POLÍTICA
Já faz um bom tempo agora
que em entrevista a um jornal
Pelé disse uma frase famosa:
O brasileiro não sabe votar.
Ainda hoje estamos na dúvida
sobre isso que o Rei afirmou,
pois tem toda uma gente do povo
que não vota por dinheiro ou favor.
E se em toda escolha de nomes
se avalia e se pesa o melhor,
muitas vezes o que acontece
é que o melhor pode ser o pior.
E se em toda disputa por votos
a história assim se repete
misturando eleição com folclore
o vencedor fica sendo a vedete.
UM LIVRO UM TANTO ESCANDALOSO
O livro autobiográfico de Joaquim Nabuco, Minha formação, resultou principalmente das circunstâncias do isolamento político a que ele foi submetido após a queda do Império em 1889, pelo fato de ser um dos mais empenhados e intransigentes defensores do regime monárquico. Nabuco ficou sem espaço político efetivo para a sua atuação parlamentar, no auge de uma carreira que se inicia em 1878, quando é eleito deputado por Pernambuco, imediatamente após a morte do pai, o senador Nabuco de Araújo.
Tal eleição deveu-se a um acordo anterior entre seu pai e o barão de Vila Bela, chefe político de Pernambuco, no qual o senador Nabuco deixou averbada a indicação do filho para deputado pelo partido liberal. Em 1879, Joaquim Nabuco assume a sua cadeira na Câmara, e começa também os trabalhos da campanha abolicionista, que teria como desfecho o 13 de maio de 1888. Durante mais de uma década, essa legislatura é interrompida apenas no período 1881-83, devido a divergências entre ele e o partido liberal. Esta interrupção viria a ter consequências positivas, uma vez que foi no exílio em Londres que Nabuco escreveu O abolicionismo, livro claramente destinado à propaganda e agitação em favor da libertação dos escravos, e guardadas certas diferenças e proporções, correspondente em prosa aos poemas escravistas de Castro Alves. A grande diferença entre ambos é que a visão de Nabuco voltava-se mais para o combate ao que existia de negativo e desabonador na escravidão, no referente a aspectos históricos, sociais e econômicos, enquanto que Castro Alves era portador de uma visão poética romântica e sentimentalista, ainda que libertadora.
Na sua fase de recolhimento, Nabuco escreve, além de Minha formação, a biografia do senador Nabuco de Araújo, Um estadista do Império, e outras obras de reconhecido valor histórico, a exemplo de Balmaceda, sobre a Revolução Chilena. É desse tempo também a sua participação na fundação da Academia Brasileira de Letras, ao lado de Machado de Assis, amigo de toda a vida.
Quando foi publicado em 1900, Minha formação certamente gerou protestos e causou estranheza, como já alertou Gilberto Freyre: “Para o Brasil da época em que apareceu, Minha formação foi um livro um tanto escandaloso, por ter sido, para muitos, cheio de louvor em boca própria. Não faltou quem acusasse o autor de deselegante e narciso”.
A elite bem-pensante brasileira, da qual obviamente Joaquim Nabuco fazia parte, sendo inteiramente desfavorável à prática de confissões públicas, não poderia admitir que uma figura do porte dele passasse a revelar, sem pudores, hipocrisias ou falseamentos, a sua experiência de vida pessoal. E isto, mesmo que o memorialista jamais se excedesse ou avançasse nas declarações de vivências íntimas e particulares, decerto comprometedoras de imagens ou comportamentos de conveniência burguesa. Ou que ele pouco envolvesse nos seus relatos a gente conhecida da época, a não ser numa escala funcional que quase sempre secundarizava os circundantes, predominado aí tanto o esteio de uma vaidade considerável, como o equilíbrio sóbrio de sua educação e origem eminentemente aristocráticas.
O produto histórico-literário final de Minha formação envolve, entre outras coisas, a narração calcada numa prosa de rara fruição e reconhecida beleza poética de sua infância no Engenho Massangana; a educação primeira com o barão de Tautphoeus, as passagens pelo Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e pelas faculdades de Direito de São Paulo inicialmente, e depois a conclusão do curso no Recife; o processo de gestação seguida da afirmação de posicionamentos políticos liberais e monárquicos; a descrição de viagens que fez ao exterior em épocas distintas de sua vida, notadamente à Europa e à América; a listagem exaustiva dos autores que mais o influenciaram literária, política e filosoficamente.
Ele desvela ainda a sua transitação mundana e tendências aristocráticas, que passariam a conviver, de modo um tanto contraditório, com os mais altos ideais de emancipação dos escravos. Os seus laços burgueses de liberal fiel ao Imperador e à monarquia parlamentarista foram adquiridos por absoluta influência do pai, e logo após consolidados no conhecimento da Constituição inglesas, de Bagehot, autor hoje obsoleto e que ninguém mais lê, e também no seu desempenho como adido de legação em contato direto – e deslumbrado, como ele mesmo deixa entrever – com a nobreza da Inglaterra.
O memorialismo de Joaquim Nabuco torna-se em certos instantes denso, espectral e obscuro, pelas numerosas teorizações políticas e referências a acontecimentos históricos que empreende, pelas datações e assuntos não raro repetidos, como se ele tivesse feito, e na realidade em certa medida o fez, uma montagem aleatória de vários escritos dispersos e que guardassem pouca relação entre si.
Por outro lado, estas disposições, inovações e inversões, pouco usuais em fins do século XIX, podem ajudar a revelar a sua originalidade na concepção estrutural do livro, que não se inicia propriamente pelos anos da infância, não havendo, portanto, a rigor, uma sequência cronológica e linear definida. O capítulo da infância, “Massangana”, será apresentado como o capítulo 20 de Minha formação.
O que o motivou para esse procedimento, certamente terá sido a oportunidade e a relevância do assunto em detrimento da sequência pura e simples do tempo. De todo modo, mesmo com esta independência do fator temporal, ao fim certos capítulos se entrelaçam e se interpenetram, ganham agilidade narrativa, se lidos com a necessária atenção, embora arrastem-se os capítulos em que ele passa a enumerar as suas influências européias, o que não acontece com os que referem-se aos Estados Unidos.
Em Minha formação, o elemento político alterna-se, em períodos diversos, com as inclinações literárias e artísticas do autor. No capítulo “Crise poética”, o depoimento acerca da sua condição de poeta malogrado, consciente de suas limitações para este ofício, é de uma sinceridade gritante. É sintomático o fato de ele eleger Camões como poeta de sua preferência, estendendo-se esta admiração desde a adolescência à maturidade, e tendo continuidade nos seus tempos de embaixador nos Estados Unidos, com vários discursos pronunciados sobre o poeta.
No capítulo final, “Os últimos dez anos”, não há como deixar de identificar a sua impaciência em prosseguir nesse memorialismo, que o faz estabelecer como ponto de chegada das suas vivências, bem mais públicas que privadas, a idade de cinquenta anos, demarcando assim, de modo bastante sugestivo, o que já se encontrava definido e realizado em sua intensa atuação política. A sua ação libertadora chega até a vitória da causa abolicionista, que permitiu, sem que talvez ele próprio fizesse idéia do que estava por vir, a derrubada do Império e motivou, na mesma sucessão de acontecimentos, o advento da República.
(In: Suplemento Cultural da CEPE, ano XIII, jul. 1999.)
CRÍTICO LITERÁRIO E DE ARTE
Gilberto Freyre assina, além da obra sociológica e antropológica que o consagrou, um tipo de produção literária infrequente e de não tão grande ocorrência em seus escritos, e assim de certo modo pouco conhecida do público leitor, intelectual ou não, que o vem acompanhando.
Essa produção literária – diferentemente de seus livros de reconhecida importância como Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1959) – refere-se à crítica praticada por ele, que se efetiva tanto no plano artístico-cultural quanto no literário propriamente.
Em 1962, através do então jovem crítico Renato Carneiro Campos, tais textos críticos foram reunidos e organizados numa publicação a que se intitulou Vida, forma e cor, editada pela José Olympio, no Rio de Janeiro. A segunda edição de Vida, forma e cor, a cargo da Editora Record, também no Rio de Janeiro, só sairia vinte e cinco anos depois, em 1987, ano da morte de Gilberto Freyre, mas, a julgar pela ficha catalográfica do livro, com este ainda vivo. Nesta nova edição foram suprimidos sete textos, “Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil”, “Nota sobre Augusto dos Anjos”, “Euclydes da Cunha: sua interpretação do Brasil”, “Euclydes da Cunha, tropicalista”, “Introdução do autor ao livro Região e tradição”, “Temas estrangeiros” e “De um Diário de viagem pelas terras europeias de Portugal”, e acrescentado um, “Ciência do homem e museologia: sugestões em torno do Museu do Homem do Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco”.
Foram mantidos na íntegra os dois prefácios constantes na primeira edição, do autor e de Renato Carneiro Campos, onde no de Freyre há a indicação do percurso de alguns destes ensaios e artigos, apesar das supressões e do acréscimo referidos: “São trabalhos de épocas diversas. O ensaio sobre Augusto dos Anjos foi escrito em inglês e em Oxford; e apareceu numa revista literária de Boston em ano remotíssimo: 1924. As notas sobre pintura no Nordeste são de 1925. O ensaio acerca de Amy Lowell inclui trechos de um trabalho, também escrito em inglês, aparecido num jornal dos Estados Unidos, quando o autor era ainda estudante da Universidade de Baylor. Vários dos outros ensaios são de todo inéditos. Alguns, porém, são retirados de trabalhos já publicados: Aventura e rotina e A propósito de frades, principalmente. A nota sobre Joyce apareceu primeiro em jornal, depois em Artigos de jornal – livro esgotado há anos. São também incluídos o prefácio a outro livro, há anos esgotado, Região e tradição, o prefácio a O romance brasileiro, de Olívio Montenegro, o prefácio aos Ensaios de crítica de poesia, de Otávio Freitas Júnior, o prefácio aos Poemas negros, de Jorge de Lima, o prefácio ao ensaio de Temístocles Linhares sobre o romance moderno.
Um dos primeiros autores brasileiros a atentar para a presença de Freyre como crítico foi o decano da crítica paulistana Antonio Candido, com o pequeno mas sugestivo ensaio inicialmente titulado “Gilberto Freyre crítico literário” (1962), e quando republicado em 1993, com o título mais provocativo “Um crítico fortuito (mas válido)”.
Seja como for, há no ensaio de Candido muita acuidade perceptiva com relação à função crítico-analítica de Freyre, como quando discorre sobre a “ambiguidade criadora” presente na obra do sociólogo pernambucano: “Nela – na obra –, quando saímos à busca do sociólogo deslizamos para o escritor, e quando procuramos o escritor damos com o sociólogo, Se procurarmos especificamente o crítico, acharemos o estudioso que utiliza impuramente a literatura para os fins de sua manipulação sociológica; mas – continua Candido – a impura utilização torna-se de súbito tratamento vivificante, que retorna sobre a literatura a fim de esclarecê-la, porque a sociologia de Gilberto Freyre, sendo estudo rigoroso, é também visão, e a este título a expressão literária se crava no seu cerne, como recurso de elucidação e pesquisa”. A ligação de Gilberto Freyre com os assuntos literários remonta à sua formação escolar no Recife, na década de 1910 e em parte da década de 1920, se bem que sem orientação estilística definida. Desse tempo importam as leituras de autores brasileiros, hispânicos, portugueses, ingleses e franceses, com uma predileção especial dele pela literatura inglesa.
Neste Vida, forma e cor, podem ser conferidos textos de variado teor artístico-literário, e mesmo “científico”: no campo literário mais estrito, aparecem textos sobre poetas, romancistas, críticos literários e outros tipos de prosadores; na reflexão teórica que se reivindica ampla, ensaios sobre pintores pernambucanos de importância comprovada – Lula Cardoso Aires, Cícero Dias, Francisco Brennand; e, finalmente, os ensaios “culturais” sobre estética, sociologia, língua portuguesa, museologia, todos em conjunção estreita com a literatura.
O que poderia às vezes emergir em tais textos como dispersão crítica metodológica, recebe um reforço significativo da quantidade de informações que eles carregam, como por exemplo, num mesmo ensaio o autor ensejar a análise arguta de um romance de Josué Montello em pouquíssimas linhas, ou expor a condição do drama pernambucano a partir das primeiras experiências de um Ariano Suassuna.
A interdisciplinaridade que se faz presente nestes ensaios resulta de um modo desviante de análise e interpretação de Freyre, com a inter-relação constante de disciplinas, gêneros literários ou tendências da arte moderna. Além da erudição que teima em não se mostrar, em muito pela espontaneidade que se verifica no tratamento com autores brasileiros ou estrangeiros, através da extrema simplicidade com que ele apresenta e defende seus pontos de vista, é uma característica sua o biografismo através de perfis que ficaram famosos, como os que escreveu sobre Euclides da Cunha, Augusto dos anjos e Jorge de Lima.
Se Freyre se sai bem melhor quando se dedica a formular seus julgamentos valorativos de vertente impressionista, sob a perspectiva de um criticismo humanista, não há como negar os seus numerosos acertos, achados e descobertas, inclusive quanto a aspectos formais, mais em prosa que em poesia, mesmo em alguns momentos nos quais ele prende-se demasiadamente às suas impressões e empatias particulares.
(In: Suplemento Cultural da CEPE, ano XIV, mar. 2000.)
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