domingo, 6 de fevereiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LVI

ÂNGELO MONTEIRO ENTRE O MITO E A MIRAGEM

Existe na literatura de todas as épocas uma linhagem rara de poetas, a daqueles que também são filósofos. São poucos os nomes brasileiros que se abrigam sob as duas matrizes, mas podem ser lembrados na atualidade o carioca Antônio Cícero, o paulista Rubens Rodrigues Torres Filho, o último Bruno Tolentino e, em Pernambuco, Ângelo Monteiro. Uma propensão metafísica e transcendente para questionar o estrato lógico-racional do mundo é retomada por eles, mesmo que em alguns não fique explicitada essa intencionalidade. Neste passo, em sua produção literária, além do desenvolvimento da poesia das coisas cotidianas, ensejam trabalhar em paralelo categorias e áreas de um sentido poético que revele a busca da verdade e do saber.

A obra poética publicada de Ângelo Monteiro, de 1969 para cá, aparece num volume substancial intitulado Todas as coisas têm língua, numa seleção feita por ele mesmo, processando o corte de poemas em vários livros. A sua poesia diferenciada corre a contrapelo dos seus pares da geração 65, pelo grau de estranheza e autonomia estilística que sugere. Ela faz-se inseparável dos questionamentos definidores do homem como o nascimento e a morte, a presença e a ausência, a solidão e a vida coletiva, a obsessão pelos elementos circundantes a uma natureza que ainda teima em resistir.

Nesta coletânea, alcança momentos da mais alta poesia associados a um texto ou outro que por vezes se encontra deslocado do andamento e do ritmo próprios à matéria poética. Alguns poemas, do início ou mais recentes, podem resvalar, em sua feitura, na parcialidade de uma prosa indesejada, pelo não achamento da palavra exata ou do verso preciso exigidos pela própria especificidade estético-formal do objeto acabado. Aliás, deve-se registrar que o livro O ignorado se apresenta como um expressivo poema em prosa, que adquire as características do ensaio e perfaz um roteiro filosófico que passa pelos clássicos Aristóteles e Platão e por um contemporâneo como Nietzsche. Em O rapto das noites ou o sol como medida, o autor fornece pistas que levam a poetas-filósofos de sua predileção, ao homenagear William Blake e Frederico Hölderlin.

Poeta dilacerado entre o sagrado e o profano, o mito e a miragem, o passado remoto e a contemporaneidade, Ângelo Monteiro empreende uma visão extremada e alerta das coisas e acontecimentos, permeada por um futuro incerto. Visão que descarta o malogro funcional do nosso tempo, que por sua vez tende a privilegiar as cartas carcomidas da política, os foros da concorrência e da indiferença pelo Outro e as estatísticas comparativas e vazias. O perfil dos “manequins” – os conformistas, os usurários e os de inclinação burguesa e consumista irrefreável – é retratado impiedosamente no poema “A fila”, de As armadilhas da luz. Com seu destino de “satélites sem glória”, demonstram uma grande empatia ao culto do banal, das atitudes ultra-reacionárias e da mesmice, como nesta estrofe:

          Eles estão na fila, através das idades,
          incensando o best-seller e o último modelo.
          A lista telefônica é a sua identidade
          e a crônica social seu derradeiro apelo.

Há ocasiões em que o filósofo e o poeta são destituídos pelo cristão, pelo cultor sublimado de um Ente Supremo. Um forte teor de religiosidade emerge em instantes de beatitude e submissão ao Senhor da Espera, traduzidos em hinos e expectações, ou inscritos e realizados numa literatura de salmos, exortações, sermões, cantos ou litanias. A natureza, na poesia de Ângelo Monteiro, não é simples oposição à cultura, mas instância filosófica fundadora da interação do homem com o mundo e a vida, com variantes poemáticas servindo à contemplação neorromântica e à comunhão do poeta com nuvens e árvores, ventos e rios, mares e céu. Em Recitação da espera ele referenda a defesa do verde, a metapoesia e a condição solitária do Ser. A dicção é grave, solene, descentrada embora daquele real cotidiano repetitivo e massificado. Outros poetas são identificados, em influência direta ou indireta, nas presenças de Alberto da Cunha Melo e Carlos Pena Filho, por exemplo. O inquisidor expõe e contextualiza literalmente uma poesia da indagação e da interrogação exaustiva. Intenta desvendar as mais profundas aspirações humanas, assim como deixa entrever a fluência de um passado em que não se lamentava a perda e inacessibilidade do paraíso.

A poesia de Todas as coisas têm língua pode causar certo estranhamento no leitor desavisado – pela sua originalidade e exclusividade, sem epigonismos e nem imitações gritantes de outros poetas e pelo seu conteúdo hermético e quase sempre de difícil acesso. O preço a ser pago pelo poeta será, talvez, o distanciamento e a incompreensão de um ou outro leitor, habituado ou não à leitura de poesia. Isto não significa, contudo, que haja uma inclinação apenas erudita da parte de Ângelo Monteiro, pois ele enseja chegar ao leitor mediano em momentos diversos e não tão raros, onde desenvolve trechos ou poemas inteiros ao gosto popular. As inquietações irremissíveis dos nossos dias não levam o poeta a abandonar a crença na beleza, na harmonia e no mistério das coisas, a fé na redenção do homem e a permanente busca do seu lugar no mundo.

(Continente, ano VIII, nº 92, ago. 2008)

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