O PRÍNCIPE MALDITO:
MAZELAS DA REALEZA BRASILEIRA
Não será novidade para os que fazem a comunidade histórica brasileira alguma notícia sobre o livro de Mary Del Priore, O príncipe maldito, por ocasião de sua reedição recente, no Rio de Janeiro, pela Objetiva. É provável, no entanto, que para muitos leitores que não tiveram imediato acesso ao texto, que perderam a oportunidade de lê-lo ou pelo menos folheá-lo na primeira edição em 2007, resenhá-lo agora sirva para chamar a atenção para alguns pontos e problemas. O fato é que a partir do subtítulo expressivo, Traição e loucura na família imperial, o leitor começa a imaginar o que virá nas suas páginas. E, realmente, a autora corresponde ao que se propôs num relato pungente e apaixonado, numa escrita de quem não mediu esforços para chegar ao seu objetivo, através do conhecimento detalhado do seu objeto. Porque nada parece escapar ao olhar de lince da historiadora.
Infância, internato, viagens, estudos, o privado e o externo são investigados com grande riqueza nominativa e documental através de pesquisa abalizada, exaustiva e segura da maioria dos eventos e relações familiares e sociais que absorveram o príncipe Pedro Augusto de Saxe e Coburgo. “O menino que queria ser rei” titula o primeiro capítulo, que enseja uma visada panorâmica em câmara lenta da chegada do navio Boyne, fazendo retornar o imperador Pedro II de terras europeias, no dia 1 de abril de 1872. O imperador, acompanhado de D. Teresa Cristina e dos netos Pedro Augusto e Augustinho, entra no Rio de Janeiro aclamado, recebido acaloradamente pelas forças aliadas que compreendiam ministros, militares, políticos, comerciantes, acólitos, cortesãos e populares. Fizera a viagem de dez meses para, entre outras coisas, visitar o túmulo da filha Leopoldina na Áustria, que morrera um ano antes de febre tifoide.
O príncipe Pedro Augusto, nascido em 19 de março de 1866, estava com seis anos e trazia esse triste legado da perda da mãe Leopoldina, além da ausência constante do pai Luis Augusto de Saxe e Coburgo, o Gusty, que pensava mais em caçar do que dedicar-se aos filhos. Gusty nutria esperanças de completar o quinto império de príncipes austríacos, alemães e ingleses, através de seu filho Pedro Augusto, que alimentava a possibilidade de expansão dessa dinastia europeia, nos anos em que a aristocracia era substituída pela burguesia em ascensão, cresciam o industrialismo e o comércio com evidências nos sinais de consumismo e de uma nova consciência da classe trabalhadora.
Posteriormente, a convivência conturbada com a tia Isabel e o seu esposo francês Gaston, o conde d’Eu, foram experiências que se somaram e levaram Pedro Augusto a estágios constantes de desequilíbrio emocional. O seu suporte era o avô, o imperador Pedro II, que o protegeu e educou após a orfandade, além de alimentar a ideia de tê-lo como seu sucessor. O imperador incentivava também a princesa Isabel a lutar pela sucessão. Essa posição dúbia de D. Pedro II teria consequências desastrosas para a família imperial e a monarquia. Ela iria permitir uma guerra surda, que duraria muitos anos, entre o neto Pedro Augusto e a princesa Isabel. A conspiração de ambos os lados era flagrante: Pedro fez aliados entre os liberais e até entre os republicanos, enquanto que Isabel tinha a seu favor abolicionistas e a gente da Igreja Católica. A circunstância de ser a filha mais velha do imperador dava-lhe direito constitucional ao trono nas viagens de Pedro II. O seu primeiro filho homem seria o sucessor natural, que nasceria somente em 1875, defeituoso de uma mão e recebendo o cognome real de príncipe do Grão-Pará. Representava uma ameaça a mais aos planos de Pedro de Alcântara, que ficara tão irado, invejoso e ressentido quanto a princesa Isabel, nove anos antes, no momento do nascimento do próprio Pedro.
A carolice da princesa e a assinatura de leis abolicionistas serão suas fraquezas maiores na luta pelo trono, gerando antipatia de uns (políticos, maçons e fazendeiros) e empatia de outros (escravos e católicos). Aliás, a passagem de Deodoro da Fonseca, antes amigo e comandado do imperador, para o lado dos republicanos, foi tida como um ato de vingança e retaliação contra Gaston, genro de Pedro II e marido de Isabel, que lutou na guerra do Paraguai substituindo Caxias, cometeu vários equívocos e deslizes arriscando vidas de brasileiros, tendo, entretanto, voltado como herói.
Uma viagem de Pedro Augusto com os avós à Europa entre 1887 e 1888 revela as suas qualidades de bon vivant, de engenheiro conferencista e colecionador de minerais, do articulador de si próprio visando o reinado brasileiro. Foi recebido pela nobreza do Velho Mundo e chamou a atenção da imprensa por onde passava, que não deixava de registrar positivamente os eventos dessa viagem. Há rumores de um suposto casamento do príncipe e as pretendentes são muitas, mas ele, solitário inveterado, pensando somente em reinar, e mesmo depois de ver frustradas suas aspirações, permanecerá solteiro por toda a vida, não tendo jamais se livrado dos efeitos da ausência do amor materno.
O acompanhamento cronológico da situação histórica da segunda metade do século 19, dos seus eventos políticos, literários e artísticos pelo mundo, autoriza a classificação do livro como literatura de não-ficção. Isso gera, também, efeitos perceptivos de outra ordem, como o deslocamento e a interpenetração de datas, estabelecendo o sincrônico de algumas décadas. Contudo, aparecem momentos em que Del Priore se deixa seduzir pela ficção, ao utilizar recursos desta, apesar de não se afastar totalmente da imagética realista renitente, da metáfora dura dos narradores historiógrafos e da ironia severa decalcada em pontos inesperados do texto. O relato biográfico excessivamente datado e descritivo transcende o histórico em passagens e trechos em que a escritora se aproxima da crônica em fragmentos e instantâneos da ficção, dando lugar a insights narrativos bem característicos do texto literário.
O príncipe maldito tem o mérito de humanizar a família real brasileira, de olhos azuis e ramos mais que misturados, a exemplo dos opostos Orléans e Coburgo. A obra mostra ainda que a estirpe da nobreza era tão mortal e tão suscetível a fatores externos e cotidianos quanto qualquer pessoa que não fizesse parte dos seus círculos fechados e reservados. O leitor, qualquer leitor, especializado ou não, se acaso entrar no embalo da leitura, terá dificuldades em abandonar o livro antes de ter virado a página final.
A loucura do príncipe D. Pedro vai intensificar-se ainda mais após a expulsão da família imperial do Brasil, com a proclamação da República. Tentará o suicídio, será internado em manicômios e clínicas, e falecerá, aos 68 anos, no sanatório austríaco de Tülln. E se aquele leitor optar por conferir depois as páginas pretas em tipos brancos que iniciam o livro, não sem intencionalidades editoriais visíveis, conhecerá as raízes de todas as mazelas do príncipe Pedro Augusto, em convulsão, isolamento e exílio na cabine de um navio em direção à Europa, sinalizadas pela morte precoce da mãe e pela não consecução do trono brasileiro.
UM POEMA DE SEVERO SARDUY
O cubano Severo Sarduy (1937-1993), adotou a escrita do grupo agora menos disperso de poetas e prosadores neobarrocos latino-americanos. O texto que se vai ler encontra-se no livro Jardim de camaleões: a poesia neobarrooca na América Latina (2004), organizado por Cláudio Daniel. O poema “Morandi” foi traduzido por Glauco Mattoso e representa uma espécie de homenagem ao italiano Giorgio Morandi, um inovador da pintura de natureza-morta. Sarduy nomeia os objetos e depois os apresenta nas suas relações com o ambiente, vívidos em sua nitidez e obscuridade, como se partilhassem do movimento e da inércia de todas as coisas. Mostramos a versão bilingue do poema:
MORANDI
Uma lâmpada. Um copo. Uma garrafa.
Sem outra utilidade ou pertinência
que estar ali, que dar à consciência
um casual pretexto, mas não grafa
o traço humano que ora inflama, abafa
a luz ou que ali beba. Em tudo a ausência:
paredes que, caiadas, dão ciência
que ali ninguém repousa nem se estafa.
Somente é familiar a luz acesa
que põe sobre a toalha posta à a mesa
a sombra que se alarga: o dia quedo
do tempo o passo segue em sua vaga
irrealidade. A tarde já se apaga.
Abraçam-se os objetos: sentem medo.
MORANDI
Una lámpara. Un vaso. Una botella.
Sin más utilidad ni pertinencia
que estar ahí, que dar a la consciencia
un suporte casual. Mas no la huella
del hombre que la enciende o que los usa
para beber: todo há sido blanqueado
o cubierto de cal y nada acusa
abandono, descuido ni cuidado.
Sólo la luz es familiar y escueta
el relieve eficaz: la sombra neta
se alarga em el mante. El día quedo
sigue el paso del tiempo con su vaga
irrealidad. La tarde ya se apaga.
Los objetos se abrazan: tienem miedo.
CÉSAR LEAL, CRÍTICO
A obra crítica de César Leal foi publicada em dois volumes intitulados Dimensões temporais na poesia & outros ensaios (2005). que somam mais de 1.100 páginas. Os textos enfeixados no volume 1, às vezes revistos, contemplam ensaios e estudos antigos já publicados em outros livros como Os cavaleiros de Júpiter e A palavra como forma de ação. São republicados estudos memoráveis sobre autores universais e de há muito consagrados como Dante, Thomas Mann, Gil Vicente, Camões. Entre os ensaios sobre brasileiros, Machado de Assis, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Pena Filho. Este volume mantém uma certa coerência sinalizada pelos autores escolhidos, que representam uma linha de pensamento ao nível da competência poética tanto em seus aspectos clássicos como nas incursões pela modernidade.
Os trabalhos mais novos, às vezes inéditos em livro, que mostram uma produção mais eclética, ficaram para o volume 2, com textos sobre artes plásticas, teoria e história literária e ainda um bloco final com diversos poemas-homenagem dedicados a outros escritores ou a amigos do autor. Podem estar juntos, neste volume 2, poetas tão diferenciados e díspares como Ezra Pound e Weydson Barros Leal, Soares Feitosa e Octavio Paz. O fato relevante é que no âmbito da crítica literária ele fez sempre questão de deixar clara sua opção pela crítica de poesia, desde o aparecimento dos primeiros trabalhos em forma de artigos ou conferências na década de 1950. Sob esse ponto de vista, não se esquivou à problematização dos movimentos e tendências críticas mais importantes do passado e do presente – o new criticism, o estruturalismo, o formalismo russo, o impressionismo, o desconstrucionismo. Os preceitos propalados pelos grupos literários que assinam tais tendências o levaram a servir-se de um amplo acervo teórico para utilização analítica e interpretativa no poema, resultando numa propensão para enfatizar mais o efeito dos elementos expressivos do que comunicativos em poesia.
No ensaio “A crítica literária no Brasil”, registram-se afirmações que apenas corroboram o que pensa a respeito de poesia e técnica expressiva: “Na modernidade, o importante no poema não são os seus materiais, mas a técnica expressiva. Compreender um poema é compreender sua forma, sua estrutura linguística, seus sinais, suas obscuridades, pois a poesia moderna está escrita assim e não como desejariam seus críticos, seus autores, os apreciadores e desapreciadores de sua expressão. Expressão do poeta ou expressão do estilo que eles representam. Temos, ainda, de levar na devida conta aqueles críticos sofisticados aprisionados em seus próprios sistemas, ou os que não admitem modificações no cânon das artes”. Alguns autores imprescindíveis para ele, principalmente ingleses, alemães e norte-americanos, podem encontrar-se hoje um pouco afastados das discussões literárias, sendo, no entanto válidos em setores isolados e em compartimentos específicos de suas obras, a exemplo de T. S. Eliot, Ezra Pound, Dr. Richards, E.R. Curtius, René Wellek, e ainda Hegel e sua estética, que aparece constantemente no sistema crítico de César Leal.
No exercício público da crítica, César Leal especializou-se e revelou idéias próprias a partir de suas reflexões e leituras, assumindo a defesa de uma associação poesia-crítica-ciência, com a vinculação do poeta e do crítico às tendências da física de nossos dias, para enriquecer o instrumental científico-literário e humanista de ambos. E isto, para uma melhor compreensão do universo pós-Newton, com o acréscimo da relatividade e da multidimensionalidade do espaço-tempo. Com o elastecimento do universo, seria ideal que o homem também fosse privilegiado com a abertura da sua própria cabeça, com um pensamento que se distanciasse cada vez mais da barbárie e das práticas reacionárias e retrógradas, adquirindo uma visão voltada para o futuro e para a busca de um mundo melhor. Tal percepção cosmológica se sustenta nas mudanças que não poderiam deixar de acompanhar aquelas transformações científicas e tecnológicas socialmente benéficas e suas contribuições ao desenvolvimento, na atualidade do tempo, de um espírito cosmopolita cultivado e culto, amante da poesia e das artes.
A combinação de erudição com um forte estilo argumentativo, não representaria elemento motivador definitivo para que seus desafetos – a quem chama de “filisteus”, e desautoriza pela carga de intuição que demonstram, embora decline de dizer seus nomes – afirmassem que a crítica e a poesia de César Leal seriam excessivamente intelectualizadas. A leitura de seus textos críticos, de um modo geral, se verifica no âmbito da exposição clara e da expressão compreensível, mesmo que alguns assuntos tragam dificuldades imponderáveis para serem explicados e absorvidos. O ensaio curto pode vir iluminado por uma súbita reflexão ali colocada para deleite, informação e também reflexão do leitor.
Outra qualidade de sua crítica é a sinceridade de propósitos que encampa, sem deixar de apontar as fraquezas de concepção ou realização de autores que ele mesmo admira, mas sem se recusar também ao elogio como reconhecimento da excelência textual. Em muitos momentos, César Leal poderá parecer alguém que detém uma boa fatia do saber literário, contudo sem ser partidário de uma prática exclusivista da retenção de idéias e afirmações, fazendo questão de alardeá-las e divulgá-las onde quer que possa chegar o seu alcance. Esta edição comemorativa dos 80 anos do poeta-crítico, organizada por ele mesmo, tem uma função didática irreprimível, pela vasta informação histórica, pelo desempenho teórico sem vacilações e pela responsabilidade das opiniões e julgamentos emitidos, que apenas promovem a ampliação do conhecimento literário, contemplando desde a época dos clássicos até os dias mais recentes.
“César Leal, crítico”, Continente Multicultural, ano VI, nº 61, jan. 2006.
Prezado Luiz Carlos
ResponderExcluirPenso quea tradução do belo poema de Severo Sarduy não foi boa. A ligação entre a 1a. e a 2a. estrofe do original não se refez no traduzido. O branco da cal também não fica no olhos de quem lê a tradução.
Mas o mais importante é a sua, Luiz Carlos, revelação do poema, que eu não sabia. Grato.
Querido Luis Carlos Monteiro,
ResponderExcluirMuito obrigado por enviar o link de seu belíssimo blog. Seu blog é muito importante para nós blogueiros literários. Como poeta e historiador que sou não poderia deixar de referenciá-lo. Muito obrigado por me conceder o privilégio de conhecê-lo. Ficaria muito feliz se vc retribuísse a visita, passando por meus cantos. São eles:
http://emaranhadorufiniano.blogspot.com
e
http://po-de-poesia.blogspot.com
Já estou lhe seguindo.
Evoltarei com mais calma para ler a cidade e as culturas. Li por alto e me interessei muito pelo artigo.
Grande abraço e não deixemos de mater contato. Quando passar por lá não deixe de comentar. Seus coment´rios e suas críticas(já que vc também é crítico literário) serão muito importantes para mim.
Atenciosamente
Marcio Rufino
Indicação ao Prêmio Dardos!
ResponderExcluirSelo criado pelos autores Junior Vilanova (Contactos Imediatos) e Olga (Pensamentos, Ideias e Sonhos). Trata-se de um reconhecimento dos valores que cada um emprega, ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc.
Informações: http://dapoesiaaocaos.blogspot.com/; http://pensamentosideiasesonhos.blogspot.com/; http://lepoeteenfleur.blogspot.com/