segunda-feira, 5 de julho de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXVII

CHÁ DAS CINCO COM O VAMPIRO

Miguel Sanches Neto é o crítico literário de maior visibilidade do Paraná. Atua também na poesia e na ficção, tendo estreado com um romance de forte vetorização autobiográfica Chove sobre minha infância (2000). A infância e a adolescência atribuladas que levou junto à mãe a quem amava e a um padrasto de quem não gostava, em meio ao trabalho árduo no campo e aos sonhos de enveredar pelos caminhos da literatura são enfocados nesse livro. Em A primeira mulher (2008), seu terceiro romance, Sanches vai privilegiar os meandros do romance de enigma policial, as veredas da articulação política, a desilusão do personagem frente ao ensino universitário, a solidão do homem no espaço urbano, a relação conturbada com as mulheres, e, ainda, a relação edipiana, ao mesmo tempo em que propositadamente distanciada, com a mãe.

Sanches Neto chega agora com seu quarto romance, Chá das cinco com o vampiro, marcado pela polêmica em torno de situações e personagens transplantados da ambiência literária curitibana para o corpo da ficção. A narrativa se entretece entre 1982 e 2002, absorvendo duas cidades paranaenses, Peabiru e Curitiba. Cerca de oito anos após a sua versão inicial, passando pela recusa de algumas editoras e pelas confusões e peripécias originadas do conteúdo que vazou e que tornava identificáveis escritores e jornalistas vivos, a Objetiva finalmente aceitou publicá-lo. Duas linhas de leitura podem ser adotadas para o livro: uma que se prende à cota de realidade sugerida pelas figuras literárias e suas circunstâncias, e outra que desvincula rostos vivos ou mortos da necessidade de serem estabelecidos nexos que os identifiquem com maior ou menor facilidade. O autor conviveu com todos eles, em níveis oscilantes entre a amizade e a desavença, a intimidade desfeita e a indiferença total.

A primeira é uma leitura tendenciosa a explorar vaidades literárias, embates surdos, miudezas da convivência gerada entre pares que lutam para ser reconhecidos dentro e fora do circuito provinciano. Mesmo que alguns já estejam alçados à condição de escritores nacionais, o entrevero se estende indefinidamente, até mesmo depois da morte. Neste caso, a vida literária é mais valorizada do que a própria produção textual, o difícil e espinhoso trabalho individual com a palavra é posto em segundo plano pelo flagrante da conversa mafiosa e suspeita ao pé do ouvido.

A segunda leitura não terá como referencial privilegiado os rostos notáveis ou obscuros, ou uma mistura de ambos. Tratará das questões que envolvem o lastro ficcional trazido pelo autor com seu romance. Não se poderá fugir, nesse ponto, ao recorte em que se inclui a parcela autobiográfica. Insurge-se, então, o personagem Beto Nunes, seus pais e sua tia Ester, que terão importância óbvia na construção da narrativa. Ester ocupará frações significativas da vida do personagem central Beto, com um andamento que ofuscará, em muitas passagens e trechos, Geraldo Trentini.

O grande contista, motivador de toda a polêmica gerada pelo livro, não deixará de ser associado a Dalton Trevisan, qualquer que seja a interpretação que se faça. Beto Nunes ou Roberto Nunes Filho, o alter ego e simulacro ficcional de Miguel Sanches Neto, o discípulo e amigo de antes de Trentini, passa a ser visto como o algoz e inimigo de hoje. Assume a condição maldita de ter revelado segredos pessoais do ficcionista silenciados como um código de honra e respeito pelos curitibanos.

É um fato que Trentini aparece sem aparecer, mostra-se e esconde-se cotidianamente no seu ocultamento de boné, casaco e caminhadas, qual esfinge esquiva e inalcançável que não permite a surpresa de fotografias, as entrevistas incômodas e as devassas na sua misteriosa transitação pela cidade e o seu isolamento em casa. O risco óbvio que o personagem Beto Nunes correu foi o de expor detalhes de uma intimidade guardada a sete chaves. E que, pelo lido no texto, desvenda coisas até então desconhecidas por aqueles poucos com quem convive ou conviveu Geraldo Trentini/Dalton Trevisan.

Não se pode negar que Sanches Neto conhece bem o ofício da escrita. Distribui os capítulos setorialmente em anos esparsos de três décadas, lembrando uma técnica bastante utilizada pelo norte-americano John dos Passos. Contudo, não há um enredo rigoroso propriamente, que obedeça incondicionalmente à lógica temporal e espacial de uma história convencional em prosa. A linearidade de situações e acontecimentos é quebrada e confundida o tempo todo, renegando a monotonia descritivística e impulsionando o andamento cronológico de uma duração estática para outra em constante mutação e avanço. A trama caminha com o personagem principal e a recíproca é verdadeira – o personagem vai sendo feito ao largo da colação anuária mesclada das décadas e cidades envolvidas, com os eventos sobrepondo-se, anulando-se e desaparecendo uns nos outros, da adolescência aos inícios da maturidade de Beto. Este personagem redondo se move ao sabor da incerteza que a passagem das horas lhe oferece. E que ele também conquista, nas suas incontáveis leituras e na sua luta para afirmar-se como escritor em Curitiba. Ao modo de um estopim aceso, as suas revelações incendeiam a pólvora das discórdias, idiossincrasias e desentendimentos.

Beto Nunes vive a vida de um estudante pobre do interior no ambiente inicialmente hostil da capital. Começa numa república de estudantes, depois passa a morar sozinho, sempre com a ajuda de uma mesada familiar. Demonstra pouco interesse pelo curso, e ao invés de assistir aulas, dedica-se a ler. As suas primeiras abordagens a Geraldo Trentini vêm dessa época. E é através de Trentini que os espaços de jornal se abrem, com a publicação de um texto sobre o contista. Dividido entre a solidão e o conhecimento de escritores, Beto Nunes vai produzindo seus textos, ficando conhecido e se impondo como crítico e escritor. Quando sua reputação local está consolidada, inicia um rompimento com a maioria daqueles de quem se aproximara. Com o auxílio de Valter Marcondes, empreende julgamentos desabonadores da obra de Geraldo Trentini e de alguns outros componentes da ambiência cultural paranaense.

Família, sexo, solidão, religiosidade e busca de solidez na vida são motes que atravessam o livro. Beto Nunes carrega o esteio da provocação direta, a necessidade iconoclasta de derrubar preconceitos, tabus e valores antigos. Opostamente, impõe-se a vontade acomodatícia subliminar em torno de formas de vencer na vida, encontrada na relativização de sucesso no jornalismo, ao manter uma coluna literária no jornal paranaense O Diário desde os anos de formação. Fornece um retrato impiedoso do pai com seu bafo de pinga e da mãe com seu cheiro diário de doce. As descobertas e práticas sexuais de Beto Nunes são relatadas extensamente ao largo do livro em tons profanos: o incesto com a tia Ester, a violação metafórica do sagrado pela ejaculação em um pão feito por sua própria mãe, a segunda iniciação sexual num cabaré onde seu pai o levara e a relação proibida com a namorada Martha comprometida com outro.

O mundo literário curitibano é visto em suas facetas de avanço ou decadência, restando poucas figuras respeitáveis por suas obras, entre elas o personagem Valter Marcondes, identificado como o crítico literário Wilson Martins e o próprio Geraldo Trentini/Dalton Trevisan. Uílcon Branco/Wilson Bueno, recentemente morto, era o editor do jornal Maria, que na realidade se chamava Nicolau, e estava circunscrito no grupo de literatura neobarroca latino-americana, sendo visto como autor de uma obra preciosista e de valor apenas para a história literária; Valério Chaves/Valêncio Xavier, falecido em 2008, era o vanguardista que aparece também desfavoravelmente em Chá das cinco com o vampiro por escrever uma literatura trash e feita de montagens e colagens. O publicitário Antônio Akel/Jamil Sneg, é um cronista e escritor que detém o respeito, a amizade e a simpatia do personagem-narrador. O colunista político Orlando Capote/Fábio Campana carrega a dupla imagem do jornalista bem-sucedido e do escritor medíocre.

O jovem discípulo e aprendiz de escritor intenta superar o vampiro mestre da ficção curitibana, além de todos aqueles que o incensam e cercam, numa admiração ampla e inesquivável. Beto Nunes não se importa com as gerações a que pertencem, com os livros que publicaram ou com os títulos que ostentam, pois sabe que irão transformar-se em futuros desafetos, uma prática normal na província. O processo de troca, convivência e conhecimento estético entre o autor e o contista curitibano iniciou-se pelo lado considerado sério da escrita, a análise literária do romance A polaquinha, de Dalton Trevisan. Entre outras coisas, as circunvoluções paródicas do erotismo são apresentadas como a maneira que as prostitutas encontram para resistir e enfrentar gigolôs, homens casados e jovens em busca da primeira experiência sexual, através da dissimulação e da aparente fragilidade. Não configura nenhuma coincidência o fato de que um dos textos inaugurais da lavra de Miguel Sanches Neto ter sido justamente O artefato obsceno: visitando a polaquinha (1994), editado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (onde o escritor leciona), sob a forma de um breve ensaio acadêmico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário