terça-feira, 9 de março de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XV

CASTRO ALVES E O 14 DE MARÇO

Castros Alves foi o poeta romântico brasileiro por excelência, reunindo qualidades de dândi, inteligência precoce e inclinação poderosa para a poesia. Nasceu de boa família baiana, na fazenda Cabaceiras, a 49 km da vila de Curralinho: o pai médico de prestígio na Bahia, Dr. Antônio José Alves, e a mãe D. Clélia Brasília da Silva Castro, dona-de-casa, com o que isso implicava no século XIX, tendo de cuidar de filhos, parentes próximos, aderentes e agregados.
Orador entusiasmado, mas estudante mediano e boêmio, Castro Alves era, contudo, sensível às questões políticas do século 19. Adepto da República em oposição à Monarquia, combateu com veemência a exploração, o sujeitamento e a condição de mercadoria de troca que caracterizava os escravos, rusticamente leiloados pelos mercantilistas, capitães-do-mato, fazendeiros, políticos abastados e, não raro, gente da ordem religiosa.
Os dois textos republicados abaixo são de 1997, comemorativos dos 150 anos do nascimento do poeta. O esboço biográfico apareceu na Revista Arrecifes, anos 2000/2001, com o mesmo título, “Breve roteiro biográfico de Castro Alves. A revista integra as publicações do Conselho Municipal de Cultura da Prefeitura do Recife. No ensaio crítico, que saiu no Suplemento Cultural da CEPE, ano X, março/1997, preservou-se também o mesmo título, mas obedecendo agora ao texto escrito originalmente pelo autor. Ambos publicados pelas mãos do escritor, jornalista e editor Mário Hélio. Em tributo ao poeta prematuramente falecido, o Dia Nacional da Poesia, comemorado anualmente em 14 de março, foi instituído para lembrar o dia do seu nascimento.


BREVE ROTEIRO BIOGRÁFICO DE CASTRO ALVES

Antônio Frederico de Castro Alves nasceu na cidade baiana de Curralinho, hoje Castro Alves, a 14 de março de 1847. Fez os primeiros estudos em Salvador, transferindo-se posteriormente para o Recife, a fim de iniciar o curso de Direito. Desde uma remota infância, demonstrava uma inclinação especial para a poesia, participando de recitais e publicações escolares. Ele revelava uma precocidade que o levaria a ser considerado, no futuro, um dos maiores poetas brasileiros. A sua poesia divide-se em duas ramificações principais: de um lado, os poemas que privilegiam a lírica amorosa, e de outro, a poesia que tem como tema a liberdade em contraposição à escravidão.
Castro Alves lutou durante sua curta vida (viveu apenas 24 anos, que não chegaria a completar) pela libertação dos escravos e pela instauração da República em lugar da Monarquia. Também não chegaria a presenciar nenhum destes dois fatos históricos, pois a Abolição só viria a se concretizar em 1888 e a República um ano após.
Um dos poetas que mais admirava era o poeta romântico francês Victor Hugo, de quem sofreu uma grande influência, principalmente nos poemas em que Hugo fazia referência às lutas sociais do seu tempo. No Brasil, Castro Alves pertenceu à quarta e última geração do romantismo, movimento que seria substituído nas décadas finais do século 19 pelo simbolismo e parnasianismo.
Entre os livros mais importantes de Castro Alves destacam-se “Espumas flutuantes”, que apareceu em 1870, quando o poeta agonizava em Salvador, e “Os escravos”, publicado postumamente. “Navio Negreiro” é um dos poemas de “Os escravos” em que o poeta melhor relata o tráfico dos negros africanos, trazidos pelos mares atlânticos para o Brasil em condições inumanas, trancafiados em porões imundos de navios que se prestavam a essa atividade. E quando aportavam aqui, eram tidos e tratados como mercadoria pelos senhores de terras, pelo governo Imperial e por uma parcela de religiosos que mantinham escravos a seu serviço e sob seu poder.
Na poesia de Castro Alves, é constante a presença das mulheres. Ele teve vários relacionamentos amorosos, mas o de maior repercussão foi o que manteve com a atriz Eugênia Câmara, durante dois anos.
Outra característica do poeta era a sua vitalidade de orador, a eloquência que emprestava a suas aparições em público, fazendo vibrar plateias diferenciadas que se emocionavam ao ouvir os seus versos. Castro Alves viveu também por algum tempo em São Paulo, com a intenção de concluir o seu curso de Direito nesse estado, o que não foi possível, devido à fatalidade (um tiro no pé esquerdo, que gangrenou e teve de ser amputado, além da tuberculose de que padecia) que o levou à morte em 6 de julho de 1871.


RE-VISÃO CRÍTICA DE CASTRO ALVES

Numerosas têm sido as formas, atitudes e estratégias de abordagem e de análise crítica da obra poética de Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871). O ensaio especializado, a crítica valorativa e judicativa, o levantamento biográfico minucioso, o artigo emocionado e sem maiores pretensões, além do poema de homenagem são algumas dessas formas. Também a personalidade criadora do poeta vem sendo submetida a uma série de esquemas classificatórios prévios, que terminam por enquadrá-lo em nomeações diversificadas e deslocadas às vezes: poeta social, retórico, socialista, reformista, liberal, cósmico e ainda, a mais frequente delas, “poeta dos escravos”.
A organização da obra completa de Castro Alves, em dois volumes, coube primeiramente a Afrânio Peixoto em 1921 (a meio século da morte do poeta), e teve sucessivas edições, preservando a grafia original do autor e de época. A edição da poesia completa e da prosa castroalvina, em papel-bíblia e acrescida de textos que a edição de 1921 não continha, somente veio a público no Rio de Janeiro em 1960. O mapeamento investigativo dessa obra do século 19 para cá, no seu todo ou nas partes, demonstra que dela ocuparam-se autores de variadas orientações literárias – de Agripino Grieco a Jorge Amado, de José Paulo Paes a Antonio Candido e Alcides Villaça, entre uma leva de outros, contribuindo cada um deles, em poesia ou em prosa, ao acréscimo qualitativo do considerável acervo literário referencial do poeta romântico baiano. Neste sentido, ao intentar-se conferir um caráter de análise e valoração crítica a essa obra, levando-se em conta concepções e julgamentos anteriores ou atuais, e sem deixar de lado certas divergências fundamentais (quando não se mostrarem empobrecedoras, desgastantes ou inarticuladas em termos argumentativos), duas variantes poéticas expressivas saltam à vista. Tais variantes instauram-se no bojo de uma lírica que privilegia, de um lado, a esfera amorosa em si, e de outro, o desdobramento político-libertário sustentado em versos discursivos, “titânicos” e próprios à agitação, do jovem poeta militante das campanhas abolicionista e republicana.
A primeira variante referida, que tem seu alvo no desejo, estímulo ou evocação da mulher, ocupa um espaço privilegiado na vida e na poesia de Castro Alves. Ela oscila com freqüência entre a contemplação do tipo “purista” ou desesperançada em alguns poetas da tradição romântica, promovendo uma relação dimensionada apenas no plano incorpóreo e sensorial, gerando amores frustrados e infelizes. Mas no caso dele, a relação amorosa manifesta-se audaciosa e pronta para realizar-se no arrebatamento de sensualidades reprimidas, que logram sempre aflorar. O autor de “Espumas Flutuantes” (1870), não prescinde do contato amoroso e da realização sexual, como se pode inferir deste trecho do poema “Boa Noite”: “Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos/ Treme tua alma, como lira ao vento,/ Das teclas de teu seio que harmonias,/ Que escalas de suspiros, bebo atento!”. Em outro poema, “O ‘’adeus’ de Teresa” (parodiado por Manuel Bandeira em “Libertinagem”, livro de 1930, com o título “Teresa”, onde este introduz o “espírito romântico” em versos centrados na modernidade, demolidores das formas românticas usuais, mas com solução temática e finalização visivelmente derivadas de Murilo Mendes), pressente-se, num sussurrar ao ouvido ou numa saída de “alcova”, a sugestão seguida da consumação direta da relação sensual-erótica: “Uma noite... entreabriu-se um reposteiro.../ E da alcova saía um cavaleiro/ Inda beijando uma mulher sem véus.../ Era eu... Era a pálida Teresa!/ “Adeus!” lhe disse conservando-a presa...// E ela entre beijos murmurou-me: “adeus”. Um dos melhores exemplos daquela espécie de compulsão romântica, de teor mórbido e obsessivo, é certamente o poema “Ainda uma vez – adeus!” de Gonçalves Dias, escrito em 1855 após um encontro ocasional rápido e definidor que teve com sua musa maranhense em Portugal. O poema expressa um quê de inclinação platônica e contemplação embevecida, quando o poeta pousa o seu olhar refinado e ardente, embora repleto de queixas, tristeza e amargura, no rosto da amada à sua frente, contudo impossível, porque perdida para sempre.
Em 1865, quando começou a escrever os poemas de “Os escravos”, numa pequena casa na Rua do Lima, no subúrbio recifense de Santo Amaro, ele desfrutava da companhia de Idalina, prostituta adolescente e misteriosa com quem se realizava satisfatoriamente no ato amoroso, ensejando as primeiras manifestações de um amor livre, porém escandaloso para uma Recife onde o moço candidato a bacharel dava os seus primeiros passos na direção de uma carreira meteórica, consequente e vigorosa do ponto de vista político. O Recife representava também uma amostragem significativa de um país de senhores de terras e de escravos, de políticos truculentos e oportunistas, de estudantes turbulentos e impregnados do idealismo romântico libertário, de uma família imperial em lento processo de decadência e de uma massa da população em permanente estado de alerta e rebeldia.
No período de 1866 a 1868, esse tipo de relacionamento amoroso que se dava à margem da sociedade bem pensante, iria se repetir com mais força com a atriz Eugenia Câmara, sua paixão mais violenta, a quem vira pela primeira vez em 1863, e a partir de então passou a dedicar-lhe boa parte de seus poemas onde predomina a lírica amorosa.
De conformação diametralmente oposta foi a sua atração por Leonídia Fraga, iniciada na infância e retomada em 1864, no ambiente bucólico e tropical de Curralinho, hoje Castro Alves, sua cidade natal. Este primeiro amor foi o único que ele não desfrutou sexualmente, chegando a seu termo de forma trágica, quando essa musa sertaneja viria a enlouquecer após constatar a irreversibilidade da morte do poeta, nos últimos dois anos tísico e mutilado do pé esquerdo. A última mulher a quem o poeta amou foi a cantora Agnese Trinci Murri, de descendência italiana, para quem escreveu e dedicou versos até bem pouco antes de morrer em Salvador.
Outras variantes poéticas, relacionadas diretamente à persona do poeta, poderiam ser incrementadas nessa conjugação e aferição do romantismo. O tragicismo e a obsessão pela morte advindos do chamado “mal do século”, difundidos no mundo pelos poetas Alfred de Musset, Byron e Goethe, entre outros, não chegaria a afetar de uma maneira fatídica Castro Alves, que antes se identificava mais à sobriedade idealista, panfletária embora, de Victor Hugo, reconhecidamente a sua maior influência. A concepção do sujeito-poeta a partir do estigma condicionante de “gênio precoce, rebelde e incompreendido” (que enveredava frequentemente pela boemia desenfreada e pelo dandismo – em Álvares de Azevedo, morto aos vinte e um anos, mais imaginados do que experimentados), deslocando-o dos problemas de seu país e de sua gente, não seduziria também tão fortemente Castro Alves, de vez que não o afastou da vertente mais consequente e definidora da sua poesia, a libertária. No entanto, não podem passar aqui despercebidas duas exceções ao distanciamento de Castro Alves dessas vivências habituais do romantismo – o poema “Mocidade e morte”, de 1864, onde faz um prenúncio da morte próxima que o espera: “E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito/ Um mal terrível me devora a vida”, – e as noitadas boêmias, no melhor estilo byroniano, que o absorveram por algum tempo em São Paulo, após o rompimento com Eugênia Câmara.
Faz-se aqui pertinente a interpelação a ele dirigida por Pablo Neruda em torno das motivações poéticas externas ou interiores que o impulsionaram, e a quem se destinava o seu canto, num poema do “Canto Geral” (1949), incluso na seção “Os Libertadores”: “Castro Alves do Brasil, para quem cantaste?”. É um Castro Alves subliminar e ocultado quem responde, numa montagem aleatória e fragmentária nossa, de versos e estrofes que ele mesmo poderia ter cometido: “Cantei para os escravos (...) contra a mão que empunhava o chicote (...) e era minha a única voz que enchia o silêncio”. Neruda encarna a voz altissonante de Castro Alves, juntando-se a este na amoldagem de uma vertente “retórica” de certas facções da poesia americana. De todo modo, o poema enseja um diálogo que se processa no plano da transfiguração criadora, permitida entre “eus” que se afinam poeticamente. E embora de conformação circunstancial evidente, o poema reflete também outro tipo de diálogo bastante sugestivo, agora no campo político: o diálogo que se realiza através da poesia, entre o poeta comunista dos nossos dias (Neruda morreu em 1973) e o nosso poeta social dos Oitocentos.
A perspectiva de uma poesia social engendrada e desenvolvida por Castro Alves, prevê uma compulsão poética que se realiza ao nível de uma estética romântica peculiar, articulada as mais das vezes diferentemente de outros poetas românticos. O seu núcleo contestatório volta-se diretamente à sensibilidade nacional sequiosa de justiça e liberdade. A causa revolucionária da transformação social é assumida nas metáforas exaltadas de um poema como “Ode ao Dous de Julho”, escrito em função da independência da Bahia, somente alcançada em 2 de julho de 1823, devido à forte reação dos portugueses que ali se instalaram e que teimavam em não reconhecer essa independência, quando a Bahia organizou a resistência e o combate travou-se com derramamento de sangue de ambos os lados; em “Pedro Ivo”, poema gerado no eco das lutas da revolução Praieira em Pernambuco (1848/1849), deflagrada quando o poeta ainda estava de berço, na qual o líder Pedro Ivo encarna um personagem que ensaia um confronto direto e ostensivo com o Imperador Pedro II; no drama “Gonzaga ou A Revolução de Minas”, escrito aos vinte anos, que abraçava a temática óbvia da Inconfidência Mineira; e ainda no poema “Adeus, meu canto!”, em versos prenunciadores e propagadores do sentimento radicalmente aliado das revoltas populares sempre iminentes: “Um dia passa em minh’alma/ Das cidades o rumor./ Soa a idéia, soa o malho,/ O ciclope do trabalho,/ Prepara o raio do sol./ Tem o povo – mar violento –/ Por armas o pensamento,/ A verdade por farol”’.
A causa escravista presentifica-se nas metáforas “condoreiras” flagrantes em poemas do feitio de “Navio Negreiro” e “Vozes D’África”. Nestes dois poemas, a idealização libertária e o “sonho americano” do poeta transportavam-se para os mares atlânticos, onde escravos eram traficados e sujeitos a sofrimentos e provações inimagináveis, embalados ora pela calma ora pela violência de ventos e tempestades. Em tais viagens, confinados em porões imundos de navios, os escravos não poderiam sequer acompanhar de longe – e talvez guardar para um futuro próximo entrevisto pelo poeta – a visão cosmogônica e alegórica da liberdade, simbolizada pelo voo do pássaro andino, o Condor.
O exame de componentes formalísticos na obra de Castro Alves sinaliza para o manuseio geral das “formas poéticas” mais comuns e convencionais ao romantismo, por sua vez derivadas em parte – ou mesmo distanciando-se em outros momentos – de um classicismo que estava a agonizar desde o início do século 19, em consequência do movimento poético “novo” e do espírito revolucionário que se insurgia com a escola romântica, tendência que já vinha sendo esboçada desde as últimas décadas do século 18 na Europa.
“Sub tegmine fagi” (“À sombra das árvores”) é um poema de quinze estrofes contendo seis versos cada, informado por pausas e elevações de tom recorrentes na elaboração do estilo desse poeta, e que evoluem numa métrica regular e cadenciada, alternando dois decassílabos de rimas emparelhadas com uma sextilha, somados a mais dois decassílabos fechando com outra sextilha que rima com a anterior. Estas rimas nem sempre aparecem uniformizadas ao largo do poema, e são exemplos disto a diferenciação de efeitos sonoros de pronunciação (belas/ estrelas, céu/ pendeu), ou de esquemas fonéticos adaptados, nem sempre com sucesso, para a amarração sonora das últimas sílabas dos versos (pérolas/cérulas, Hugo/fixou, luz/flux). Efeitos estilísticos comuns à poética castroalvina podem ser rastreados no excesso de reticências e exclamações, no grande núcleo gerador de palavras ocorrentes no plural, além de figuras de retórica como antíteses, hipérboles, sinestesias e ressonâncias.
No início e no desfecho do poema, de forma circular, ele faz um apelo ao “amigo” para que empreendam juntos um passeio pelo campo, na companhia de um “Deus” onipresente, que se manifesta como o “Grande Pai”, sábio, protetor e severo, quando todos estão recolhidos: “Amigo, o campo é o ninho do poeta.../ Deus fala, quando a turba está quieta,/ Às campinas em flor” (...) A alma fica melhor no descampado.../ O pensamento indômito, arrojado/ Galopa no sertão (...) Vem! Do mundo leremos o problema/ Nas flores da floresta ou do poema,/ Nas trevas ou na luz”’.
Fazem parte do poema referências diretas a poetas da predileção de Castro Alves – Hugo, Dante e Virgílio. Do primeiro, é flagrante e exagerado o elogio: “– Mestre do mundo! Sol da eternidade!.../ Para ter por planeta a humanidade,/ Deus num cerro o fixou”. De Dante, recolhe uma linguagem de empréstimo, apropriando-se textualmente de expressões bastante conhecidas, a exemplo de “floresta densa” ou “selva escura”. O entusiasmo que a contemplação da Natureza lhe incita, exerce um efeito de estranhamento contrastante com o modo celebrativo, plácido e aplacado como até então vinha tratando do assunto, quando se refere a Virgílio: “Mundo estranho e bizarro da quimera,/ A fantasia desvairada gera/ Um paganismo aqui./ Melhor eu compreendo então Virgílio.../ E os faunos lhe vendo a dançar no idílio/ Murmuro crente: - eu vi!”.
O enfoque temático se desloca do jogo amoroso e do condoreirismo retumbante, numa inevitável ruptura que vai incidir sobre a múltipla tematização homem-arte-natureza-divindade. Deste modo, é revelada a profissão de fé do poeta e a celebração de uma poesia localista e ao mesmo tempo cósmica, além da ocorrência de uma estética que absorve a lição de religiosidade peculiar a um dos primeiros poetas românticos brasileiros, Gonçalves de Magalhães.
Um poeta de envergadura épica e cosmopolita, considerado um caso à parte no romantismo brasileiro, pertencendo cronologicamente à terceira geração deste movimento, precedendo portanto Castro Alves de uma geração, foi o maranhense Joaquim de Sousa Andrade, o Sousândrade (1833-1902). Autor de “Guesa Errante” (1866) e “Novo Éden (1893), serviu-se de recursos estilísticos, sintáticos e formais os mais avançados, improváveis e inventivos para o tempo, haja vista as construções poéticas inusitadas, a síntese vocabular maximizada ao extremo, os jogos, experimentações e junções de palavras que são marcas inconfundíveis de sua poesia. A poesia de Sousândrade tem suas origens em fontes tão heterogêneas quanto estranhas ao mundo limitado e provinciano do país à época, contribuindo para isso a formação do poeta em países como a Inglaterra, os Estados Unidos e a França e a imensa cultura adquirida em leituras de primeira mão.
Excluído por muitos anos da cena literária nacional, da historiografia literária oficial e das antologias escolares, pelos segmentos mais retrógrados de uma crítica desleal e indigente, que sumariamente o ignorava, quando não mais incompetente para avaliá-lo, foi recuperado e posto em evidência em dias recentes pelo esforço diligente de Augusto e Haroldo de Campos, tendo sido relançado em pelo menos dois livros: “Sousândrade - Poesia”, Rio de Janeiro, 1966 e “Re/Visão de Sousândrade”, São Paulo, 1964 e 1982.
Apesar do seu engajamento nas fileiras republicanas, e de escrever versos de temática escravista nas “Harpas Selvagens” (1857), não logrou tornar-se um poeta popular, em virtude da dificuldade que demonstrava, e mesmo ainda hoje demonstra, de ser lido, e neste sentido está em franca desvantagem relativamente a Castro Alves.
A relação entre estes dois poetas configura-se tumultuária e desconcertante, de vez que o único ponto de convergência entre eles reside no plano estreito da tematização do escravismo e das lutas abolicionistas, e em alguns poemas de motivação lírica amorosa. Mas, mesmo nestes pontos, está implícita uma dissonância expressiva e formal evidente - Castro Alves prefere a grandiloquência dos versos oratórios e emancipacionistas, afincados ao modelo estético da escola condoreira, enquanto que Sousândrade exerce uma supremacia inconteste na dimensão formalística, o que lhe garantiu a posição destacada, no Brasil, de antecipador do movimento gerador do modernismo de 22.
A poesia que fez de Castro Alves um poeta conhecido e admirado no país inteiro durante sua vida trágica e encurtada precocemente, era bastante rica em experiências cotidianas no trato com a luta pela liberdade e com o amor das mulheres. Esta poesia propõe soluções, aponta caminhos e não está desvestida também de possíveis defeitos e incompletudes. Apresentam-se como defeitos a proliferação e a repetição desordenadas de elementos naturais, etéreos ou terra-a-terra, mitológicos ou místicos, que se alternam com insistência e contumácia, funcionando em imagens superpostas de mares revoltos, pássaros exóticos, céus escuros e tufões irados, notadamente nos poemas escravistas.
Hoje talvez não resultasse adequada certa instrumentação poética por ele utilizada naqueles dias, diante agora de um mais fragmentário, fragilizado e pouco decantado “gosto popular”. O imaginário coletivo brasileiro não possui, desse ângulo, parâmetros de referência cultural que o identifiquem a elementos artísticos e poéticos, estranhos à realidade batida do dia-a-dia, como os elementos fundadores das mitologias grega e romana, das literaturas francesa, alemã ou inglesa.
Pode-se afirmar com certa margem de acerto que nada disso intimidou a gente dos Oitocentos, quando se pensa na força “retórica” comunicativa e convincente dos recitais do jovem e inflamado poeta. Uma força desse tipo, que se exprimia no plano da emotividade e da pregação emancipacionista, reafirmava-se constantemente em palcos e sacadas de teatros do Recife, de São Paulo ou de Salvador (lembre-se aqui as polêmicas mantidas com Tobias Barreto no Teatro Santa Isabel, no Recife – Castro Alves fazia a defesa de Eugênia Câmara, enquanto que Tobias Barreto improvisava em favor de outra atriz, Adelaide do Amaral, ambos disputando ainda a liderança da escola condoreira, situados em polos opostos que estavam quanto à equação dialética excludente revolucionarismo vs. oportunidade.), no glamour de salões burgueses, nas praças públicas e meetings, e na difusão oral generosa e desinteressada de uma vasta porção das camadas populares.
Tido o nosso poeta como o poeta mais lido e declamado no seu tempo, e mesmo em décadas posteriores, ele praticava uma poesia de versos calcados no antagonismo radical à opressão escravista – extinta em 1888, dezessete anos depois da sua morte – e no combate ao regime monárquico do Segundo Império, iniciado em 1840 com o golpe da maioridade do príncipe Pedro II e alcançando um êxito relativo de 1850 a 1860, mas logo após começando a declinar irremediavelmente. Esse regime, apesar de todas as lutas internas e externas que explodiam dentro e fora do Brasil, se estenderia até 1889, quando foi finalmente substituído pela República. Assim, Castro Alves terá um dia antecipado o seu alerta indignado ao “sátrapa arrogante” e o seu apelo patético ao “Senhor Deus dos desgraçados”. Terá circunscrito ali também a sua “mensagem libertadora” no encerramento de um ciclo histórico conturbado e complexo, prestes a arrefecer valentias, engodos e empáfias triunfalistas. E deixará demarcada ainda, num auto de fé e guerra, sem retorno ou remissão possíveis, a consumação dos últimos suspiros, ademanes e revoltas de uma época.

2 comentários:

  1. Maravilha! Conferindo as novidades e ficando por dentro de tudo. Salve a poesia!
    Abração
    www.luizalbertomachado.com.br

    ResponderExcluir
  2. muito boa a sua opinião sobre o gigante
    castro alves!
    Você é um dos nossos melhores
    críticos literários!
    e seu blog está muito bom!
    parabéns!

    ResponderExcluir