UMA ANTOLOGIA DO CANGAÇO
Publicada em São Paulo, pela Escrituras Editora, a antologia poética O cangaço na poesia brasileira. A organização é do escritor pernambucano Carlos Newton Júnior, que fez um trabalho de alta garimpagem no que se poetizou sobre o assunto. Mesmo que Lampião seja o cangaceiro mais lembrado pelos poetas, há poemas sobre Antônio Silvino, Corisco e Jesuíno Brilhante que, ao lado de outros menos representativos, compõem o romanceiro deste ciclo de violência sertaneja.
O ciclo épico dos cangaceiros nas primeiras décadas do século 20 realizava-se no estigma aventureiro de homens transitando desabridos e solitários, ainda quando em bando, circulando a pé ou a cavalo pelas terras sertanejas desoladas na sua imensidão e miséria. A caatinga eleita como palco incendido de balas de rifles e fuzis, recortada pelas lâminas de sabres e punhais, se insurgindo como reinado sombrio de noites propícias a emboscadas, ataques e traições. Uma ambiência revelada nos meandros naturais de vales, rios e lajedos em estágio primário, ao mesmo tempo letárgica e brutal.
Na coletânea aparecem 35 poetas eruditos, com apenas quatro não-nordestinos: Murilo Mendes, Maria José de Carvalho, Walmir Ayala e Alexei Bueno. Os contemplados participam com um ou mais de um poema, sendo o esforço criterioso de seleção e escolha o único norteador da unidade temática alcançada. Tanto pode ser conferido, em versão de poesia culta, o folheto de cordel, como as formas reelaboradas do quadrão e do martelo. Há outras estruturas vérsicas como o soneto decassilábico e o poema curto sem definição estrófica, podendo constatar-se também certo equilíbrio na incidência de versos rimados e brancos.
Um poema algo espacializado de José Nêumanne Pinto tem como motivação o cinema de Glauber Rocha, um de Jorge de Lima convoca Marcel Proust a sair dos salões parisienses e vir conhecer o sertão e um de Ascenso Ferreira canta o misticismo cruel dos “guerreiros” Cabeleira, Conselheiro, Tempestade e Lampião, “que já nascem feitos”. O gaúcho Walmir Ayala participa com o único texto ilustrado da coletânea, glosando xilogravuras de José Altino. Não se encontrarão na obra as vertentes populares do cordel e do repente, praticadas pelos poetas profissionais desses ramos, embora ninguém possa negar a grande contribuição dada por eles ao tema.
Três mulheres participam do livro, e o que é digno de nota, com poemas longos ou tendendo para o longo. A paulista Maria José de Carvalho, com fragmentos do seu texto Romance de Lampião, a baiana Myriam Fraga, com o poema “Maria Bonita”, além de Janice Japiassu, que já deu mostras de sua inclinação para a poesia de feitio rural. Janice Japiassu estabelece comparações entre Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, entre a agilidade feroz e traiçoeira de um e o olho cego do outro, que valia por dois e iluminava a caatinga com os gritos guerreiros seguidos do clarão dos estampidos, como nesta passagem: “Silvino, o temido/ De punhal ligeiro/ De esperança morta/ E fogo certeiro// Lampião, o louco/ Desacorrentado/ Um olho de tigre/ O outro de espasmo”.
As opiniões ainda hoje se dividem, principalmente quando se atenta para o fato do que representou o cangaço, em sua voga violenta, para as populações do interior nordestino e para o poder público e privado. Para uns, Lampião aflora como um herói que suplanta todas as atrocidades conhecidas ou apenas imaginadas que cometeu. Para outros, não mais que um facínora alucinado. Tal duplicação mítica de Lampião tem sido responsável por distorções e confusões na análise do cangaço, que se expande desde a vingança familiar e a luta localista, até se converter na guerra sem tréguas contra todo o poder instituído na região nordestina (com exceção do fogo amigo dos religiosos e coiteiros), mobilizando forças políticas de boa parte do país. Acossado e duramente perseguido, Lampião esteve sempre a padecer, como escreveu Carlos Pena Filho, de uma sina anunciada em que “A morte será tão grande/ que até mesmo a solidão/ que há tantos anos te habita/ será cortada a facão”.
Na antologia, poetas consagrados convivem com poetas pouco conhecidos, formando uma tessitura em que o que está em jogo e passa a prevalecer é a qualidade individual dos trabalhos, agora expostos à leitura pública e extensiva. O que vale, para a eficácia da reunião, é exatamente a compulsão de cada poeta em expressar o que o emocionou, espantou ou instigou ao ponto de não poder deixar de registrar em poesia a sua visão sobre a saga e o fenômeno do cangaço.
RETRATO DO BRASIL
A revista Retrato do Brasil de outubro deste ano traz um artigo esclarecedor sobre Emily Dickinson, “Emily entre nós”, de Antônio Carlos Queiroz. Na fronteira entre o biográfico e o analítico, o ensaísta empreende o levantamento crítico de algumas traduções de poemas de Dickinson feitas no Brasil. Do ponto de vista fonético, mostra sutis diferenças entre o original e o traduzido, onde às vezes o emprego de uma única palavra pode definir todo o ritmo e alcance do poema, para melhor ou para pior. Queiroz não teme a profundidade interpretativa numa resenha para uma revista mais inclinada à política, à economia, ao jornalismo investigativo e científico. Mas, no quesito cultura, a revista acerta em cheio com esse artigo. Confira-se um trecho que ajuda a compreender os propósitos do autor: “A ironia e a transgressão dos valores de sua época e sociedade são elementos centrais na arte de Emily Dickinson, muito estudada, mas ainda pouco compreendida. No Brasil, é auspicioso o crescimento da fortuna crítica da poeta, muito embora haja mais fortuna do que crítica. Há falta de debate, motivada – quem sabe? – pelo receio da polêmica. Seria útil questionar, por exemplo, a qualidade de nossas traduções, que, por leitura equivocada dos originais, às vezes tornam a versão em português mais difícil do que em inglês.” E arremata com a solução lexical e semântica para um poema traduzido por Augusto de Campos, demonstrada concretamente no texto, afirmando ainda que “esse tipo de exercício contribuiria sobremaneira para a melhor apreciação da grande poeta norte-americana”.
RECORTES
Guardo numerosos recortes de jornais e revistas. Muita coisa se perdeu no tempo e em mudanças sucessivas de casas, pensões, hotéis e apartamentos. Uma perda que lamento, ainda hoje, foi a da coleção do jornal Versus, da esquerda internacional. Trazia contribuições de jornalistas e escritores de vários países, além de abrir espaço para contos, poemas, pequenos textos biográficos e relatos gerais da resistência latino-americana e das colônias sob o jugo português. Preservo, mesmo assim, recortes de poemas meus publicados em jornais de Minas Gerais, Goiás e Pernambuco.
OS AMANTES DESCOBREM SEU ÓCIO
Os amantes descobrem seu ócio
entre orgasmo, prazer, alegria.
Só muitos poetas não vemos
descobrir neste tempo a poesia.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
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