortável da poesia, se manifesta com o livro Desespero blue. É um caminho que se antecipa em outros textos, como no Livro do desencanto, quando ela se posicionava quanto a preferências artísticas e existenciais, ao escrever “Estou mais para Elis e Janis Joplin/ Florbela Espanca, eu sou Virginia Wolf” ou “tudo que em mim pareça comedido/ não passa de uma máscara de vidro”. Mesmo no livro da estreia em 1979, Almenara, essa compulsão para a liberação desejada e a frustração de não consegui-la, faz-se presente no fogo obscuro da alma “que a abismos se sabe condenada”.

Desespero blue tem sua referência estrutural aproximada a Imilce (terceiro volume da tetralogia ibérica, completada em 2001 com Amaya) pelo uso de versos entrecruzados em formas espacializadas, que propiciam mais de um modo e sentido de leitura, numa disposição visual que imprime grande flexibilidade aos poemas. A diferença de tratamento da matéria temática é flagrante: o modo classicizante e dramático de Imilce transplanta-se agora para os labirintos urbanos dos encontros noturnos e transgressivos. A impulsão feminina que não quer se deixar aprisionar pela incidência do experimentado, e por isso se desveste e despoja de todo o inquietantemente recente, incluindo-se aí a infância.

Em Desespero blue insurge-se uma outra Lucila Nogueira, conforme ela mesma afirma num verso, “essa outra que descobri carregar dentro de mim”. Os poemas estão dedicados a pessoas próximas, como espelhos de uma temporalidade contemporânea fragmentária, numa partilha que contempla inicialmente os amigos e posteriormente se estende ao mundo circundante sinalizado por “todos e qualquer um” (caso de dois poemas fortíssimos, “Desespero blue” e “Feminina / Masculina”).

A dicção escolhida ultrapassa certa solidão romantizada e suportável com esforço e sacrifício, ao cantar a ausência de algo inominável e interdito: “sei que a palavra não cessa/ a dor da solidão presa no corpo/ mas sei que escrever ajuda/ porque todo silêncio é perigoso”. E também ao demitir e expor o decoro que refreou por muito tempo os sentimentos mais profundos e subliminares do lírico, no embate consigo mesma e com o outro, tão próximo quanto irremediavelmente distanciado: “porque você nada sabe da insônia/ e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda/ e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar em tudo/ estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito”.

Entre os malditos que elege em “Desdizeres”, o delirante Antonin Artaud, que suportou a França surrealista em estado permanente de loucura, “o Torturado [que] tornou-se para todos o Reconhecido”; o velho bêbado e depravado Charles Bukowski, a praguejar no poema de Lucila, dizendo aos quatro ventos da América que “a vida gira sobre um eixo apodrecido”; a delicada e deprimida Sylvia Plath, falando em tom suave e suicida para si mesma que “morrer é uma arte, como tudo o mais/ isso eu sei fazer como ninguém”.

O conjunto dos versos deste livro vem à tona com vigor, sedução e ironia, preservando, contudo, o sublime daquela voz singularizada do início. São as palavras que seguem o poeta aonde quer que ele vá, com seu léxico estigmatizado pela passagem dos dias e na retenção disponível para uso individual e intransferível. Desse ponto de vista, Lucila não se afasta radicalmente de uma fala que a transformou, em duas dezenas de livros, na poetisa de obra reconhecida e solicitada que é, utilizando-se de formas fixas, com predileção especial pelas estrofes em quadras. Também jamais renegou o sentimento de grupo (que não configura alinhamento estético), e que, no entanto, definiu sua ligação à geração 65 de Pernambuco. Geração em que se alojaram poetas os mais diversos, a maioria tendo buscado a consecução de estilo próprio no mar demasiadamente caótico de confusões, impasses, engodos e disfunções da poesia contemporânea brasileira.

Desespero blue é livro para ser curtido ao som de um B. B. King e um Eric Clapton juntos, destilando o sabor instigante de um imaginário audacioso e ainda inalcançado. Neste embalo de vozes e cordas endiabradas, a fruição violenta de suas canções e notas logra perpassar com irreverência ímpar o ar de um tempo indiferente e amorfo, banalizado e incompleto. Onde se processa também a absorção de tais poemas sem mais contemplação passiva nem piedade atávica. Para que, na perspectiva única desse instante vivido pelo ouvinte-leitor, cheguem à superfície os meandros perigosos e as veredas subterrâneas de um mundo que se realiza no transitório de sua nudez e linguagem.

In: Suplemento Pernambuco, Recife, nº 43, set. 2009.


RUBEM BRAGA NO RECIFE

Em Gilberto Freyre de A a Z, dicionário elaborado por Edson Nery da Fonseca, o verbete “Prisões”, faz referência a uma crônica de Rubem Braga, intitulada Recordações pernambucanas, que conta como Freyre foi preso pela primeira vez em 1935, da qual recorta-se o trecho seguinte, que é parte integrante do artigo “Gilberto Freyre de A a Z”, deste resenhador, publicado na Continente Multicultural, em abril de 2003: “Gilberto naquele tempo andava pelos 35 anos, já publicara Casa-Grande & Senzala e estava acabando de escrever Sobrados e Mucambos, e era solteiro. E eu também era, o Cícero Dias também era. Assim fomos os três, num trenzinho da Great Western, à estação de Prazeres para subir o morro e participar da festa de Nossa Senhora, naquela igreja que domina as colinas de Guararapes, onde brasileiros e holandeses se guerrearam. Usava-se ir às antigas trincheiras apanhar folhas para benzer, pois as plantas dali tinham sido regadas pelo sangue dos heróis. E nas trincheiras aconteciam casos de amor. A certa altura Gilberto sumiu e, depois de muito procurá-lo, Cícero Dias e eu fomos até a estação: lá estava ele preso por um sargento, pois atentara contra a o pudor publico fazendo amor com uma jovem mulata no capim de uma trincheira. Custou muita conversa e algum dinheiro, mas libertamos o sociólogo. Coisa que convém referir para que não seja esquecida em sua biografia. Nestes seus maravilhosos 82 anos de idade. No entanto, Edson Nery põe em dúvida a veracidade do relato, ao arrematar que Gilberto Freyre disse a seu filho Fernando Freyre que tal prisão nunca ocorreu”.

Seja como for, isto serve como um dos registros da presença de Rubem Braga no Recife, de maio a setembro de 1935. Outras referências, textos e documentos existem, como a sua extensa biografia Um cigano fazendeiro do ar (São Paulo, Globo, 2007, 610 p.), que reflete esse e outros tempos. Escrita pelo também capixaba Marco Antonio de Carvalho (1950-2007), levanta com riqueza detalhista o longo percurso vivencial e nômade de Braga, até fixar-se no Rio de Janeiro. Um capítulo inteiro, “1935, Recife: Folha do Povo” é dedicado à passagem do cronista pelo Recife.

Aos 22 anos, Rubem Braga assume posições firmes no cenário político e cultural brasileiro. É antigetulista e combate um alto representante do catolicismo conservador, o crítico literário Alceu Amoroso Lima. Não poupa os poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima, que haviam lançado naquele ano de 1935 Tempo e eternidade, livro de poesia voltada para os preceitos cristãos. E não compactua com o integralismo de Plínio Salgado nem é comunista de carteirinha, embora defenda ideias e ações à esquerda, ao fazer parte de grupos paralelos da ALN – Aliança Libertadora Nacional, cujo presidente de honra era Luis Carlos Prestes.

Levado por António de Alcântara Machado, trabalha em O Jornal, dos Diários Associados, mas sua relação com Assis Chateaubriand é difícil, precária, instável. Alceu Amoroso Lima exige a demissão de Braga, tendo como causa um artigo do cronista em que este atacara a Igreja Católica. Esta crise culmina com a vinda de Braga ao Recife. Escreve Marco Antonio de Carvalho: “Dario de Almeida Magalhães propõe a Rubem que vá para o Recife e se junte à redação do Diário de Pernambuco, também dos Diários Associados, que já publicava suas crônicas; ele agradeceu e saiu em definitivo das proximidades de Chateaubriand, partindo para Pernambuco, de barco, seu meio de transporte preferido, entre o vento, o mar, o céu”.

Convive com os intelectuais e boêmios locais, frequenta a zona do meretrício e escreve crônicas que se popularizam em todo o Brasil. Faz amizade com Valdemar Cavalcanti, Manuel Diégues Júnior, Capiba, Noel Nutels, Fernando Lobo, Cícero Dias, Odorico Tavares e Gilberto Freyre, entre outros. Carvalho contabiliza 25 crônicas escritas no Recife para a Folha do Povo, jornal da ALN nordestina editado por Braga. Depois de três prisões, deixa a cidade em 13 de setembro, com destino a Porto Alegre e daí ao Rio de Janeiro.


O POETA AOS CINQUENTA ANOS

1

São cinco décadas

que pareceram

mais cinco séculos


a idade dele

no ano invicto

de dois mil e sete


poeta em trânsito

a remover-se

nesta cidade


mauriciana

de mar e plano

que é o Recife


sempre atento

ao urbano

de suas tribos


nunca esquecido

da terra-matriz

que foi Sertânia


dos arredores

de sítio e mata

da sua infância


em Cacimbinha

no Rio da Barra

ou Jacuzinho.

2

Percurso estreito

este que fez

do nascimento

até aqui:


da clara infância

à juventude

mais malograda

que desregrada,


de tantos nadas

e tantos nãos

que enfrentou

sem se dobrar,


veredas falsas

e traiçoeiras

que desvendou

sem vacilar,


abraços frouxos

que devolveu

sem comoção

nem confiar.

3

Caminho raso

e enviesado

de nordestino

tímido e ambíguo,

pretenso e falho

como escritor.


Caminho obscuro

de estudante

desnorteado

e presunçoso,

e assim frustrado

como doutor.

4

Em cinco décadas

que se estenderam

quais cinco séculos

pagou bem caro

sua performance

desintegrada

em estilhaços

da agonia

louca e diária,

sem calmaria

mas necessária

da vida prática;


pagou com juros

sua poética

fragmentada

entre a escrita

precisa e rara

que concebeu

e o resultado

tacanho e parco

dessa poesia

que cometeu.

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