sexta-feira, 7 de maio de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXII

FERNANDO MONTEIRO & ANNA AKHMÁTOVA:
UM DIÁLOGO POSSÍVEL DA POESIA OCIDENTAL

Pode parecer estranho um poeta escrever todo um poema longo estimulado pela visada instantânea e avassaladora de um rosto feminino numa fotografia antiga. A imagem em preto-e-branco deflagra uma viagem ao fundo da herança poética e cultural planetária acumulada, que passa a envolver referências antigas, presentes e em constante progressão resguardadas no seu refluir greco-romano, medievo e iluminista, e somadas aos oráculos orientais nas vastas paisagens de montanha e deserto. Completando esse veio elastecido em verticalidade poética e desdobramento cultural que atravessa os séculos, do 19 em diante são trazidos a lume e em razoável proporção os rumos e descaminhos reinventados e deslindados pela poesia de amor e de guerra no Ocidente.

Antes deste Vi uma foto de Anna Akhmátova, Fernando Monteiro já carregava em seu fazer literário um êxito comprovado por várias obras de ficção e poesia que ultrapassaram as fronteiras locais. A escrita de livros alternando-se numa fatura estética que contemplava certa diferenciação peculiar entre cada um dos volumes lançados, mesmo pensando-se naqueles de prosa seriada. Na elaboração de poesia, cada texto mostrando-se formalmente desvinculado do anterior, o autor não se distanciando da inteireza de seu estilo, permitindo que traços diccionais e itens de linguagem se tornassem reconhecíveis em sua maneira adotada desde os começos.

Para citar sem consulta, lembre-se aqui esse percurso poético a partir de Memória do mar sublevado, sua estreia em 1973, apresentando um canto solene repleto de ancestralidade e dinastia faraônica. Um balanço enviesado de vida pessoal foi Leilão sem pena, publicado na voga pernambucana da Pirata, num tempo de resistência política, culto entusiasmado ao cinema e incursão pelas artes plásticas. Monteiro vai passar por uma experiência de especial inquirição metafísica em A interrogação dos dias. Sem perder de vista o impulso e o empenho empregados no ritmo ágil, mas que às vezes se arrasta, transparente e obscuro ao mesmo tempo, temperado fortemente pelas passagens de melancolia e depressão e pelas tiradas da sensibilidade irônica. E chegará, quem sabe se em simultaneidade, à exatidão centrada na consecução milimétrica de vocábulos, versos e estrofes em cadência matematicamente obsessiva com Ecométrica.

Em Vi uma foto de Anna Akhmátova uma solidariedade surda e rebelada vasculha o lastro histórico de guerras e revoluções repisadas de sangue dos inícios do século 20, trazendo a lume as numerosas e insanas perseguições que sofreram poetas e cidadãos pelos regimes ditatoriais que se locupletavam de sua própria indiscriminação ideológica. A poetisa Anna Akhmátova encontrava-se no rol de censura e cerceamento promovidos pelo Estado russo, que deixou marcas inapagáveis de violência. Os burocratas e dirigentes russos imaginavam que, para a manutenção do regime comunista, seria necessário alinhar ou expurgar os dissidentes, torturando e fuzilando intelectuais, artistas e poetas. Sendo um texto realizado a contrapelo de toda e qualquer tirania, descarta as viseiras da genuflexão política e revela uma faceta social permeada pela constatação corrente, porém sem a amplitude dos resultados práticos, de que qualquer atentado à liberdade do homem sufoca-o e termina por eliminá-lo. Uma opressão sustentada em atos abjetos e excessos de violência difíceis de suportar, faz com que se perca temporalmente a inclinação humana para os desvelos da convivência comum cotidiana e pacífica, na qual, em boa medida, podem ser buscados elos vitais do artístico e do criativo.

A cerveja da Boa Vista não desemboca no chope da Guararapes, e a presença de poetas pernambucanos se afirma indiretamente (Carlos Pena, Bandeira, João Cabral). A inclusão en passant de outros poetas reconhecidos como de alcance nacional reabre velhos problemas, tanto pela absorção questionadora de sentido e matéria abordados, quanto pela negação estética e conceitual que transita nas vias marginais do confronto temático e do modo de expressão de uma época (Drummond e Mário de Andrade). Aqui, na condição interna de leitor crítico, o poeta não resiste e associa sua própria experiência com o poético à experiência desses poetas que se encarregaram de transformar, ao longo de seu tempo, vida em poesia. Há uma transplantação de culturas poéticas em choque para instantes paródicos, miméticos e declinantes únicos, na tentativa de absorção do poema como um todo, afastada do unilateral e aproximada dos sentidos não vistos a olho desprevenido.

Este poema dedicado a Anna Akhmátova, estabelece um diálogo com a poetisa e esmiúça relações pessoais existentes talvez apenas no plano do imaginário da criação. A transferência empreendida flagra sexualidades latentes nas tramas veladas das funções solitárias e desejos indizíveis. Faz aflorar os meandros do prazer algo irracional que consome a sucessão de imagens profusas e apaga os rasgos detalhistas de corpos em solidão ou conjunção carnal, com sua atração irrefreável pelo impossível, o mórbido e o proibido. Morto o corpo, distanciada a alma, os atos se enfronham no presente da imaginação movida pela tremenda insatisfação, compulsão e efemeridade que impulsionam e dominam os jogos sensuais. E Anna vai assumir o papel de Mãe Maior da Poesia, irmã e filha, deusa e mulher, musa e amante.

Fernando Monteiro utiliza largamente esquemas e procedimentos expressivos como associações imagéticas em encadeamentos, enjambements e no palavra-puxa-palavra. Com o sabor diferencial de quem tem fôlego suficiente para manter um ritmo acelerado e eficaz na confecção de recortes, intrusões e incisões no corpo do poema, procura evitar o derramamento baboso e as celulites da fala. Por isso, sua dicção traz uma espécie de contenção cerebral inevitável por ser o autor quem é, por ser quem jamais escondeu sua erudição nem os propósitos de fazer alta literatura.

Neste poema, existem evidências que outros analistas podem facilmente identificar, como os ecos percussivos da “terra arrasada” de Eliot que remetem aos metafísicos ingleses e simbolistas franceses. A visão baudelaireana marginal das ruas que lembram Clarice Lispector e Anna Akhmátova, ambas ucranianas, uma tendo vivido no Recife e a outra fisgada no expressivo da fotografia interna a uma antologia de poesia russa comprada num sebo naquela tarde de setembro de 2001. A aquisição do livro suscita a questão de trocá-lo por cervejas em promoção nos botequins das imediações centrais da cidade, considerando-se a oportunidade de absorver o calor tropical em goles gelados e observando a surpresa indiferente da fauna humana que transita pelos becos, ruelas e praças.

Vi uma foto de Anna Akhmátova não foge da contemplação performática que reconcilia o poeta com o espírito pós-moderno e a alma cósmica. São desencavadas vivências cotidianas e situações particulares somente conhecidas, no andamento da construção do poema, pelo próprio poeta. Paisagens à aparência inalcançáveis e pouco acessíveis a quem está de fora, porém pressentidas em pequenos flashes, que ora se perdem no instante, ora são captadas pela sutilidade da poesia, mesmo que em regime de incompletude. E mesmo que seja assim, o poema continua a ofertar um conjunto de imagens em movimento alternado entre o veloz e o estático. E fornece também uma nova cinética e um novo dinamismo ao olhar que enxerga poesia na escuridão mais cerrada, cuja desfocação persiste sobretudo no encobrimento de estágios sensíveis da fruição humana optante pela não-destruição da vida no mundo.


A MULHER FLUTUANTE

Estavam todos completamente sem ação, todos que ali transitavam naquela hora da manhã sob um sol impiedoso de outubro. Homens e mulheres sem idade e sem rosto, mudos e perplexos ante a cena de transgressão milagrosa que se desenrolava na rua central da cidade. Ônibus, carros de aluguel e de passeio, motos e bicicletas entravam em rota de colisão com seus condutores acionando os freios para melhor ver a mulher. No mesmo passo de perturbação e curiosidade, a gente das lojas, bancas, fiteiros e botequins estancava a venda de roupas, sapatos, sonhos lotéricos, miudezas da ganga pirata, cachaça e cigarros.

Ela começou por acariciar o vestido que parecia feito da conjunção de pedaços de pele de tomate intensamente plástico e vermelho com farelos de carne de cenoura de um amarelo queimado. Contrastando com os raios ofuscantes do sol, o moreno saliente e destacado das coxas, do rosto e dos braços que iniciavam um movimento leve e sutil em direção ao secreto de auréolas e bicos, de pelos agressivos e imantados no seu absurdo brilho e negror, instigando promessas de desvelar e encontrar na caverna aventurosa e sugestiva de paisagens e recantos novos a safira preciosa e ansiada de um mundo cósmico inaugural.

Ela caminhava uns poucos passos e depois parava para contemplar o corpo que era seu pertencimento e danação narcisista, como se não houvesse mais ninguém do lado esquerdo da rua. Não andava, pois seu caminhar era um bailado abençoado por todos os deuses e entidades impossíveis e inimagináveis ou que porventura tivessem existido. Nela tudo era rubro e amarelo, as unhas e lábios flagrados em esmalte e batom, os botões redondos de osso do vestido agora lascivamente aberto, o magnífico corpo flutuante e a presença radiosa, os adereços que ela não precisava para compor sua beleza.

Era um caminhar preguiçoso que descobria quadris ousados e divididos em duas partes simétricas e absolutamente distintas, que encarnavam um complemento de loucura e prazer circulante para a órbita voyeurista no feitio assemelhado da rua. Abriam-se passagens de magia ancestral para um presente demasiado feroz e cruel, onde se entranhavam as duas vertentes oscilando entre o escuro e a luminosidade, ensaiando um mergulho definitivo e fatídico para outras veredas desconhecidas e inusitadas.

O trânsito parado, os pedestres acotovelando-se, a pulso dando o espaço necessário para melhor apreciação do espetáculo da mulher em se livrar de sua nudez parcializada e consentida, evoluindo para uma nudez maior, mais livre e sexualizada. Nela nada poderia agredir quem quer que fosse, naquele instante em que era como um turbilhão de carne que revirava o olhar mendicante dos homens e indignava a visada clínica das mulheres.

Ela era a mulher na inteireza de sua nudez, na simbolização secular do pecado original. E todos, com especial fervor os homens, eram adões que talvez não merecessem doar àquela divindade sensual e carnal os ossos da costela não mais edênica. Porque já estavam impregnados da fuligem urbana da cidade destruída pela lama e sujeira, dos dias e das noites reinventados em carência irremissível por uma imaginação paralisada, debilitada e excessivamente inchada das coisas artificiais.


O ENTREVERO DE LAMPIÃO COM MEIA-NOITE
OU O LIMITE DA TENSÃO NA CAATINGA

I

Sem que naquele instante
de tensão atingindo o limite
no bando de cangaceiros

ninguém tivesse a ousadia
de se pronunciar ou mover-se
um passo ínfimo que fosse

e então sorrateiro ou explícito
mas nunca desavisado
pensasse em intervir ou meter-se

em ingresia tão grossa e certeira
ao intentar demonstrar ou fazer
um gesto qualquer de boca

ou ligeiro usar ao acaso
as mãos e os dedos nervosos
de agilidade feroz e treinada

que nem mesmo no lazer ou repouso
prevenidos não se separavam
do gatilho e da lâmina das armas

para se postar de um lado da briga
e firmar posição ostensiva
de lealdade-defesa-amizade.

II

Depois do ataque a Souza
naquele ano de vinte e quatro
Meia-Noite discutiu feio
com dois dos irmãos Ferreira.

Levino e Antônio tramaram
naquele Agosto agourento
uma enviesada partilha
dos restos do roubo e pilhagem.

III

A desavença está feita
e é preciso a interferência
urgente e destemerosa

do chefe dos cangaceiros:
há uma situação radical
de decisão e bravura,

irrepetível e único
eis um momento total
de ferocidade e loucura.

IV

Definidor é agora o confronto
para a liderança de Lampião
desacatado por Meia-Noite.

Naqueles sertões bravios
o negro desaforado
a vivente nenhum respeitava.

E a autoridade legítima
de Virgulino famoso e cruel
não mais reconhecia ou atestava.

Naquela hora incendida de ira
estavam em xeque as vidas
de homens sem medo da sina.

Na caatinga o vento escondia-se,
as nuvens ficaram paradas no ar
e o Sol recoberto de cinzas.

Lampião está calmo e frio
como o seu punhal preferido
sempre sedento por sangue.

Por ora não pensa em fama,
ouro e dinheiro esquece,
quer apenas resolver o conflito

mesmo sem vocação de pacífico,
pois no seu íntimo admira
a valentia do ousado bandido.

V

Meia-Noite desafia o bando
gritando em alto e bom som
que na cabroeira canalha
ninguém ali é tão macho
para diretamente enfrentá-lo
ou apreender suas armas.

Maria Bonita ainda não conta.
Não apitam Jararaca ou Sabino.
Lampião está lúcido e severo,
porém concentrado e em vigília,
relegando até a vingança paterna
a um plano passado e antigo.

Sabe que Meia-Noite é capaz
de impiedosamente matá-lo.
Do mesmo modo que o negro
tem também Lampião seu destino
na palma das mãos ou nos dedos,
nos desfechos de punhal ou de rifle.

Um irmão morto não será importante
no desafio que o instante lhe impõe.
E contra o protesto mudo do bando
libera o homem sem um arranhão.

In: O cangaço na poesia brasileira: (uma antologia). Seleção e prefácio de Carlos Newton Júnior. São Paulo: Escrituras Editora, 2009.

2 comentários:

  1. Viajei lendo MULHER FLUTUANTE NO COMPRIDO DA RUA. Grande texto.

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  2. http://mundodek.blogspot.com/2008/03/anna-akhmtova-alma-feminina-alma-russa.html

    síntese proveitosa acerca de Anna Akhmátova.

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