quarta-feira, 17 de março de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XVI

BASTIDORES DA LUTA COMUNISTA NO BRASIL:
A MORTE DE ELZA, A GAROTA

O interesse pela história brasileira recente permite a aparição de textos de enfoque jornalístico, teor memorialista ou com inserções da narrativa romanceada. A partir de um ponto de inflexão escolhido historiadores, jornalistas e escritores podem elaborar a escrita dos acontecimentos às vezes encobertos e sem repercussão pública que se passaram numa década ou num século específicos. Neste sentido, um dos bons lançamentos de 2009 foi certamente Elza, a garota, apesar do subtítulo chamativo e sensacionalista, “A história da jovem comunista que o partido matou”. O livro do escritor mineiro Sérgio Rodrigues reúne jornalismo documental e ficção memorialística e histórica em dois andamentos distintos que às vezes se complementam.
O texto de Rodrigues ultrapassa o romance centrado preferencialmente no caráter histórico-biográfico de personagem única, pois não se trata apenas da vida de uma personagem eminente ou obscura, mas de várias personagens que foram eminentes por um tempo e se tornaram obscuras com o desenredo dos fatos políticos, ou vice-versa. Além de Elza Fernandes, cujo nome de batismo era Elvira Cupello Calônio, surge, no rol da mesma importância dada a ela, a figura de Miranda, secretário-geral do PCB (antigo Partido Comunista do Brasil), o baiano Antonio Maciel Bonfim, seu amante. Somando-se ao casal malogrado, irrompe com especial imponência o líder de todos que combatiam o varguismo nos anos de 1930, Luiz Carlos Prestes.
Para esmiuçar a morte injusta e desnecessária de Elza por enforcamento, provavelmente aos dezesseis anos, entre o final de fevereiro e o início de março de 1936, no grotesco âmbito de um pequeno e obscuro comitê comunista suburbano arranchado numa casa modesta no Rio de Janeiro, o autor recorreu a fontes múltiplas que residem na oralidade e nos arquivos e bibliotecas. A primeira requer o testemunho vivo, e aí foram convocados raros militantes de época e alguns historiadores. A segunda se realiza na busca paciente, que não se assombra com a falta ou o excesso de documentos. No caso em análise, a ausência de dados historiográficos levava a apenas uma versão do episódio, que era a dos interessados na propaganda anticomunista, refluindo ainda hoje em meios como a internet. O resenhista lembra que, quando adolescente, teve acesso, no colégio em que estudava, a um livreto apócrifo que falava exatamente sobre a morte de Elza Fernandes, com iconografia e relatos que sugeriam ter sido feitos por alguém de extrema direita.
O resenhista lembra também que, ao ler pela primeira vez Memórias do cárcere de Graciliano Ramos, a passagem devastadora sobre Miranda ficou inquietantemente marcada em seu pensamento, pois ali estava o máximo de desprezo a que um ser podia chegar a ter por outro, mesmo em termos escritos. O erro de Miranda teria sido o de acreditar, naquela fatídica década de 1930, a partir da possível participação dos comunistas locais na Internacional Comunista, numa revolução brasileira mais próxima do que os horizontes estreitados permitiam, do que a polícia de Getúlio Vargas e a militância nativa e tosca do PCB sugeriam. Situação que Vargas aproveitou ao máximo, como dispara o personagem Xerxes, lançando luz sobre o movimento: “Nunca teve chance real de vitória, ficou restrito a três ou quatro quartéis, foi ignorado pelo povo, fortaleceu Vargas, abriu caminho para a ditadura do Estado Novo, levou milhares de pessoas à cadeia, encheu as câmaras de tortura, esfacelou o Partido, deu à direita um estoque de lendas e bichos-papões para durar até o fim do século”.
Um acerto figadal de contas com a figura mitificada de Luiz Carlos Prestes se desenha no bloco ficcional, quando as memórias do velho comunista Xerxes vêm à tona. O tom romanesco adquire, com insistência notável em muitas passagens, o estatuto de relato histórico datado e com fartura de argumentos. Mas não há, aí, a obrigatoriedade documental que perfaz a metade jornalística. São as vidas do calejado e pretensioso Xerxes, do jornalista desempregado Molina, da sua namorada Camila em transitação urbana e dinâmica. E de todos aqueles que receberam um sopro de vida no fluxo da narrativa empreendida por Xerxes, que fala prodigiosamente até morrer. Um homem que guardava ressentimentos profundos, principalmente pelos algozes de Elza/Elvira. Os sete acusados dessa morte foram todos presos e condenados a 30 anos de prisão, inclusive Prestes, apontado como o mandante, tendo sido beneficiados com a anistia em 1945. Apaixonado por ela, Xerxes nutria, na mesma proporção, respeito e ódio por Miranda, que o teria ameaçado de morte por causa da garota. Em certo ponto da narrativa, um estratagema do autor em forma de citação serve para questionar se seria preferível alguém trair um amigo ou a pátria. A alusão a Prestes informa que este ousou trair o país em favor de um amigo, o Partido Comunista.
Digna de nota é a maneira brincalhona com que Sérgio Rodrigues passa a tratar, em ocasiões diversas, assuntos tidos como incômodos e sérios: a traição indesejada, a militância desnorteada e o justiçamento paranóico e inadiável pelos quadros comunistas. Ou a dúvida permanente que o jornalista instaura, mesmo com uma quantidade razoável de documentos e dados à mão. Sete décadas depois, quando a história já atropelou e cobriu com uma pá de cal numerosas experiências traumáticas, o mínimo que se poderia fazer era desencavá-las com a devida cautela e o necessário zelo requerido. É certo que houve um esfacelamento da esquerda em formação, em pleno processo de dissociação e desligamento do anarquismo pioneiro, a partir do malogro da Intentona Comunista. E que, trinta anos depois, com o endurecimento dos militares, tais experiências iriam dar continuidade aos tremendos prejuízos anteriores. Pensando-se no agora, a sequência ainda não foi desfeita, pois intenta-se massivamente a junção dos dois polos no bojo de alianças inimagináveis e na tentativa de descrédito ideológico tanto por elementos de um lado, que estão no seu papel conservador, como do outro, que padecem de excessivas ambições populistas para a conquista do poder a qualquer custo.


OSMAN LINS REVISITADO

Dois livros contendo ensaios sobre o escritor pernambucano Osman Lins e sua obra foram publicados por ocasião da passagem dos 80 anos de seu nascimento. Nascido em Vitória de Santo Antão, a 5 de julho de 1924, após a adolescência o autor de Avalovara passou o restante de sua vida entre o Recife e São Paulo, tendo feito algumas viagens ao exterior. Publicado pela UFPE, Vitral ao sol – ensaios sobre a obra de Osman Lins, com organização de Ermelinda Ferreira, reúne colaborações internas e externas à universidade, incluindo também depoimentos das filhas do escritor. Os textos trazem a empatia e a admiração de leitores especializados ou especialistas na obra osmaniana, que analisam a sua prosa em manifestações modelares como a ficção inicial, ligada ao regionalismo, e posteriormente sustentada nas descobertas e inovações estruturais mais independentes e arrojadas. É também analisada a ensaística dos “problemas inculturais brasileiros”. Mesmo o seu último trabalho, A cabeça levada em triunfo, inacabado, merece um ensaio da própria organizadora, onde se pode ler que, “sentindo-se próximo do fim de sua vida, Osman Lins, crítico de si mesmo, põe simbolicamente a cabeça a prêmio no seu romance inacabado, antecipando as decapitações futuras, os desmembramentos e esfacelamentos a que sua obra estaria sujeita com a sua partida”.
A ruptura dos limites entre a prosa e a poesia no texto osmaniano é enfatizada com rara argúcia por Lourival Holanda: “A prosa de grande densidade poética de Osman desfaz as fronteiras: porque seu sentido não se separa da musicalidade, de um certo ritmo, próprios da poesia, da melhor poesia”. Lourival é fundador do grupo de pesquisa Sol – Sodalício Osman Lins, que vem realizando encontros e eventos destinados ao estudo de literatura, e neste momento comemorativo mais específico, à obra de Osman Lins. Em Vitral ao sol podem ser lidos também textos inéditos em livro do próprio Osman, de enfoque mais jornalístico que acadêmico, onde se destacam, por exemplo, uma “homenagem à memória intelectual” do crítico Anatol Rosenfeld e uma análise comparativa das obras dos pintores pernambucanos Eliezer Xavier e Aloísio Magalhães.
Osman Lins – o sopro na argila, organizado pelo mineiro Hugo Almeida e publicado em São Paulo, pela Nankin Editorial, segue também a linhagem acadêmica. Do mesmo modo que em Vitral ao sol, alguns ensaios aparecem excessivamente carregados de citações de origens diversas e misturam a prosa acadêmica que se reivindica mais racional e pensada com os mais medíocres lugares comuns. A estética da recepção faz-se presente num texto da tradutora francesa Gaby Kirsch, que mapeia como se comportaram edições dos livros O fiel e a pedra, Nove, novena, Avalovara e A rainha dos cárceres da Grécia no Brasil, na França e na Alemanha, em termos de público, crítica e editores. Sandra Nitrini, responsável pelo arquivo de Osman Lins na USP, estuda um livro diferenciado em sua obra, Marinheiro de primeira viagem, que é um relato de uma viagem à Europa, escrito como prosa memorialística com entradas de ficção. Num bloco desta coletânea é avaliado ainda, sob enfoques diversos, Avalovara, e igualmente, noutro bloco, A rainha dos cárceres da Grécia. Comparecem também textos de nomes consagrados como Modesto Carone e José Paulo Paes, este último amigo de Osman e prefaciador de Avalovara.
Uma das exceções ao texto acadêmico é o depoimento de Lauro de Oliveira, outro participante do Sol, que foi amigo e colega de trabalho do romancista em instituição bancária, militando permanentemente na divulgação do seu nome e sua obra. Oliveira elabora uma espécie de minibiografia, contemplando aspectos vivenciais como a convivência no trabalho, em família e com intelectuais, a necessidade paralela de desenvolver o ofício literário e, em certos momentos, as profundas inquietações pessoais e éticas osmanianas.

(Continente, ano IV, nº 45, set. 2004; aqui, com pequenas alterações.)


POEMAS DA SÉRIE INÉDITA A OUTRA VOLTA DO SOL


OUTRA VISÃO DA CAATINGA

Sobre o chão secular da caatinga
o tempo parece dormir no silêncio
e na solidão que a tudo castiga
nesse mundo irrevelado e suspenso.

Ali há um sol vertical violento
que desvia o foco e ofusca a mira
dos gaviões que viajam sedentos
na lembrança de suas presas sem vida.

Nesse chão de granito e aspereza
um aboio prolongado ao longe seduz
o gado tangido com ânimo e destreza
no cantar de ouvido que o galope traduz.

Nesse chão pedregoso os rios são raros,
como escassa é a chuva que os alimenta.
O calor funde as rochas mais claras,
a poeira se espalha incendida ao vento.

Um comentário:

  1. Caro Luiz
    Parabéns pelo blog.
    Sugiro divulgar um dos seus livros (ou mais de um, publicado ou inédito) através do Google Books ou de outro repositório público, de caráter universal.
    Assim vc atingirá um público muito mais amplo, sem as limitações das publicações "em átomos".
    Mais ainda, recomendo usar um dos selos legais do Creative Commons (do qual o Brasil é signatário), em lugar do restritivo copyright.
    Um abraço
    Paulo G. Cysneiros

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