quarta-feira, 24 de março de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XVIII

O AMOR, A MUSA E A CRUZ NA POESIA
DE WEYDSON BARROS LEAL

O novo livro de Weydson Barros Leal, A quarta cruz (Rio de Janeiro, Topbooks, 2009), é trabalhado a partir de uma tríade predominante que envolve os desígnios mutantes do amor, os humores e caprichos da musa e a onipresença insofrida e ambígua da religiosidade. Os poemas mais longos lembram um certo Vinícius elegíaco do início, às voltas com o sobrenatural nas praias do Rio de Janeiro. Palavras que ressoam, circulam e se revelam fortes, de imagética em choque perene entre cotidiano e metafísica, intentando a conciliação de memória e impossibilidade. Anteriormente já tinha anotado, em artigo sobre a coletânea Os círculos imprecisos (1994), o diálogo entre a poesia de Barros Leal e a de Ferreira Gullar, na apreensão de uma sintaxe do fogo, da vertigem e do incêndio.

Em “A nona hora”, primeira parte do livro, os nove poemas se distribuem de um modo bem eclético quanto aos assuntos. Não deixa de falar do Recife, suas “Baronesas” que sugerem o movimento lento do verde nas águas fétidas do rio, e o arco ferruginoso de suas pontes, mesmo se algum prefeito manda pintá-las. “Noites de Ipanema” expõe a presença surda e inesquivável do Cristo Redentor, símbolo da cidade e juiz implacável que, mesmo de perfil, a tudo julga e observa: “Seu perfil totêmico – a cabeça levemente/ inclinada sobre o peito – em nada faz lembrar/ a forma em cruz de quando visto de frente./ Este ângulo dissolve-lhe os braços,/ e com a mão direita/ a estátua aponta para mim”. Há, ainda, em “Contra inspiração”, considerações sobre emoção e objeto, concreto e contemplação. Neste embate, o descritivo cede lugar à comoção e vice-versa, restando ao poeta ouvir as batidas do seu coração visto percussivamente como “tambor”, e ouvindo o próprio “silêncio, carregado/ demais de significados// inapreensíveis/ para a teoria”.

Na segunda parte, “O tear da manhã”, o discurso lírico se reafirma a partir de versos que falam de partida, ausência e solidão. O poema “A carta”, que não redime a inevitabilidade da morte, exprime a constatação de um destino comum a tudo que é humano, a tudo o que tem fim, duração e recomeço: “Seremos, no fim, uma data,/ um nome sobre a pedra fria./ No tapete da terra, a carta/ que se lê mas que não se envia.// No fim, um corpo, um rastro, a lenda,/ e depois de tudo a certeza/ de não ser nada além da emenda/ entre o jazigo e uma vela acesa”. O impacto sobre o ser é o seu desaparecimento, mesmo que alguma “lenda” resista, ele ficará encerrado numa lápide fria e circunscrita apenas ao ermo de duas datas – a data promissora de quem nasce e vê a luz do mundo e a data de quem fica cego a essa luz propiciadora da vida, de quem terá por luz apenas a precariedade ritual da “vela acesa”. É no terceiro bloco, “Poíesis”, que essa dicção apaixonada chega ao seu auge, e o amor cede espaço a um tom sentimentalista em oposição ao cerebralismo, ao discurso expressionista e à linguagem concreta e enxuta de outros poemas. Mas o registro pessimista, forte mas não destrutivo, centrado ainda em vivências traumáticas e demasiadamente solitárias aflui num poema como “Verbo”: “Agora que és uma costela,/ faz o teu corpo.// O tempo conduzirá ao seu leito/ a língua de tua fogueira.// Que tu a ames,/ como se ama o que morre.// Eis o amor”.

Weydson Barros Leal explicita, no último bloco, a junção entre religiosidade e vida prática, a internalização mística e o que vem das experiências de fora. O bater martelado dos relógios, o tumulto premonitório e a dúvida que se instauram na vida presente e que não se mostra satisfatória. A busca de algo impossível de se concretizar por agora, no caos elementar e vertiginoso em que se vive, mas sempre entrevisto num futuro adiado, no bojo da espera dos acontecimentos improváveis, na transformação do ser em um ser mais solidário e liberto, na transformação do mundo em um mundo mais justo e humanizado. O sentido metafórico mais aguçado de “A quarta cruz” se mostra em “O bom ladrão”. Ele é aquela figura que cometeu todos os erros em nome do amor. Foi pária, maldito, anti-social e renegado ao quebrar todas as normas, regras, leis e convenções guiado por algo maior, mesmo que a sociedade, a família e os amigos o deserdassem. Passou a sofrer um tipo de condenação tranquilamente absorvida e assumida, feito quem, sem mais esperança de nenhuma espécie, se dirige de cabeça erguida ao cadafalso. E faz, assim, o reconhecimento da associação advinda de imanência e transcendência, absorvendo a hora definidora e fatídica em que se reconciliará consigo mesmo e com o mundo.


O CAOS ROMANCEADO DE RAIMUNDO CARRERO

A trajetória literária do romancista Raimundo Carrero atingiu um dos seus pontos mais significativos com a publicação de Sinfonia para vagabundos, nono livro de sua já respeitável lavra no campo da ficção. Não é exagero afirmar que o leitor vai deparar-se, neste romance, com diferenciados aspectos e recursos pertinentes ao âmbito próprio da literatura, com técnicas múltiplas e variadas do fazer literário. É um fato também que este fazer literário, se encarado como um complexo de totalizações e/ou fragmentações observadas ao nível por demais amplo da linguagem, e por indução da língua, de sua(s) preservação ou desmembramento, teria a função primordial de propiciar a amplitude e a diversidade necessárias à elaboração e ao acontecimento do fenômeno artístico da criação literária, e nesse caso particular, da obra de ficção.

No seu aspecto técnico-estrutural, Sinfonia para vagabundos é composto de três grandes blocos: “Se é desejo assassinar a alma”, “Companheiros do subterrâneo” e “Arcanjos derrotados”, que aparecem também como poemas curtos antecedendo a prosa e a poesia internas a cada um deles, poemas e blocos, e de um pós-epílogo: “O tigre desolado”, ponto de tensão máxima do romance, quando deflagra-se a crise do professor Deusdete, que se reflete na ruptura com os valores, tipo de comportamento e postura individual e social que vinha assumindo ao longo de sua vida, e de um delírio radical do personagem Natalício, onde este exprime o desejo nada comum de ‘trocar de alma para vencer as barreiras dos espelhos circulantes e mergulhar nos subterrâneos onde habitam os anjos, os mártires e os místicos’. Assim, Sinfonia para vagabundos pode ser lido e remontado pelo leitor a partir dos dez textos longos nele ocorrentes – prólogos, textos intermediários sem nenhuma titulação e epílogos, que por sua vez se desdobram numa grande quantidade de textos breves e obsessivamente titulados, como pequenas incursões poéticas em prosa.

Os onze poemas curtos que Carrero insere no livro estão escritos quase todos na primeira pessoa, a forma invariável, se bem que atravessados por versos cortantes, pungentes e dilacerados, como a demonstrar o recorrente processo de laceração, tortura e esmagamento sofrido pelo poeta nos recantos e espaços minados da urbe.

Voltando agora à prosa, e utilizando a qualificação de textos breves para os 78 instantes espalhados pelo livro, feito um disco de 78 rpm que girasse vagarosa e indefinidamente, justificando talvez o que o autor denominou “Visões em preto e branco para sax tenor”, é fácil constatar que tais instantes acham-se entremeados de citações sistemáticas de outros autores, resultando numa grande montagem que se adéqua, mais das vezes, às indagações, afirmações e negativas de Carrero quanto ao seu próprio processo criativo. Aí se verifica também a inserção paulatina dos três personagens que dão sustentáculo à narrativa.

A eterna peregrinação de Natalício, sempre com o saxofone debaixo do braço, a tocar para um público inexistente, personagem em “completo abandono”, músico mendigo, boêmio vagabundo e artista fracassado da ruas do Recife, mas que busca, através da música, ‘a melodia, a harmonia perfeita, o sonho completo’; a exegese aristocrática e decadente do professor Deusdete, um intelectual no sentido antigo, austero e conservador, leitor solitário e contumaz de poesia, que não escolhe ambiente para desfrutá-la nem fazer recitais, independentemente de quem ou do que o rodeia, pois ‘nada lhe interessa além dos livros’; o desajuste permanente de Virgínia, personagem de “trágica invenção”, imersa num vago e indefinido torpor, a pensar o tempo todo sobre o próprio destino, ‘uma mulher que procura o vazio na intimidade’. Virginia é aquela que se manterá virgem até o fim, preservando-se a qualquer custo, debatendo-se entre a perda dessa mesma virgindade e a necessidade de ‘sentir o prazer do sexo’, são esboços abreviados dos personagens de Sinfonia para vagabundos. Pode-se acrescer ainda que eles padecem de uma certa “perda de identidade” já o bastante difundida e banalizada sofrida pelo humano frente à vida e ao mundo, além da sensação de insignificância provocada por essa circunstância particular de o individuo ser apenas um número a mais no cômputo geral da grande massa humana que povoa cidades, países e continentes.

Os tempos verbais nos quais os personagens se movem no romance são também antecipados pelo ficcionista. O “movimento do estático” a que faz referência reflete uma interpenetração de efeitos da observação e da ação que interferem diretamente na construção do romance e dos personagens. E aqui torna-se necessária a utilização de uma certa liberdade conceitual do movimento, que é pertinente ao campo da Cinemática, uma das subdivisões da Física. O exemplo clássico para o tipo de movimento no qual estaria incluído o movimento do estático definido por Carrero é o “movimento relativo”, se se avaliar isto por um ângulo estrito e unilateral; o movimento relativo em Física seria, então, o movimento de pessoas ou objetos estáticos no interior de um “móvel” em relação a um observador externo a ambos.

Para fazer uma comparação inusitada, o observador, no caso em questão, viria a ser o próprio escritor que destece a trama e impulsiona a narrativa, sem muitas vezes dela(s) participar ativamente (quando, como na maioria das páginas deste livro, desloca a escrita para a 2ª ou 3ª pessoa) e as pessoas no interior do móvel os personagens. O romance representaria, nesse contexto, o móvel, cujo movimento se inaugura a partir da transcrição dos signos verbais que o compõem e o tornam em coisa viva, durante o acidentado percurso de sua elaboração e feitura.

É este, numa visada geral e de enfoque crítico rápido e parcial, o caos romanceado por Raimundo Carrero em Sinfonia para vagabundos. Um caos organizado, porém – justaposto com exatidão e critério em suas minúcias e detalhes exaustivos, em seus instantes, círculos, discursos, delírios e poemas, e ainda na transitação discreta e efêmera de seus personagens visualizados à luz obscura das ruas, bares, praças, bairros e avenidas da cidade do Recife.

(In: Jornal do Commercio, Caderno C, 28/05/1995; aqui, com pequenas alterações.)


UM POEMA DE NOEL TAVARES

O poeta e compositor Noel Tavares publicou, em 2009, seu segundo livro de poesia Andávia, em edição particular, com incentivo público. Os seus poemas falam preferencialmente de coisas cotidianas, terrenas, abrindo espaço também para o sentimento lírico, a revolta ante as injustiças sociais e a convivência familiar e fraterna. Contudo, no poema aqui escolhido, “Ode à cidade do Recife”, Tavares estabelece o seu campo de atuação urbano, ao cruzar as fronteiras marginais da cidade, ao adentrar as esquinas, ruelas, mercados e bares onde se fomentam as vivências precárias e diferenciadas dos esquecidos, dos desocupados e sem função social definida na grande máquina movida pelo sistema político-financeiro da cidade e do país. Faz referência a poetas pernambucanos como Manuel Bandeira e Carlos Pena Filho, parodiando-os. Pena Filho tem um longo poema sobre o Recife, que se situa historicamente a partir da criação da cidade, passando pela expulsão dos holandeses, até chegar ao nosso tempo, o Guia prático, onde costumes e hábitos são dissecados nos bairros centrais e nos subúrbios. É um canto que se rebela também com as vivências pequeno-burguesas da cidade, com a indiferença mostrada na relação com seus filhos, expulsando alguns deles para outras paragens. Tal como no poema de Noel Tavares, que aqui se transcreve:


Hoje, não cantarei o Recife de Manuel Bandeira,

o Recife da lira e das bandeiras liberais,

o Recife do chicote-queimado na rua da União,

do coelho; sai-não-sai, sai-não-sai.

O coelho sai? Não sai!

Hoje, cantarei o Recife das mulheres da vida

e desses homens marginais. O Recife dos loucos

que estendem as mãos e riem de si mesmos

como se fossem seres tão normais.

O Recife dos heróis, sem glória e sem nome,

cuja lista daria tranquilamente para encher as estantes

da Academia Real de Londres.

Hoje cantarei o Recife dos mangues, das palafitas,

das crianças exangues, que teimam em existir.

O Recife das crianças que andam sobre a lama

em busca de um siri.



Hoje, cantarei o Recife do: é melhor partir.

Mamãe, eu acho que vou para o Rio de Janeiro,

acho que lá não tem um rio que fede igual a esse aqui.

Mas o rio Capibaribe não escuta,

porque está preocupado em invadir a várzea

para desovar a miséria.

Recife é coisa séria! Às vezes, esquisito;

ás vezes, esquistossomose.

E enquanto um delira, o outro morre

sem saber do que, por que e para que.

E lá no bar Savoy, tantos de porre!

Lá no bar Savoy, onde o poeta Carlos Pena Filho

nunca disse: Recife, eu tenho pena de você.

Hoje cantarei o Recife das pontes,

mas não da família Pontes, nem Vieira, nem Freire

e nem Bandeira. Hoje cantarei o Recife das pontes,

entre a bastança do ter e do não ter.

O Recife dos mendigos, desses artistas de circo

Que saltam do trapézio pra morrer. Tampouco

cantarei o Recife de terno, do cinema moderno,

pois o filme real desta cidade não passa mais ali.

Cantarei o Recife das igrejas, da erva e da cerveja,

do porre e do xixi.

– E eu não quero ir pra Pasárgada.

Eu quero é ficar aqui!



POEMAS DA SÉRIE INÉDITA A OUTRA VOLTA DO SOL


A CANCELA


Nada consegue gemer mais

que uma velha cancela de sítio

solitária entre as cercas

de currais e riachos, baixios

nos barrancos e várzeas, veredas

da terra abandonada.



Ali a Cacimbinha rendeu-se

em morosidade e cansaço.

E já não há moradores,

os rios são barro e areia,

os animais desertaram

a outras furnas e pastos.



Ficaram apenas as mesmas

árvores destemerosas

da mão pesada do homem

na inconstância dos dias:



Pau-d’arco, quixaba, umbuzeiro

o juazeiro a braúna o angico

que jamais desprezaram a quem

as fez de mourão ou abrigo.

Um comentário:

  1. Excelente a resenha crítica do Sinfonia para vagabundos, Luiz Carlos. Belíssimo seu A cancela. Leitura nutritiva no seu blog, feito sempre.
    Abraço

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