segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Notas Marginais II

Apresento um trecho do meu livro Para ler Maximiano Campos (Edições Bagaço, 2008), que fala basicamente sobre a faceta de contista do escritor. Neste livro, construí um roteiro sobre a escrita de Maximiano Campos, trazendo a público a análise breve de sua obra, cronologia, iconografia, opiniões sobre sua ficção e recortes de livros seus.


OS CONTOS DE CIDADE E CAMPO

Maximiano Campos publicou, logo depois de Sem lei nem rei, dois livros de contos, As emboscadas da sorte em 1971 e As sentenças do tempo em 1973. Nos contos rurais destes volumes predominam os relatos das vivências que se enraízam fortemente entre a fome e a riqueza, a valentia e o acovardamento, a preguiça e o trabalho. O verde do canavial farto e exuberante contrasta com a exploração secular dos trabalhadores rurais, que vivem e labutam praticamente sob o mesmo regime de política salarial que foi estendido e transferido da Colônia e do Império à República. Representam assim elementos propulsores e motivadores da sua contística a alusão social aos conflitos entre capital e trabalho, as formas precárias de mobilização e persuasão ideológica, os castigos de morte, surra e prisão como consequência das campanhas salariais no campo.
Ao escrever o texto de apresentação da seleta de contos Na estrada, em 2004, Raimundo Carrero alinha Maximiano ao Movimento Armorial: “Por ter uma técnica – o que não significa sofisticação formal – e por não ser apenas regional, no sentido do documento, é que integrou o Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna, que está baseado nos valores culturais e artísticos do Nordeste e não na cópia da realidade”. É certo que, nos seus livros, existem referências temáticas e construção de personagens que lembram instantâneos do romance de Cavalaria, da poesia popular nordestina e do misticismo sertanejo. Pela via dos folguedos populares entranham-se nas narrativas, vestidos a caráter para uma festa da insanidade, os loucos desbaratados, os santos falseados e os foliões inconsequentes. Estas mesmas pessoas do povo que brigam, discutem, deliram e gritam incitadas pelas próprias subcondições de vida e por uma espécie de alegria despojada de pudores e sem artificialismos. Há ainda, os cavaleiros rurais que enlouquecem em consequência dos reflexos da decadência familiar e financeira, lembrando os fidalgos arruinados de todas as épocas, pelas crises econômicas e mudanças políticas e científicas processadas em reinos e repúblicas. Não podem ser esquecidos os cangaceiros, que utilizavam o cavalo, o armamento e a indumentária peculiarmente enfeitada como componentes da função guerreira.
Na sua armadura ficcional de personagens, assumem uma espécie de autonomia fomentada pela verve do seu criador, através da própria fluência da trama em que estão enredados e dos acontecimentos que a circundam. Colocados à deriva pelo contexto político repressor e oscilante em que se abrigam, tanto nos tempos do cangaço quanto em dias mais recentes, por ocasião da vigência do regime militar no Brasil, tais personagens terminam por explodir em revolta ou morrer desprezados e à míngua no meio da rua, no campo, em casa ou na prisão.
O ficcionista descarna vícios mundanos que assolam suas criaturas como o jogo de azar e a prostituição, com a aguardente e o tabaco sendo substitutivos para a fome, além das lendas e fatos da cultura popular onde não deixam de estar presentes os folguedos nordestinos e os versos dos poetas improvisadores da viola, que as revitalizam e divulgam. Os contos que revelam o ludismo infante, a alegoria circense e os excessos da descontração carnavalesca derivam-se da infância de jogos e brincadeiras no engenho (“O menino e o reino”, As emboscadas da sorte) ou da juventude marcada pela boemia e pelos carnavais recifenses, resultando na criação de personagens surreais e fantásticos como um rei negro e mecânico de profissão, um cangaceiro folião mas descendente legítimo de sertanejos e um astronauta pequeno-burguês bêbado e brigão (“O rei, o cangaceiro e o astronauta”, As emboscadas da sorte). Alguns deles não possuem locação determinada, parecendo estar soltos no tempo e no espaço do mesmo modo que seus personagens palhaços, anões, trapezistas. Em “O sonho real” (As sentenças do tempo), o operário negro João se fantasia de rei no carnaval e termina por enlouquecer, ao assumir no real o papel que vivera na folia. Em vários contos de As sentenças do tempo, percebe-se uma inclinação surreal inesquivável, uma forte tendência ao sonho e ao delírio, à entrada no mundo do absurdo.
A sexualidade na ficção de Maximiano Campos faz-se presente como algo a ser vivido entre seres que se atraem natural ou instintivamente, sem nenhum laivo de obscenidade ou espúrios complexos de culpa, como necessidade humana de realização do desejo sexual reprimido ou latente, que urge ser aplacado. O conto “A visita” (As emboscadas da sorte), põe a nu o sexo instintivo do pescador Cícero e da prostituta negra Joana, que aceita deitar-se com ele sem nenhuma paga pelo amor feito. Em “O sonho do rapaz”, também de As emboscadas da sorte, deslinda a iniciação sexual de um jovem do campo com uma “mulher-dama”, além dos meandros do prazer solitário. A narrativa “O escorpião”, de As feras mortas, oscila entre o lírico e o trágico, a sensualidade desenfreada e a solidão anunciada “pelo escorpião venenoso de bote armado”, apesar do alto grau de envolvimento carnal entre os amantes.
Outro lado dessa produção salienta aqueles contos metalingüísticos, ou seja, aqueles textos que questionam a linguagem ficcional dentro da própria narrativa em termos de construção de personagens e enredos, monólogos ou diálogos. E que chamam a atenção para o próprio ato da escrita, sua serventia ou falta de objetivo. Além disso, ele interpreta e analisa nos textos metalingüísticos os autores canônicos do gênero, com Cervantes e Tolstoi sempre reaparecendo. Nos contos de dimensão mais elastecida, a surpresa a cada página ou trecho da narrativa será o melhor elemento. Os dois melhores exemplos de contos mais longos aqui são “Na estrada” (As emboscadas da sorte) e “A vingança” (As sentenças do tempo), dinamizados pelas viagens boiadeiras de Luís Jatinã e Antônio Jesuíno. Em “Na estrada”, Jatinã destaca-se pela persistência humana levada ao limite. Ele é um homem que não quer se entregar nem mesmo diante da morte que o surpreende cavalgando, mas não o faz cair da montaria. Venceu todas as batalhas que encampou como vaqueiro, tendo como recompensa final pelo esforço aplicado e contínuo, a morte traiçoeira a que, por uma postura de apego desarvorado à vida, não se rendeu.
O conto “A vingança”, de andamento circular e de diálogos extremamente rápidos, é a história de um conflito entre Antônio Jesuíno e Ezequiel Mão de Pilão. A cidade de Mimoso, no final do agreste pernambucano, serve como cenário dos acontecimentos fatídicos. Ezequiel matou Rivaldo, irmão mais novo de Antônio, por causa de uma traição conjugal. O fato é que Rivaldo teve encontros amorosos com Luísa, mulher de Ezequiel. São outros personagens ativos na trama o pai de Antônio, que deflagra a ação, quando dá a incumbência a este de vender um gado ao marchante Ezequiel. A mãe, que aconselha o filho a não esmorecer na sua missão e viagem. E Joaquim, um apaixonado por Luísa, que propõe a Antônio uma parceria para darem fim a Ezequiel.
Uma situação de extrema tensão mostra-se como o diálogo de Antônio e Joaquim, ambos na mesa de um bar e cada um portando sorrateiramente armas de fogo. Joaquim é morto por Ezequiel, e este é morto por Antônio. Luísa sobrevive a tudo, e Antônio faz a viagem de volta. Na maior parte do texto, a vingança não fica explicitada, citada ou referida. No entanto, ela está implícita nos gestos e nas falas dos personagens, mesmo quando dizem ou sugerem o contrário. Destacam-se as reflexões irônicas de Antônio, no monólogo desenvolvido paralelamente em todo o episódio, desde os instantes iniciais do conto, quando diz ou pensa “Nós, os da família Jesuíno, nunca fomos vingativos”. Nas suas palavras finais, após concretizar a vingança motivada pela morte do irmão mais novo, Antônio conversa com o pai: “Pronto, pai, vendi o gado; só que não foi Ezequiel quem comprou”. E Antônio continua, refletindo e falando: “Notei certa tristeza no seu olhar. Aí remendei: ‘Defunto não pode comprar gado’. Ele nunca me perguntou nada. Voltei a trabalhar. Já estava com saudade do meu filho, da minha mulher. Minha mãe continua rezando, reza muito.” Antônio intenta convencer a si mesmo de que os seus exercem um tipo de pacifismo que só se emerge em violência quando sumariamente atacados, ao confessar ao seu interlocutor oculto: “Mas, moço, a gente, os Jesuínos, até que somos um povo cordato”.
O humor subterrâneo de Antônio reflete todo o seu esforço e amor pela vida, em contraste com a banalização da morte, pois no meio rural, valendo ainda hoje para certos locais, quem não lava sua honra com sangue não merece respeito. O homem rural esmera-se numa espécie de vingança às avessas contra a própria vida, a sua e a dos outros, contra a sina e o destino que lhe chegam sempre permeados por misérias, atribulações e desencontros. O pretexto do pai de Antônio foi a venda de dez garrotes, mas com um comprador definido, Ezequiel. “A vingança” traz uma grande mobilidade de diálogos e uma construção de personagens e cenários que reafirmam e referendam o inusitado dos acontecimentos, a surpresa permanente e o desvendamento dos fatos, todo este esforço só chegando a seu termo com o desfecho da história.
De As feras mortas, o conto “Noite”, de feição mais urbana, representa um dos trabalhos que se removem entre a recordação e o presente, entre o que aconteceu num passado ainda próximo e a vida vivida no momento em que tudo está acontecendo. Obedece a um ritmo delirante e mistura lembranças da cidade e do campo. Inicia-se com a referência a uma música do argentino Astor Piazzolla e finaliza com uma valsa. A infância, a vida boêmia, o circo, os letreiros luminosos. Também a festa com champanha, muita alegria, mulheres elegantes e refinadas. A visão enviesada dos marginalizados da sociedade, daqueles que vivem impulsionados pela teimosia e a insistência, espremidos nas subcondições das favelas: “Homens, mulheres, crianças e ratos amontoados”. Vinganças e perdões, a espera e a Esperança.
As feras mortas, assim como os livros anteriores do gênero conto, é composto de narrativas rurais e urbanas. A quantidade de textos líricos suplanta os textos de outras tendências e orientações, como os que privilegiam o delírio surrealista, a loucura visionária ou a angústia provocada pelo entrave na escrita. O conto “Perto do fim”, sustentado num lirismo pungente e resignado, sugere a presença inesquivável da morte. O personagem, vivendo um processo de lenta agonia, pede à mulher que conte histórias da juventude de ambos. Enquanto ela vai desfiando um tecido de recordações de um passado feliz e venturoso, ele vai relaxando até que adormece plenamente, sem mais retorno à vida. No balanço que faz, a literatura predomina em detrimento da própria saúde, pois ensaia o término de uma novela, mesmo sem as condições físicas mínimas. Contempla a biblioteca de “mil volumes, [onde] seis eram de sua autoria, romances escritos entre os vinte e os quarenta anos”. A constatação de sua vida se esvaindo, do seu corpo em processo de decomposição pelas dores do coração, emerge-se como um fantasma onipresente e impiedoso: “Ele sabia que estava bem perto do momento final. Breve se fecharia a cortina e para ele desapareceriam o cenário, os atores. A platéia se retiraria deixando o recinto vazio”. Mesmo que aplicado a um alguém inominado, guarda semelhanças, em certos momentos, com a própria jornada do escritor em direção à grande travessia para o desconhecido da morte, e nisto exprime um conteúdo autobiográfico latente.

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