SOLIDARIEDADE E ESPERANÇA
Esperança e solidariedade são palavras justas e inquietantes, que somadas a liberdade e amor definem e completam o destino humano. Há, no entanto, conjuntos de palavras que exprimem situações opostas, mas que devem ser lembradas pelo seu impacto sobre o mundo contemporâneo. São algumas delas, formadas em blocos: os atos da violência extrema de grupos organizados associados aos cartéis do tráfico e ao fundamentalismo; a corrupção provocada pela cobiça e pelo desejo insaciável de poder, que desfalca dos cofres públicos o capital que pertence, de direito, à população de um país; a devastação ambiental ilimitada, cujos grupos empresariais que a praticam, não escolhem áreas para desmatar e explorar. A liberdade, que se fragmenta a partir destes e de outros elementos, pressupõe coisas básicas de sobrevivência e livre expressão. A falta de componentes imprescindíveis a uma vida digna induz o homem a se portar e ser visto com a descartabilidade da máquina, do número, da coisa, do detrito e do objeto.
Nem tudo, no entanto, parece estar perdido. Existe uma cadeia de pessoas que guarda princípios éticos inalienáveis, trabalhando silenciosamente e sem alarde para que outros homens, mulheres e crianças não sucumbam. Pessoas públicas e anônimas que se opõem, por exemplo, à sordidez implacável da pobreza. São essas pessoas, tantas que não conhecemos, outras com as quais cruzamos ou vemos no cotidiano, presencial ou virtualmente, que estão em todos os lugares e setores da sociedade, do trabalho e da vida, com o seu despojamento honrado, generoso e desinteressado. Elas transmitem alguma espécie de confiabilidade e alento aos seres humanos. E por isso pessoas assim nos levam a pensar e crer que palavras como solidariedade, esperança, justiça e paz possam ainda significar algo.
A ESTÁTUA DE DRUMMOND
Por que roubar os óculos da estátua do poeta Drummond,
se ele não mais vê o mar e nem anda de táxi, ônibus ou bonde?
GUIMARÃES ROSA POETA
Um livro que permaneceu inédito por mais de seis décadas, Magma, somado a uns poucos poemas esparsos e de circunstância, compõem a reduzida obra poética de João Guimarães Rosa. O escritor mineiro, nascido em 1908 e morto de infarto em 1967, procedeu, no âmbito da prosa, inovações definidoras com relação à linguagem ficcional, injetando-lhe vida, dinamismo e inventividade, conforme se pode comprovar em romances e contos que escreveu. Em Magma (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 148 páginas), ele revela-se um poeta que adota explicitamente o verso livre, e num outro pólo, a sintaxe oficial e enquadrada que muitos poetas passaram a praticar após a Semana de Arte de 22.
É sintomática a constatação de que em todos os poemas deste livro, mesmo nos hai-kais e poemas curtos, o fechamento faz-se invariavelmente reticenciado. As reticências, embora usadas em profusão, não apagam, no entanto, a força das paisagens que ondulam entre escarpas, montanhas e serras ou os diálogos extremamente rápidos e vivos, onde o homem conversa sem cerimônias com outros homens, com os animais, o sol e as águas. Eventualmente, tais reticências podem estar em alguns instantes eivadas do brilho um tanto artificial de uma pedraria que ofusca pelo seu efeito insólito e, de modo paradoxal, neutralizador.
Mas, é de admitir também a introdução de um ritmo ágil e flexibilizado, de metáforas características e prenunciadoras, como recursos poéticos que seriam exaustivamente aplicados ao seu fazer literário futuro. E isto tenderá a tornar-se, pela maneira como acontece e aflora-se neste Magma, marca de recorrência e estilização em Rosa.
Entre as temáticas contempladas em Magma, ocorrem com grande freqüência as que falam da natureza e seus elementos – homens, animais, águas, árvores e minerais existentes e escolhidos de preferência no estrato ambiental e humano do sertão de Minas Gerais. Os poemas que referem-se a sentimentos e estados espirituais intensificados, apresentam-se às vezes conflitantes e paradoxais: “Desterro” ou “Regresso”, “Ironia” ou “Angústia”, “Integração” ou “Revolta”. Perfazem novas seqüências a poetização de ambientes e lugares, com os exemplos de “Na Mantiqueira” e “No Araguaia I, II, III e IV”.
Guimarães Rosa serve-se de recursos vocabulares retirados da química, das matemáticas e da mineralogia. Figuras geométricas são utilizadas para retratar animais (“A Aranha” e “Meu Papagaio”), além de detalhes irônicos e bem-humorados relativos àqueles. A lenda indígena de “Iara”, em mistura com figuras mitológicas produz versos do tipo: “E Danaides laboriosas se desviam dos cardumes/ de Nereidas,/ que imergem, ondulando as caudas palhetadas/ dos seus vestidos justos de lamé...”.
Numa série de poemas sobre cores, a ênfase pode não dirigir-se necessariamente para o cromático ou o pictórico convencionais, antes avançando em outras regiões da poesia. Exemplo disto é a estrofe inicial do poema “Vermelho”, onde faz-se o contraste entre o sangue vermelho da virgem e a brancura cristalina da pomba: “É uma pomba/ - parece uma virgem./ De debaixo das plumas, vem o jorro/ enérgico, da foz de uma artéria:/ e a mancha transborda, chovendo salpicos, a cada palpitação”.
O Rosa prosador é antecipado pelo Rosa poeta que com este Magma ganhou, em 1936, o prêmio anual da Academia Brasileira de Letras. Contudo, não resta dúvida de que tais poemas refletem um poeta com menos de trinta anos à época, mas já senhor do seu ofício literário, a dominar perfeitamente os ritos essenciais e os recursos indispensáveis à escrita de poesia e à prosa que o consagrará.
PARACHOQUE DE CAMINHÃO
Era tão canalha que não suportava encarar
a vileza da própria imagem no espelho.
UM POEMA DE MANOEL DE BARROS
Manoel de Barros ((1916) é de Cuiabá, Mato Grosso. Tem mais de 20 livros publicados. Um dos mais recentes, Livro das ignorãças, traz o poema final intitulado “Auto-retrato falado”. Afasta-se dos efeitos inusitados e presentes, quase sempre, na poesia de Barros: dos versos desconcertantes, do encobrimento de um provável sentido, do diálogo surrealista com a terra, as plantas, os rios e pássaros. Neste poema, descobre-se um pouco do homem Manoel de Barros:
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.
POEMA DA INADIÁVEL PARTIDA
Sem os teus afetos,
sem amor ou calor
que farei aqui
nessa cidade perdido?
Partirei agora.
De tristezas inúteis
não é o meu caminho:
Sonho & Vida.
Pássaros no meu encalço.
Árvores nuas na estrada.
Velejarei por novos braços,
novos sonhos abraçarei.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Carlos Pena Filho
POETA DE RÁPIDO DESTINO
Carlos Pena Filho fez sua estreia na poesia em 1952, com a reunião dos primeiros poemas escritos numa publicação a que intitulou de O tempo da busca. Nascido no Recife a 17 de maio de 1929, desde muito cedo se afirmou como uma personalidade singular de poeta em franca e rápida expansão, tendo deflagrado, com este livro, parte de suas inquietações de artista recém-saído da adolescência. Esta fase inicial envolvia certas indagações estéticas e existenciais latentes, além de algumas projeções e questionamentos acerca da validação do ofício poético e da experiência concreta com o mundo sensível, notadamente quanto ao seu posicionar-se e se fazer presente diante dos acontecimentos da vida cotidiana e da arte do seu tempo.
A passagem da adolescência à fase adulta em Carlos Pena Filho, mais acidentada do que propriamente calma, se encontra impregnada de um desempenho poético fracionado entre a fatura formal de um lirismo típico do neoclássico, pela via do soneto decassilábico, e o esforço de apreensão e superação dos mecanismos e manifestações poéticas posteriores aos modernismos de 22 e 30. Ela é concomitante também com o desempenho poético funcionalista, malogrado em sua maior porcentagem, da geração de 45.
Decerto que Carlos Pena Filho não executa, no decurso de sua poética, nenhum tipo de inovação formalística flagrante ou significativa, preferindo se exprimir no mais das vezes através das chamadas formas fixas. Mas, ao elaborar e construir pacientemente o corpus de sua poesia – que pode aparecer tanto em versos desvestidos da rima mais sistemática ou da metrificação tendenciosamente mais rígida e fechada, quanto ainda, e em maior ocorrência, na forma de sonetos precisos, exatos e impecáveis –, transitando com desembaraço evidente em campos formais que exigem habilidades até certo ponto raras, se torna fácil para o leitor constatar que são poucos os versos em que não demonstra competência poética.
Essa preocupação orgânica em trabalhar formas fixas, em engordar o rimário e a métrica consagrados pela poética tradicional – e talvez já demasiadamente empregados através de séculos, escolas literárias e gerações –, faz com que ele prescinda de arcabouços formalísticos e efeitos gráficos e visuais latentes, que permeiam, na década de 50, o ânimo e a postura das vanguardas. Estas, por sua vez, se reivindicam experimentalistas, polêmicas e inventivas. Utilizam-se de efeitos e estratificações que requerem justaposições minuciosas, arrumações diferenciadas e espacializações multiformes, que privilegiam bem mais os elementos formais, cujos resultados logram ser alcançados com a serventia e a ajuda de recursos operacionais correntes, como o deslocamento espacial de fonemas, palavras e versos e a exploração das fendas possíveis no campo visual que a página oferece, desenvolvidos notadamente com o surgimento daquelas vanguardas experimentalistas brasileiras, que pouca ou nenhuma influência exerceram sobre Carlos Pena.
Além desse tratamento artesanal classicizante que imprime a seus versos, corre paralela uma estranheza que se delineia referendada por uma angústia latente e demasiado presentificada, complexa e recorrente aos níveis de um estado poético onírico que se perfaz mais na superfície que no fundo, e é mais artificialmente provocado do que vivido ou sentido. E esse estado onírico desemboca ainda numa espécie de surrealismo irrealizado e programático apenas, onde a vigília se impõe predominantemente ao sonho, inseparável da lucidez desde sempre reivindicada no seu ofício de poeta. Lucidez que, se de um ângulo já descarta no seu nascedouro o malogro de um surrealismo mal assimilado, por outro, paradoxalmente, não se interpõe e nem exerce controle ou coerção castradora sobre um projeto poético de antes embasado no discurso lírico, que com frequência realiza-se em dicções que contemplam ora a vertente social e urbana, ora a vertente intuitiva, amorosa e subjetivista.
Em outra instância, ele vai discorrendo sobre o que se demonstrava como a sua perplexidade e o seu desencanto diante da sua própria poesia, com o seu dilema interno de poeta requisitado pelo formalismo intrínseco e estilisticamente devedor do simbolismo francês. Mas, além da influência francesa, o poeta continua a se filiar, embora com ressalvas, ao padrão operativo subjacente ao parnasianismo tardio dos poetas de 45. Na condição de “artesão caprichoso”, como ele se autodenominava, em certos momentos se aproximava bastante a esses poetas, que costumavam encarar e assumir “o poema como um artefato”, na expressão de um deles, Péricles Eugênio da Silva Ramos.
De 1955 em diante, nos primeiros momentos da instalação de um surto desenvolvimentista no país, de vertente kubtschekiana, e que tinha como linha política divisória a recente e nefasta presença getulista, de amplos reflexos ditatoriais e de caráter nacional-populista, Carlos Pena Filho voltava a sua atenção e o seu interesse mais diretos para uma espécie de cultura emergente, que se demonstrava originária das raízes e camadas populares, de suas forças mais simples e segregadas no cenário característico da região nordestina.
A cultura popular era este tipo de cultura latente, que viria a evoluir, na década de 60 em Pernambuco, para um movimento de considerável alcance e importância política inconteste: o MCP – Movimento de Cultura Popular, que contribuiria radicalmente para a viabilização e a consolidação das lutas pela resistência democrática no Brasil. O MCP englobava as lutas camponesas no campo e a luta clandestina urbana e ostensiva das várias correntes de esquerda então atuantes, a conscientização de pessoas através da educação básica e transformadora do método Paulo Freire, o cinema novo, a literatura de cordel e o desempenho poético-musical dos cantadores e violeiros repentistas, o teatro popular revolucionário, a música popular de protesto dos festivais, da bossa nova e do tropicalismo, a poesia, o conto, a novela e o romance engajados, entre outras manifestações políticas e culturais.
Carlos Pena Filho adota, já nos anos 50, principalmente com a escrita arrojada do bloco de poemas intitulado Nordesterro e do seu poema inteiramente dedicado ao Recife, o Guia prático da cidade do Recife, o desdobramento poético dos eventos localistas e populares como orientação cultural e estética. Antecipa e amplia, dessa maneira, sob a nítida influência de João Cabral de Melo Neto, formas poéticas que irão ser altamente desenvolvidas e intensificadas nos anos posteriores, quando ascenderá a um plano empenhado e questionador da cultura e da política, essa modalidade cultural específica. Deste modo, a cultura popular se insurgirá atendendo às necessidades de uma literatura interna, como resposta provável, nas dimensões dialética e estética, ao forte e desértico fechamento provocado pelo esteticismo estado-novista de 45 e ao modelo concretista-publicitário de exportabilidade vanguardista.
Dentro dessa perspectiva de conformação regional-popular, são conhecidas as incursões que efetivou no âmbito do regionalismo, bebido diretamente nas matrizes e fontes pernambucanas, através do contato com a obra de Gilberto Freyre, ou, do lado ibérico, absorvido no modelo regionalista andaluz de Federico García Lorca, em especial nos poemas do Romanceiro Gitano.
O regionalismo do qual se servia era o que buscava no homem e na natureza nordestina as peculiaridades favoráveis à solidariedade e ao tratamento artístico-literário desalienante de conteúdos e temas. E isto lhe permitiu um aguçamento de visada que o redime enquanto poeta social – e não mais só enquanto poeta puro ou purista simplesmente –, quando ele passa a vislumbrar a transformação objetiva da sociedade, e na mesma pisada, a chamar a atenção, em forma de alerta ou denúncia, para um modo de vida amesquinhado em miséria e exclusão, notadamente nos poemas de Nordesterro.
Devido talvez a seu temperamento boêmio – mas de uma boemia leve e contida, lúcida e organizada nos prazeres simples da convivência e na fruição advinda dessa comunicação artística e humana –, as suas vivências pessoais seriam sublinhadas por uma vida literária e intelectual movimentada e enriquecida de muitas solicitações e atividades. E estas vivências seriam referendadas também de algum modo nas rápidas, porém definidoras incursões que fez pelo jornalismo, no empenho levado a efeito nas discussões estéticas, e ainda nos percalços e compromissos representados pela transitoriedade de uma vida pública de cargos ou funções sem maiores ressonâncias. É de interesse lembrar ainda que, fraternas e socialmente extensivas como eram, tais vivências como que se prolongariam em admiração comovida e perplexa da parte de seus leitores e aficionados, dos amigos e pessoas com quem convivera ou que eventualmente o conheceram, mesmo tanto tempo após a sua morte prematura no Recife, a 1 de julho de 1960, em conseqüência de um acidente de automóvel.
In: Monteiro, Luiz Carlos. Musa fragmentada: a poética de Carlos Pena Filho. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009.
Carlos Pena Filho fez sua estreia na poesia em 1952, com a reunião dos primeiros poemas escritos numa publicação a que intitulou de O tempo da busca. Nascido no Recife a 17 de maio de 1929, desde muito cedo se afirmou como uma personalidade singular de poeta em franca e rápida expansão, tendo deflagrado, com este livro, parte de suas inquietações de artista recém-saído da adolescência. Esta fase inicial envolvia certas indagações estéticas e existenciais latentes, além de algumas projeções e questionamentos acerca da validação do ofício poético e da experiência concreta com o mundo sensível, notadamente quanto ao seu posicionar-se e se fazer presente diante dos acontecimentos da vida cotidiana e da arte do seu tempo.
A passagem da adolescência à fase adulta em Carlos Pena Filho, mais acidentada do que propriamente calma, se encontra impregnada de um desempenho poético fracionado entre a fatura formal de um lirismo típico do neoclássico, pela via do soneto decassilábico, e o esforço de apreensão e superação dos mecanismos e manifestações poéticas posteriores aos modernismos de 22 e 30. Ela é concomitante também com o desempenho poético funcionalista, malogrado em sua maior porcentagem, da geração de 45.
Decerto que Carlos Pena Filho não executa, no decurso de sua poética, nenhum tipo de inovação formalística flagrante ou significativa, preferindo se exprimir no mais das vezes através das chamadas formas fixas. Mas, ao elaborar e construir pacientemente o corpus de sua poesia – que pode aparecer tanto em versos desvestidos da rima mais sistemática ou da metrificação tendenciosamente mais rígida e fechada, quanto ainda, e em maior ocorrência, na forma de sonetos precisos, exatos e impecáveis –, transitando com desembaraço evidente em campos formais que exigem habilidades até certo ponto raras, se torna fácil para o leitor constatar que são poucos os versos em que não demonstra competência poética.
Essa preocupação orgânica em trabalhar formas fixas, em engordar o rimário e a métrica consagrados pela poética tradicional – e talvez já demasiadamente empregados através de séculos, escolas literárias e gerações –, faz com que ele prescinda de arcabouços formalísticos e efeitos gráficos e visuais latentes, que permeiam, na década de 50, o ânimo e a postura das vanguardas. Estas, por sua vez, se reivindicam experimentalistas, polêmicas e inventivas. Utilizam-se de efeitos e estratificações que requerem justaposições minuciosas, arrumações diferenciadas e espacializações multiformes, que privilegiam bem mais os elementos formais, cujos resultados logram ser alcançados com a serventia e a ajuda de recursos operacionais correntes, como o deslocamento espacial de fonemas, palavras e versos e a exploração das fendas possíveis no campo visual que a página oferece, desenvolvidos notadamente com o surgimento daquelas vanguardas experimentalistas brasileiras, que pouca ou nenhuma influência exerceram sobre Carlos Pena.
Além desse tratamento artesanal classicizante que imprime a seus versos, corre paralela uma estranheza que se delineia referendada por uma angústia latente e demasiado presentificada, complexa e recorrente aos níveis de um estado poético onírico que se perfaz mais na superfície que no fundo, e é mais artificialmente provocado do que vivido ou sentido. E esse estado onírico desemboca ainda numa espécie de surrealismo irrealizado e programático apenas, onde a vigília se impõe predominantemente ao sonho, inseparável da lucidez desde sempre reivindicada no seu ofício de poeta. Lucidez que, se de um ângulo já descarta no seu nascedouro o malogro de um surrealismo mal assimilado, por outro, paradoxalmente, não se interpõe e nem exerce controle ou coerção castradora sobre um projeto poético de antes embasado no discurso lírico, que com frequência realiza-se em dicções que contemplam ora a vertente social e urbana, ora a vertente intuitiva, amorosa e subjetivista.
Em outra instância, ele vai discorrendo sobre o que se demonstrava como a sua perplexidade e o seu desencanto diante da sua própria poesia, com o seu dilema interno de poeta requisitado pelo formalismo intrínseco e estilisticamente devedor do simbolismo francês. Mas, além da influência francesa, o poeta continua a se filiar, embora com ressalvas, ao padrão operativo subjacente ao parnasianismo tardio dos poetas de 45. Na condição de “artesão caprichoso”, como ele se autodenominava, em certos momentos se aproximava bastante a esses poetas, que costumavam encarar e assumir “o poema como um artefato”, na expressão de um deles, Péricles Eugênio da Silva Ramos.
De 1955 em diante, nos primeiros momentos da instalação de um surto desenvolvimentista no país, de vertente kubtschekiana, e que tinha como linha política divisória a recente e nefasta presença getulista, de amplos reflexos ditatoriais e de caráter nacional-populista, Carlos Pena Filho voltava a sua atenção e o seu interesse mais diretos para uma espécie de cultura emergente, que se demonstrava originária das raízes e camadas populares, de suas forças mais simples e segregadas no cenário característico da região nordestina.
A cultura popular era este tipo de cultura latente, que viria a evoluir, na década de 60 em Pernambuco, para um movimento de considerável alcance e importância política inconteste: o MCP – Movimento de Cultura Popular, que contribuiria radicalmente para a viabilização e a consolidação das lutas pela resistência democrática no Brasil. O MCP englobava as lutas camponesas no campo e a luta clandestina urbana e ostensiva das várias correntes de esquerda então atuantes, a conscientização de pessoas através da educação básica e transformadora do método Paulo Freire, o cinema novo, a literatura de cordel e o desempenho poético-musical dos cantadores e violeiros repentistas, o teatro popular revolucionário, a música popular de protesto dos festivais, da bossa nova e do tropicalismo, a poesia, o conto, a novela e o romance engajados, entre outras manifestações políticas e culturais.
Carlos Pena Filho adota, já nos anos 50, principalmente com a escrita arrojada do bloco de poemas intitulado Nordesterro e do seu poema inteiramente dedicado ao Recife, o Guia prático da cidade do Recife, o desdobramento poético dos eventos localistas e populares como orientação cultural e estética. Antecipa e amplia, dessa maneira, sob a nítida influência de João Cabral de Melo Neto, formas poéticas que irão ser altamente desenvolvidas e intensificadas nos anos posteriores, quando ascenderá a um plano empenhado e questionador da cultura e da política, essa modalidade cultural específica. Deste modo, a cultura popular se insurgirá atendendo às necessidades de uma literatura interna, como resposta provável, nas dimensões dialética e estética, ao forte e desértico fechamento provocado pelo esteticismo estado-novista de 45 e ao modelo concretista-publicitário de exportabilidade vanguardista.
Dentro dessa perspectiva de conformação regional-popular, são conhecidas as incursões que efetivou no âmbito do regionalismo, bebido diretamente nas matrizes e fontes pernambucanas, através do contato com a obra de Gilberto Freyre, ou, do lado ibérico, absorvido no modelo regionalista andaluz de Federico García Lorca, em especial nos poemas do Romanceiro Gitano.
O regionalismo do qual se servia era o que buscava no homem e na natureza nordestina as peculiaridades favoráveis à solidariedade e ao tratamento artístico-literário desalienante de conteúdos e temas. E isto lhe permitiu um aguçamento de visada que o redime enquanto poeta social – e não mais só enquanto poeta puro ou purista simplesmente –, quando ele passa a vislumbrar a transformação objetiva da sociedade, e na mesma pisada, a chamar a atenção, em forma de alerta ou denúncia, para um modo de vida amesquinhado em miséria e exclusão, notadamente nos poemas de Nordesterro.
Devido talvez a seu temperamento boêmio – mas de uma boemia leve e contida, lúcida e organizada nos prazeres simples da convivência e na fruição advinda dessa comunicação artística e humana –, as suas vivências pessoais seriam sublinhadas por uma vida literária e intelectual movimentada e enriquecida de muitas solicitações e atividades. E estas vivências seriam referendadas também de algum modo nas rápidas, porém definidoras incursões que fez pelo jornalismo, no empenho levado a efeito nas discussões estéticas, e ainda nos percalços e compromissos representados pela transitoriedade de uma vida pública de cargos ou funções sem maiores ressonâncias. É de interesse lembrar ainda que, fraternas e socialmente extensivas como eram, tais vivências como que se prolongariam em admiração comovida e perplexa da parte de seus leitores e aficionados, dos amigos e pessoas com quem convivera ou que eventualmente o conheceram, mesmo tanto tempo após a sua morte prematura no Recife, a 1 de julho de 1960, em conseqüência de um acidente de automóvel.
In: Monteiro, Luiz Carlos. Musa fragmentada: a poética de Carlos Pena Filho. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Entrevista ao Site Interpoética
ENTREVISTA AO INTERPOÉTICA
Reproduzo, na íntegra, entrevista para o site Interpoética, sob a coordenação de Cida Pedrosa e Sennor Ramos, concedida ao crítico literário Cristiano Aguiar, em dezembro/2009:
Luiz Carlos Monteiro
inquietações existenciais que superam a mera “cor local”
Por Cristiano Aguiar
Fazer esta entrevista, que o leitor do Interpoética lerá abaixo, significou conhecer Luiz Carlos Monteiro duas vezes. Embora eu já acompanhasse seus textos críticos na revista Continente, dentre outras publicações para as quais escreve ou escreveu, nunca antes tinha encontrado este homem de fala suave, natural da cidade de Sertânia, no sertão de Pernambuco. Quieto, Luiz pouco diz de si, deixando o espaço aberto à sua palavra criadora.
Talvez seja por causa disto que, só ao entrevistá-lo, fiz minha segunda descoberta: o crítico literário também era um bom poeta, revelando que crítica literária e poesia são faces diferentes do mesmo “comichão” da literatura, da mesma vontade de desafiar o mundo com versos e perguntas.
Luiz Carlos Monteiro conversou com o Interpoética sobre tradição e valores literários, crítica universitária versus crítica acadêmica, a poesia de Carlos Pena Filho, bem como sobre sua própria poesia, profundamente arraigada nas cartografias da cidade – que pode ser Recife, Olinda ou qualquer cidade do mundo, pois ela nos aponta em direção a inquietações existenciais que superam a mera “cor local”.
Cristiano Aguiar: Vamos começar pela sua atividade como crítico literário. Você tem experiência nas duas linhas de frente: a crítica nos jornais e revistas e a crítica realizada a partir de pesquisas universitárias. Muitos afirmam que estas duas instâncias são inconciliáveis. Como é seu trânsito entre elas?
LCM: São duas instâncias que guardam peculiaridades e especificidades próprias, embora, num ou noutro caso, possam entrecruzar-se. Os espaços se tornam cada vez mais apertados nos jornais e revistas comerciais, por isto muitos críticos e ensaístas estão preferindo trabalhar textos mais longos, que somente caberiam em livro. É aí que entra a crítica universitária, que resulta da pesquisa paciente e persistente e destina-se, inicialmente, ao público da academia, i. e., a professores, estudantes e ouvintes que participam dos debates ali travados. Contudo, ensaios externos ao que se produz nas universidades devem trazer o possível ajuste metodológico, mesmo que tratem de temáticas subjetivas, abstratas, confessionais, metafísicas. Há professores que conseguem transitar bem nas duas modalidades: Carlos Newton Júnior, César Leal, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Hildeberto Barbosa Filho, entre muitos outros. No meu caso, venho tentando atender aos desafios que me propõem, sejam acadêmicos ou jornalísticos, mas não sei como medir ainda a eficácia ou não deste desempenho. Isto se vincula bastante à relação com editores, a convites e propostas editoriais que traduzam afinação entre as partes.
Na sua crítica, é importante dizer se uma obra é "boa" ou "ruim"? Quais são os seus parâmetros enquanto crítico?
Esta dualidade, típica e originária do impressionismo para a análise de obras, não deixa margem para o intermediário, onde se arrancha o mediano. Creio que a maioria das obras hoje se sustenta nesta categoria intermediária, de vez que há muito desapareceu a figura do gênio, e daí a ideia de genialidade. Avalio cada livro pensando na surpresa e no espanto que pode me causar. Feito uma espécie de impacto vital que me instigue e incite a fazer coisas, que me leve a uma reconciliação com o humano através de uma obra singular e a deserdar, mesmo que por tempo breve, a normalidade cotidiana. Sobre aqueles trabalhos situados fora de exigências estéticas mínimas e aceitáveis (rigor formal, predominância do poético ou do ficcional sobre uma suposta ou visível “mensagem”, equilíbrio narrativo sem excessos descritivísticos, presença da inventividade em poesia), prefiro não escrever.
Sua dissertação de mestrado fala da obra de Carlos Pena Filho. Como você o situa na literatura brasileira?
A dissertação tenta responder, de modo conciso, a esta questão. Carlos Pena Filho é herdeiro de 45, embora repudiasse essa geração através de entrevistas ou textos. Pode-se situá-lo na temporalidade dos anos de 1950, que é quando começa a publicar com mais intensidade. Foi um sonetista exímio, e manuseava outras formas como poucos do seu tempo. Seu nome é bastante conhecido no país, presente em antologias e histórias literárias, mas sua leitura é feita de passagem, até pela falta de edições significantes de sua obra.
Eu gostaria de fazer a você uma provocação: acho que Carlos Pena foi um poeta em formação, cujo amadurecimento foi interrompido pela sua morte. Você concorda ou discorda?
Penso que Carlos Pena Filho teve um processo rápido de amadurecimento. Aos 18 anos já assinava sonetos impecáveis. Reconhecia-se como um “artesão caprichoso”, o que invalida o aleatório em sua obra. Trazia aquela transpiração que a secura de quem não tem o que expressar rejeita. No seu breve tempo de vida construiu poemas de beleza e sentido únicos e inesquiváveis, que outros passam a vida intentando e não chegam jamais a concretizar.
Sei que é uma pergunta que vai demandar um fôlego maior, mas gostaria de perguntar para você qual a sua leitura das gerações de poetas que surgiram nas últimas décadas, aqui em Pernambuco. Quero destacar três momentos: a famosa e inesgotável Geração 65; o movimento dos poetas independentes, nos anos 70-80; a geração de jovens poetas surgidos a partir dos anos 90 e ao redor da antologia Invenção Recife (publicada nos 00), da qual fazem parte Delmo Montenegro, Fábio Andrade, Jacineide Travassos, Pietro Wagner, Micheliny Verunsk, entre outros.
Deste grupo de poetas surgidos a partir dos anos 90, conheço melhor a poesia de Micheliny Verunsk, pois fiz uma leitura mais apurada de trabalhos seus, e a considero uma poetisa que ainda pode voar bem alto. Li pouca coisa dos outros, mas aprecio a poesia espácio-visual e o experimentalismo que não força a mão. Delmo Montenegro, que escreveu estes versos, não pode esquivar-se à condição de poeta: “o mantra/ verde do meu ego/ e vermelho das minhas verdades/ ainda ninguém achou/ que faremos nós/ pistas deixadas/ em obras inacabadas/ de nenhum autor”. Neste trecho de poema há posicionamentos estéticos e existenciais de apelo corajoso e incidente sobre o fazer poético, sobre a repetição e a imitação, sobre o impasse do poeta ante tudo o que já se escreveu antes dele. No movimento independente, do qual fiz parte durante algum tempo, assumi o risco de certas vivências e ações perigosas e enviesadas, descambando às vezes para a gratuidade e a violência em nome de uma marginalidade radical, utópica e jamais alcançada. Ficaram nomes que atuam ainda hoje, com proposta subdividida e algo diferenciada, pois tanto publicam por editoras quanto em edições alternativas. Preservam, no entanto, a prática dos recitais: Cida Pedrosa, Valmir Jordão, Lara e Jorge Lopes, são exemplos disto. A geração 65 já tem alguns nomes reconhecidos entre os que se foram: Alberto da Cunha Melo e Arnaldo Tobias na poesia e Maximiano Campos na prosa. Entre os vivos, é impossível ficar indiferente à poesia de Jaci Bezerra, Almir Castro Barros, Lucila Nogueira, José Carlos Targino e Tereza Tenório, poetas de propostas bastante díspares, mas de uma forte persistência, o que significa que jamais torceram o nariz para o trabalho poético. Com relação à prosa, Raimundo Carrero e Fernando Monteiro são escritores inquietos, de bom alcance de público, e que ainda têm muito a contribuir para a literatura. Pernambuco ressente-se de mulheres ficcionistas, embora isto não signifique que não existam, apenas precisam de uma interferência e visibilidade maior no campo literário.
Nos últimos anos, uma série de feiras e festas literárias, como a Flip, A Letra e a Voz - Festival Recifense de Literatura, e a Fliporto, vêm dinamizando a vida literária brasileira. Qual a sua leitura deste fenômeno?
Debates, encontros, congressos sempre existiram. Hoje, no entanto, conta-se com um aparato forte da tecnologia da informação e com o apoio mais intenso dos setores público e privado. Até a década de 1980 a grande batalha era a publicação de um livro. A facilidade agora é imensa, inclusive pela concorrência no mercado gráfico-editorial, que tende a baratear os custos. E mais ainda, pelas formas de divulgação e publicação permitidas pela Internet. Em feiras e festas literárias ouve-se a voz de escritores mais de perto, contatos importantes podem ser veiculados, mitos são postos por terra, anônimos podem alcançar alguma visibilidade. A reciclagem de autores é coisa que não pode deixar de ser feita, pois o convite constante aos mesmos nomes cansa, entedia e desvaloriza os eventos.
Da mesma forma, nos últimos três anos ou quatro anos, em Pernambuco, uma série de jovens escritores procura se articular em torno de antologias, revistas e eventos literários: foi o caso, por exemplo, da Crispim, da Vacatussa e do Nós Pós e, agora, do coletivo Urros Masculinos, que vai organizar a Freeporto. Você consegue ver consistência nestas iniciativas? Os jovens escritores estão revelando conteúdo, além de articulação?
A geração 70 nasceu em bases contestatórias e hoje se encontra institucionalizada. A poesia “marginal” de Chacal é distribuída em todo o Brasil através de programas editoriais oficiais que envolvem as escolas públicas. Quando participei do movimento independente assumi posições ideológicas e editoriais radicais, mas tentando manter o diálogo com outros grupos – a Geração 65, os Poetas da Rua do Imperador, a vanguarda local neotropicalista. A articulação dos “novos” é sempre bem-vinda, pois elastece e dinamiza a ambiência literária. A consistência das iniciativas vai depender do “poder de fogo” de quem está à frente de tais movimentos. Chega uma época em que muita gente volta-se para as circunstâncias da vida pessoal, para o estudo mais sistemático, para o trabalho intelectual cotidiano e orgânico. Grupos fragmentam-se, outros se formam, o “novo e iconoclasta” de hoje passa a ser o “oficial e conformista” de amanhã. A questão do conteúdo do que escrevem os que estão chegando agora só pode ser avaliada com a passagem do tempo. Muito do que um autor escreve ou recita no calor do instante pode ser renegado por ele mesmo num futuro próximo. Quando um aspirante a poeta ou ficcionista descobre, depois do entusiasmo inicial, que sua poesia ou sua prosa não se ombreia a um Drummond, a um João Cabral, a um Murilo Mendes, a um Machado de Assis, a um Guimarães Rosa, a um Graciliano Ramos, para citar apenas alguns brasileiros, cai em si e perde toda a arrogância.
Você começa seu livro com os seguintes versos: “Não te evoco,/e também/o louvar não te quero (...) não te rejeito ou refuto, não te renego ou expulso”. Uma característica importante da sua poesia é a da crônica da cidade. Existe um Recife e uma Olinda “verdadeiros”? O poeta é aquele que abraça o real com a maior de todas as generosidades?
Os versos deste livro, Poemas, publicado em 1999, foram pensados e escritos a partir da segunda metade da década de 1970. O Recife era uma cidade onde a boemia corria solta, da Boa Vista ao Bairro do Recife, dos bares de Santo Amaro à zona da Rio Branco. O Beco da Fome ficava próximo ao Diretório Central dos Estudantes da UFPE, e depois das reuniões políticas aproveitava-se para beber. O Beco era frequentado por estudantes, intelectuais, policiais disfarçados, meninas liberadas e dispostas a tudo na noite. Foi nesse ambiente de muita agitação e embate que conheci os poetas independentes, os escritores da geração 65 e outras pessoas de quem fiquei amigo. Vez por outra, arranjava também alguns inimigos. Mas o beautiful people estava mesmo em Olinda, no Cantinho da Sé, no Querubim Bar e no Bar Atlântico, este último conhecido popularmente como Maconhão. Um Recife e uma Olinda autênticos eram os desse clima pós-adolescente, depois de 1976, quando entrei na universidade. Não sem patrulhamento ideológico conviviam a política, que era o real, com a poesia, identificada com o sonho, mas um sonho ainda de transformação da sociedade. E o poeta apostava qualquer coisa nesta luta, ao tempo, radical, seguindo em frente apesar das críticas conservadoras da família, dos amigos de infância e, num viés de teor mais ideológico de esquerda, dos próprios companheiros de partido ou tendência política, que repudiavam o sonho vinculado ao ato da escrita literária. O poema citado aparece na contramão dos poemas “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira e “Provocação do Recife", de Xico Sá.
Ainda falando do poema enquanto crônica da cidade e dos modos de viver na cidade: como evitar que o poema se torne apenas uma variação do fotojornalismo?
O poema urbano tem uma sedução implacável, pela capacidade de visualização dos objetos que permite. Fiz um esforço imenso para escrever alguns poemas nesta direção, pois minha inclinação sempre foi lírica, neo-romântica, confessional. E isto, apesar de ter feito quase todo o curso de Engenharia de Minas, e de ter formado, de quebra, com outros estudantes de engenharia, um grupo de discussão de Lógica Formal e Dialética. Ali, sustentados na intimidade do Cálculo Integral, da Geometria Analítica, da Álgebra Linear, da Física e da Química, ninguém contemporizava nem abria mão de suas opiniões e preceitos, embora, depois dos embates, fosse mantida a cordialidade possível. É preciso que o urbano traga a elaboração de um sentido estético, de um encanto que torne, até certo ponto, a leitura do poema dionisíaca, hedonista, prazerosa, anárquica. E não apenas a simples enumeração objetal. Talvez tenha sido por isso que Mário de Andrade chamou o poeta modernista Luis Aranha de “poeta ginasiano”. Mas, uma solução radical para que alguém se afaste do que você chama de fotojornalismo seria uma volta ao mundo da metafísica e do hermetismo, ao poema filosófico e ao lirismo confessional e intimista.
Nos poemas “Poema parco e tardio a Carlos Pena Filho” e “Poemeto muito antigo à maneira de Manuel Bandeira”, temos um duplo movimento: à crônica da cidade se junta a crônica da leitura. Em ambos, há morte espiando nos avessos... “resto de sombra” ou “negra lama enfim...”, do segundo poema, são contrapontos ao “Tua voz semovente em teu peito/com impulsão a cidade avançando”, versos do primeiro poema, que se referem a Pena Filho. Sua poesia também cumpre uma função semelhante à sua crítica, de fecundar de vida a tradição, às vezes um tanto esquecida, como é o caso da poesia de Carlos Pena? Como suas leituras alimentam o Luiz Carlos Monteiro Poeta?
Tenho uma gama de poemas metacríticos, dedicados a poetas de minha preferência: Murilo Mendes, Rimbaud, Baudelaire, Poe, Artaud, Torquato Neto, Fernando Pessoa, entre outros. Carlos Pena Filho é especialíssimo, poeta de quem gostaria de ter sido amigo. Foi poeta em tempo integral, boêmio, charmosamente triste, culto, simpático,voluntarioso e irônico. Quanto a minhas leituras, leio de tudo, inclusive muita ficção. Por exigências do trabalho crítico-analítico, especifico hoje mais essas leituras, privilegiando a teoria e a crítica literária, não dispensando, no entanto, o suporte dos textos históricos e filosóficos. Um texto crítico, daqueles de vertente mais criativa, pode incitar o poeta a escrever, num determinado momento, seu poema. Mas quem estimula e aprimora mesmo a escrita da poesia é a leitura da própria poesia, a aparição e consequente seleção daqueles poetas que, por vezes temporariamente esquecidos, podem vir à tona a qualquer instante com bastante força e vigor.
Há muita plasticidade em seus poemas, como é o caso de “O canavial flutuante ou visada do Rio Formoso” ou “Grafito em Olinda”. As artes visuais, a pintura, principalmente e, mais especificamente, a pintura de matriz moderna, são referências quando você compõe versos?
A arquitetura, a pintura, a visão mágica e áspera da Natureza do litoral ou da caatinga, as belas e funcionais construções urbanas, nos colocam no centro de um mundo plástico e visual. Convivi com alguns pintores e pintoras, e sempre acreditei que a pintura, assim como os arranjos musicais (e aqui discordo de João Cabral), mantém uma grande aproximação com a poesia. Mas, a pintura não é a principal referência na minha poesia, e sim uma delas. Os sentimentos mais recônditos ou explícitos que carrego, a tentativa de compreensão do outro, o imaginário de um mundo futuro e ainda possível porque não aconteceu em bases justas e solidárias, são referenciais importantes na poesia que faço.
Poemas como “Dois poemas sobre um motivo de Vielimir Khlébnikov” e “Poema autografado num envelope contendo uma fotografia amarelada” surgem de um eu lírico que fala a partir de uma posição solitária, na qual os sentidos da vida parecem estar em dissolução; mas o Outro, aquele que caminha na cidade, também é solitário: seus personagens são os bêbados, os cegos pedintes, os arlequins, os poetas soltos nas ruas – aqueles que não se “enquadram”. Gostaria que você comentasse isto.
Os dois poemas citados refletem a experiência cotidiana da solidão do poeta em seu quarto, a escrever e a ler desbragadamente, a sublimar amores impossíveis com o esteio e o auxílio luxuoso da literatura e com a inclinação clandestina, à época, do pensamento político. A vertente visionária dos personagens marginais e marginalizados é de origem baudeleriana, poeta que li demais e intentei absorver alguns temas e personagens malditos seus. O desajuste social destes personagens reflete algo do desajuste do próprio poeta, que teima, ou teimava, em não alinhar-se a vivências e situações flagrantes em que estivessem envolvidos os numerosos braços de polvo do status quo. Também num sentido de denúncia, sem a esperança ilusória de um grande alcance, ao modo de Neruda, Whitman ou Castro Alves, mas contribuindo, dentro de limitações próprias e às vezes reconhecíveis, para a consecução e dinamização do processo social e literário.
Reproduzo, na íntegra, entrevista para o site Interpoética, sob a coordenação de Cida Pedrosa e Sennor Ramos, concedida ao crítico literário Cristiano Aguiar, em dezembro/2009:
Luiz Carlos Monteiro
inquietações existenciais que superam a mera “cor local”
Por Cristiano Aguiar
Fazer esta entrevista, que o leitor do Interpoética lerá abaixo, significou conhecer Luiz Carlos Monteiro duas vezes. Embora eu já acompanhasse seus textos críticos na revista Continente, dentre outras publicações para as quais escreve ou escreveu, nunca antes tinha encontrado este homem de fala suave, natural da cidade de Sertânia, no sertão de Pernambuco. Quieto, Luiz pouco diz de si, deixando o espaço aberto à sua palavra criadora.
Talvez seja por causa disto que, só ao entrevistá-lo, fiz minha segunda descoberta: o crítico literário também era um bom poeta, revelando que crítica literária e poesia são faces diferentes do mesmo “comichão” da literatura, da mesma vontade de desafiar o mundo com versos e perguntas.
Luiz Carlos Monteiro conversou com o Interpoética sobre tradição e valores literários, crítica universitária versus crítica acadêmica, a poesia de Carlos Pena Filho, bem como sobre sua própria poesia, profundamente arraigada nas cartografias da cidade – que pode ser Recife, Olinda ou qualquer cidade do mundo, pois ela nos aponta em direção a inquietações existenciais que superam a mera “cor local”.
Cristiano Aguiar: Vamos começar pela sua atividade como crítico literário. Você tem experiência nas duas linhas de frente: a crítica nos jornais e revistas e a crítica realizada a partir de pesquisas universitárias. Muitos afirmam que estas duas instâncias são inconciliáveis. Como é seu trânsito entre elas?
LCM: São duas instâncias que guardam peculiaridades e especificidades próprias, embora, num ou noutro caso, possam entrecruzar-se. Os espaços se tornam cada vez mais apertados nos jornais e revistas comerciais, por isto muitos críticos e ensaístas estão preferindo trabalhar textos mais longos, que somente caberiam em livro. É aí que entra a crítica universitária, que resulta da pesquisa paciente e persistente e destina-se, inicialmente, ao público da academia, i. e., a professores, estudantes e ouvintes que participam dos debates ali travados. Contudo, ensaios externos ao que se produz nas universidades devem trazer o possível ajuste metodológico, mesmo que tratem de temáticas subjetivas, abstratas, confessionais, metafísicas. Há professores que conseguem transitar bem nas duas modalidades: Carlos Newton Júnior, César Leal, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Hildeberto Barbosa Filho, entre muitos outros. No meu caso, venho tentando atender aos desafios que me propõem, sejam acadêmicos ou jornalísticos, mas não sei como medir ainda a eficácia ou não deste desempenho. Isto se vincula bastante à relação com editores, a convites e propostas editoriais que traduzam afinação entre as partes.
Na sua crítica, é importante dizer se uma obra é "boa" ou "ruim"? Quais são os seus parâmetros enquanto crítico?
Esta dualidade, típica e originária do impressionismo para a análise de obras, não deixa margem para o intermediário, onde se arrancha o mediano. Creio que a maioria das obras hoje se sustenta nesta categoria intermediária, de vez que há muito desapareceu a figura do gênio, e daí a ideia de genialidade. Avalio cada livro pensando na surpresa e no espanto que pode me causar. Feito uma espécie de impacto vital que me instigue e incite a fazer coisas, que me leve a uma reconciliação com o humano através de uma obra singular e a deserdar, mesmo que por tempo breve, a normalidade cotidiana. Sobre aqueles trabalhos situados fora de exigências estéticas mínimas e aceitáveis (rigor formal, predominância do poético ou do ficcional sobre uma suposta ou visível “mensagem”, equilíbrio narrativo sem excessos descritivísticos, presença da inventividade em poesia), prefiro não escrever.
Sua dissertação de mestrado fala da obra de Carlos Pena Filho. Como você o situa na literatura brasileira?
A dissertação tenta responder, de modo conciso, a esta questão. Carlos Pena Filho é herdeiro de 45, embora repudiasse essa geração através de entrevistas ou textos. Pode-se situá-lo na temporalidade dos anos de 1950, que é quando começa a publicar com mais intensidade. Foi um sonetista exímio, e manuseava outras formas como poucos do seu tempo. Seu nome é bastante conhecido no país, presente em antologias e histórias literárias, mas sua leitura é feita de passagem, até pela falta de edições significantes de sua obra.
Eu gostaria de fazer a você uma provocação: acho que Carlos Pena foi um poeta em formação, cujo amadurecimento foi interrompido pela sua morte. Você concorda ou discorda?
Penso que Carlos Pena Filho teve um processo rápido de amadurecimento. Aos 18 anos já assinava sonetos impecáveis. Reconhecia-se como um “artesão caprichoso”, o que invalida o aleatório em sua obra. Trazia aquela transpiração que a secura de quem não tem o que expressar rejeita. No seu breve tempo de vida construiu poemas de beleza e sentido únicos e inesquiváveis, que outros passam a vida intentando e não chegam jamais a concretizar.
Sei que é uma pergunta que vai demandar um fôlego maior, mas gostaria de perguntar para você qual a sua leitura das gerações de poetas que surgiram nas últimas décadas, aqui em Pernambuco. Quero destacar três momentos: a famosa e inesgotável Geração 65; o movimento dos poetas independentes, nos anos 70-80; a geração de jovens poetas surgidos a partir dos anos 90 e ao redor da antologia Invenção Recife (publicada nos 00), da qual fazem parte Delmo Montenegro, Fábio Andrade, Jacineide Travassos, Pietro Wagner, Micheliny Verunsk, entre outros.
Deste grupo de poetas surgidos a partir dos anos 90, conheço melhor a poesia de Micheliny Verunsk, pois fiz uma leitura mais apurada de trabalhos seus, e a considero uma poetisa que ainda pode voar bem alto. Li pouca coisa dos outros, mas aprecio a poesia espácio-visual e o experimentalismo que não força a mão. Delmo Montenegro, que escreveu estes versos, não pode esquivar-se à condição de poeta: “o mantra/ verde do meu ego/ e vermelho das minhas verdades/ ainda ninguém achou/ que faremos nós/ pistas deixadas/ em obras inacabadas/ de nenhum autor”. Neste trecho de poema há posicionamentos estéticos e existenciais de apelo corajoso e incidente sobre o fazer poético, sobre a repetição e a imitação, sobre o impasse do poeta ante tudo o que já se escreveu antes dele. No movimento independente, do qual fiz parte durante algum tempo, assumi o risco de certas vivências e ações perigosas e enviesadas, descambando às vezes para a gratuidade e a violência em nome de uma marginalidade radical, utópica e jamais alcançada. Ficaram nomes que atuam ainda hoje, com proposta subdividida e algo diferenciada, pois tanto publicam por editoras quanto em edições alternativas. Preservam, no entanto, a prática dos recitais: Cida Pedrosa, Valmir Jordão, Lara e Jorge Lopes, são exemplos disto. A geração 65 já tem alguns nomes reconhecidos entre os que se foram: Alberto da Cunha Melo e Arnaldo Tobias na poesia e Maximiano Campos na prosa. Entre os vivos, é impossível ficar indiferente à poesia de Jaci Bezerra, Almir Castro Barros, Lucila Nogueira, José Carlos Targino e Tereza Tenório, poetas de propostas bastante díspares, mas de uma forte persistência, o que significa que jamais torceram o nariz para o trabalho poético. Com relação à prosa, Raimundo Carrero e Fernando Monteiro são escritores inquietos, de bom alcance de público, e que ainda têm muito a contribuir para a literatura. Pernambuco ressente-se de mulheres ficcionistas, embora isto não signifique que não existam, apenas precisam de uma interferência e visibilidade maior no campo literário.
Nos últimos anos, uma série de feiras e festas literárias, como a Flip, A Letra e a Voz - Festival Recifense de Literatura, e a Fliporto, vêm dinamizando a vida literária brasileira. Qual a sua leitura deste fenômeno?
Debates, encontros, congressos sempre existiram. Hoje, no entanto, conta-se com um aparato forte da tecnologia da informação e com o apoio mais intenso dos setores público e privado. Até a década de 1980 a grande batalha era a publicação de um livro. A facilidade agora é imensa, inclusive pela concorrência no mercado gráfico-editorial, que tende a baratear os custos. E mais ainda, pelas formas de divulgação e publicação permitidas pela Internet. Em feiras e festas literárias ouve-se a voz de escritores mais de perto, contatos importantes podem ser veiculados, mitos são postos por terra, anônimos podem alcançar alguma visibilidade. A reciclagem de autores é coisa que não pode deixar de ser feita, pois o convite constante aos mesmos nomes cansa, entedia e desvaloriza os eventos.
Da mesma forma, nos últimos três anos ou quatro anos, em Pernambuco, uma série de jovens escritores procura se articular em torno de antologias, revistas e eventos literários: foi o caso, por exemplo, da Crispim, da Vacatussa e do Nós Pós e, agora, do coletivo Urros Masculinos, que vai organizar a Freeporto. Você consegue ver consistência nestas iniciativas? Os jovens escritores estão revelando conteúdo, além de articulação?
A geração 70 nasceu em bases contestatórias e hoje se encontra institucionalizada. A poesia “marginal” de Chacal é distribuída em todo o Brasil através de programas editoriais oficiais que envolvem as escolas públicas. Quando participei do movimento independente assumi posições ideológicas e editoriais radicais, mas tentando manter o diálogo com outros grupos – a Geração 65, os Poetas da Rua do Imperador, a vanguarda local neotropicalista. A articulação dos “novos” é sempre bem-vinda, pois elastece e dinamiza a ambiência literária. A consistência das iniciativas vai depender do “poder de fogo” de quem está à frente de tais movimentos. Chega uma época em que muita gente volta-se para as circunstâncias da vida pessoal, para o estudo mais sistemático, para o trabalho intelectual cotidiano e orgânico. Grupos fragmentam-se, outros se formam, o “novo e iconoclasta” de hoje passa a ser o “oficial e conformista” de amanhã. A questão do conteúdo do que escrevem os que estão chegando agora só pode ser avaliada com a passagem do tempo. Muito do que um autor escreve ou recita no calor do instante pode ser renegado por ele mesmo num futuro próximo. Quando um aspirante a poeta ou ficcionista descobre, depois do entusiasmo inicial, que sua poesia ou sua prosa não se ombreia a um Drummond, a um João Cabral, a um Murilo Mendes, a um Machado de Assis, a um Guimarães Rosa, a um Graciliano Ramos, para citar apenas alguns brasileiros, cai em si e perde toda a arrogância.
Você começa seu livro com os seguintes versos: “Não te evoco,/e também/o louvar não te quero (...) não te rejeito ou refuto, não te renego ou expulso”. Uma característica importante da sua poesia é a da crônica da cidade. Existe um Recife e uma Olinda “verdadeiros”? O poeta é aquele que abraça o real com a maior de todas as generosidades?
Os versos deste livro, Poemas, publicado em 1999, foram pensados e escritos a partir da segunda metade da década de 1970. O Recife era uma cidade onde a boemia corria solta, da Boa Vista ao Bairro do Recife, dos bares de Santo Amaro à zona da Rio Branco. O Beco da Fome ficava próximo ao Diretório Central dos Estudantes da UFPE, e depois das reuniões políticas aproveitava-se para beber. O Beco era frequentado por estudantes, intelectuais, policiais disfarçados, meninas liberadas e dispostas a tudo na noite. Foi nesse ambiente de muita agitação e embate que conheci os poetas independentes, os escritores da geração 65 e outras pessoas de quem fiquei amigo. Vez por outra, arranjava também alguns inimigos. Mas o beautiful people estava mesmo em Olinda, no Cantinho da Sé, no Querubim Bar e no Bar Atlântico, este último conhecido popularmente como Maconhão. Um Recife e uma Olinda autênticos eram os desse clima pós-adolescente, depois de 1976, quando entrei na universidade. Não sem patrulhamento ideológico conviviam a política, que era o real, com a poesia, identificada com o sonho, mas um sonho ainda de transformação da sociedade. E o poeta apostava qualquer coisa nesta luta, ao tempo, radical, seguindo em frente apesar das críticas conservadoras da família, dos amigos de infância e, num viés de teor mais ideológico de esquerda, dos próprios companheiros de partido ou tendência política, que repudiavam o sonho vinculado ao ato da escrita literária. O poema citado aparece na contramão dos poemas “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira e “Provocação do Recife", de Xico Sá.
Ainda falando do poema enquanto crônica da cidade e dos modos de viver na cidade: como evitar que o poema se torne apenas uma variação do fotojornalismo?
O poema urbano tem uma sedução implacável, pela capacidade de visualização dos objetos que permite. Fiz um esforço imenso para escrever alguns poemas nesta direção, pois minha inclinação sempre foi lírica, neo-romântica, confessional. E isto, apesar de ter feito quase todo o curso de Engenharia de Minas, e de ter formado, de quebra, com outros estudantes de engenharia, um grupo de discussão de Lógica Formal e Dialética. Ali, sustentados na intimidade do Cálculo Integral, da Geometria Analítica, da Álgebra Linear, da Física e da Química, ninguém contemporizava nem abria mão de suas opiniões e preceitos, embora, depois dos embates, fosse mantida a cordialidade possível. É preciso que o urbano traga a elaboração de um sentido estético, de um encanto que torne, até certo ponto, a leitura do poema dionisíaca, hedonista, prazerosa, anárquica. E não apenas a simples enumeração objetal. Talvez tenha sido por isso que Mário de Andrade chamou o poeta modernista Luis Aranha de “poeta ginasiano”. Mas, uma solução radical para que alguém se afaste do que você chama de fotojornalismo seria uma volta ao mundo da metafísica e do hermetismo, ao poema filosófico e ao lirismo confessional e intimista.
Nos poemas “Poema parco e tardio a Carlos Pena Filho” e “Poemeto muito antigo à maneira de Manuel Bandeira”, temos um duplo movimento: à crônica da cidade se junta a crônica da leitura. Em ambos, há morte espiando nos avessos... “resto de sombra” ou “negra lama enfim...”, do segundo poema, são contrapontos ao “Tua voz semovente em teu peito/com impulsão a cidade avançando”, versos do primeiro poema, que se referem a Pena Filho. Sua poesia também cumpre uma função semelhante à sua crítica, de fecundar de vida a tradição, às vezes um tanto esquecida, como é o caso da poesia de Carlos Pena? Como suas leituras alimentam o Luiz Carlos Monteiro Poeta?
Tenho uma gama de poemas metacríticos, dedicados a poetas de minha preferência: Murilo Mendes, Rimbaud, Baudelaire, Poe, Artaud, Torquato Neto, Fernando Pessoa, entre outros. Carlos Pena Filho é especialíssimo, poeta de quem gostaria de ter sido amigo. Foi poeta em tempo integral, boêmio, charmosamente triste, culto, simpático,voluntarioso e irônico. Quanto a minhas leituras, leio de tudo, inclusive muita ficção. Por exigências do trabalho crítico-analítico, especifico hoje mais essas leituras, privilegiando a teoria e a crítica literária, não dispensando, no entanto, o suporte dos textos históricos e filosóficos. Um texto crítico, daqueles de vertente mais criativa, pode incitar o poeta a escrever, num determinado momento, seu poema. Mas quem estimula e aprimora mesmo a escrita da poesia é a leitura da própria poesia, a aparição e consequente seleção daqueles poetas que, por vezes temporariamente esquecidos, podem vir à tona a qualquer instante com bastante força e vigor.
Há muita plasticidade em seus poemas, como é o caso de “O canavial flutuante ou visada do Rio Formoso” ou “Grafito em Olinda”. As artes visuais, a pintura, principalmente e, mais especificamente, a pintura de matriz moderna, são referências quando você compõe versos?
A arquitetura, a pintura, a visão mágica e áspera da Natureza do litoral ou da caatinga, as belas e funcionais construções urbanas, nos colocam no centro de um mundo plástico e visual. Convivi com alguns pintores e pintoras, e sempre acreditei que a pintura, assim como os arranjos musicais (e aqui discordo de João Cabral), mantém uma grande aproximação com a poesia. Mas, a pintura não é a principal referência na minha poesia, e sim uma delas. Os sentimentos mais recônditos ou explícitos que carrego, a tentativa de compreensão do outro, o imaginário de um mundo futuro e ainda possível porque não aconteceu em bases justas e solidárias, são referenciais importantes na poesia que faço.
Poemas como “Dois poemas sobre um motivo de Vielimir Khlébnikov” e “Poema autografado num envelope contendo uma fotografia amarelada” surgem de um eu lírico que fala a partir de uma posição solitária, na qual os sentidos da vida parecem estar em dissolução; mas o Outro, aquele que caminha na cidade, também é solitário: seus personagens são os bêbados, os cegos pedintes, os arlequins, os poetas soltos nas ruas – aqueles que não se “enquadram”. Gostaria que você comentasse isto.
Os dois poemas citados refletem a experiência cotidiana da solidão do poeta em seu quarto, a escrever e a ler desbragadamente, a sublimar amores impossíveis com o esteio e o auxílio luxuoso da literatura e com a inclinação clandestina, à época, do pensamento político. A vertente visionária dos personagens marginais e marginalizados é de origem baudeleriana, poeta que li demais e intentei absorver alguns temas e personagens malditos seus. O desajuste social destes personagens reflete algo do desajuste do próprio poeta, que teima, ou teimava, em não alinhar-se a vivências e situações flagrantes em que estivessem envolvidos os numerosos braços de polvo do status quo. Também num sentido de denúncia, sem a esperança ilusória de um grande alcance, ao modo de Neruda, Whitman ou Castro Alves, mas contribuindo, dentro de limitações próprias e às vezes reconhecíveis, para a consecução e dinamização do processo social e literário.
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Notas Marginais VIII
NOTAS MARGINAIS: EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA
A expressão “Notas Marginais” representa, na configuração deste blog experimental, o conjunto de poemas, resenhas e narrativas curtas que revelam, por si sós, seu próprio impacto e sua possibilidade de escolha ao autor e organizador. Os textos vão surgindo ao calor da hora ou nos eventos da memória, juntando-se e afastando-se até que, em momento não programado antecipadamente, chegam ao termo de publicação. Aparecem, além dos inéditos, textos já editados em livro ou jornal.
Intenta-se manter o necessário distanciamento do significado mais vulgarizado para “marginal”, entre os 13 que o filólogo Houaiss alinha em seu dicionário: “que vive à margem do meio social em que deveria estar integrado, desconsiderando os costumes, valores, leis e normas predominantes nesse meio”. E aproximação maior com “anotações” (que se fez ou se inseriu na margem de manuscrito, livro etc.) e com a derivação de um sentido figurado (comentário, observação, esclarecimento feito à margem de qualquer assunto). Eça de Queiroz publicou em 1866, como folhetim, na Gazeta de Portugal, um longo texto lírico, de viés romântico, influenciado por Heine, com este título. O “Notas Marginais” eciano pode ser encontrado em seu livro Prosas Bárbaras. Lima Barreto tem um volume de artigos e crônicas sobre livros e sobre o Rio de Janeiro intitulado Marginália, composto nos inícios do século 20.
O sentido de “nota” pode ser estendido à semantização da linguagem literária, ao significado intrínseco de texto escrito em prosa ou poesia, à residualidade do ensaio e da crônica e à consecução compacta e breve da visada crítica. “Marginal” refere-se, por sua vez, à idéia da publicação em si, pois é mais do que corrente, que quem escreve deseja ser lido. Como forma de romper e gerenciar o ineditismo e o anonimato, de impedir de algum modo as tentativas extemporâneas néscias, absurdas e espúrias de expurgo e sufocação da palavra, preenchendo óbvias lacunas e vazios deixados. E assim, como forma também de ignorar atitudes exclusivistas, tacanhas e excludentes típicas do tosco, simplório e desgastado provincianismo local, em nome de supostos e enganosos avanços editoriais. O relevo evidencia-se na necessidade de compartilhar e externar parcelas do conhecimento, da experiência e da leitura individual. E ainda, como meio de atestar a busca e o encontro de insights poéticos e ficcionais que guardam sua valoração artístico-literária, e que não foram devidamente veiculados, ou o foram insuficientemente pela palavra impressa.
PARACHOQUE DE CAMINHÃO
Quem quiser arranjar um inimigo vegetariano,
prometa a ele um peru de Natal de presente.
UM POEMA DE SOSÍGENES COSTA
Sosígenes Costa, poeta baiano, nasceu em Belmonte (1901) e morreu no Rio de Janeiro (1968). Sua poesia divide-se entre o neoparnasianismo de sonetos classicizantes e pavônicos e os poemas de métrica e ritmo livre que abordam temas negros, folclóricos e religiosos. Em 1978, José Paulo Paes organizou e apresentou a sua poética, tendo publicado também, um ano antes, um breve estudo da obra sob a denominação de Pavão, Parlenda, Paraíso. O poema “A Marcha do bumba-meu-boi” reflete a musicalidade inesquivável de versos percussivos, dançantes e característicos da cultura africana transplantada que enriquece o Brasil e de modo notável e acentuado, a Bahia:
Não toque o bombo, Zabumba,
no bumba-meu-boi.
O som do bombo rebumba
e espanta este boi.
Também não toque marimba
no bumba-meu-boi.
O sino quando rebimba,
me espanta este boi.
Zabumba, não toque este bombo
no bumba-meu-boi.
Zabumba, meu bamba, o ribombo
me espanta este boi..
Zabumba, não solte esta bomba
no pé de alecrim.
Sem esta cor de jambo,
o que será de mim?
RECIFE INTEMPORAL
Cada vez que leio sobre o Recife de outras épocas, mais me identifico à cidade. O século que demonstra um forte e grande apelo é o 19, que transita entre a perspectiva de um próximo e enviesado progresso e a decadência intranquila dos costumes e da política herdados da metrópole portuguesa. Castro Alves, Tobias Barreto, romantismo, poesia popular, positivismo, Escola do Recife, combate ao escravismo, conversas em tom conspiratório nos gabinetes inacessíveis, milícia ingenuamente truculenta e malandragem iniciante e incipiente.
Autores tidos como nostálgicos ou passadistas adquirem novas feições e conotações, pois não foram eles que definiram o tempo que lhes foi dado viver. E as suas vivências eram geralmente alimentadas pela sinceridade intelectual e pelo destemor da polêmica, com momentos destacados, ainda que em ambiente pífio e largamente conservador. É preciso procurar ler autores de época nas entrelinhas, para intentar descobrir o espírito crítico e premonitório de muitos desses criadores e pioneiros. As sinuosidades e relevos declinantes de seu estilo, na lentidão da pena, do mata-borrão e do papel de boa qualidade, podiam conter coisas somente descobertas tempos depois.
POEMA DA QUEDA PARCIAL
Ela feriu-se de encontro
ao rochedo, mas não
sucumbiu; assim,
dissolvidas no rímel
as lágrimas ponteiam seu rosto
e ao batom se confundem.
Agora consuma seu choro
que não nos entristece ou afeta,
pois foi estranheza e procura
e do escândalo à queda
provocação, ruptura
de quem com maldade recusa
a quem torturado a deseja.
Com sua fúria mais terna,
sempre tão viva e tão meiga,
sempre divina e faceira
ela absorve esse néctar
de fruição e incerteza
entre artifícios e gestos,
entre alegria e espera
sem a ninguém atender.
Ela desintegra o rochedo
a espantar tédio e medo.
A rebeldia é sua arma
quando destrói casca e calma.
E um novo tombo equivale
à dispersão de sua alma.
A expressão “Notas Marginais” representa, na configuração deste blog experimental, o conjunto de poemas, resenhas e narrativas curtas que revelam, por si sós, seu próprio impacto e sua possibilidade de escolha ao autor e organizador. Os textos vão surgindo ao calor da hora ou nos eventos da memória, juntando-se e afastando-se até que, em momento não programado antecipadamente, chegam ao termo de publicação. Aparecem, além dos inéditos, textos já editados em livro ou jornal.
Intenta-se manter o necessário distanciamento do significado mais vulgarizado para “marginal”, entre os 13 que o filólogo Houaiss alinha em seu dicionário: “que vive à margem do meio social em que deveria estar integrado, desconsiderando os costumes, valores, leis e normas predominantes nesse meio”. E aproximação maior com “anotações” (que se fez ou se inseriu na margem de manuscrito, livro etc.) e com a derivação de um sentido figurado (comentário, observação, esclarecimento feito à margem de qualquer assunto). Eça de Queiroz publicou em 1866, como folhetim, na Gazeta de Portugal, um longo texto lírico, de viés romântico, influenciado por Heine, com este título. O “Notas Marginais” eciano pode ser encontrado em seu livro Prosas Bárbaras. Lima Barreto tem um volume de artigos e crônicas sobre livros e sobre o Rio de Janeiro intitulado Marginália, composto nos inícios do século 20.
O sentido de “nota” pode ser estendido à semantização da linguagem literária, ao significado intrínseco de texto escrito em prosa ou poesia, à residualidade do ensaio e da crônica e à consecução compacta e breve da visada crítica. “Marginal” refere-se, por sua vez, à idéia da publicação em si, pois é mais do que corrente, que quem escreve deseja ser lido. Como forma de romper e gerenciar o ineditismo e o anonimato, de impedir de algum modo as tentativas extemporâneas néscias, absurdas e espúrias de expurgo e sufocação da palavra, preenchendo óbvias lacunas e vazios deixados. E assim, como forma também de ignorar atitudes exclusivistas, tacanhas e excludentes típicas do tosco, simplório e desgastado provincianismo local, em nome de supostos e enganosos avanços editoriais. O relevo evidencia-se na necessidade de compartilhar e externar parcelas do conhecimento, da experiência e da leitura individual. E ainda, como meio de atestar a busca e o encontro de insights poéticos e ficcionais que guardam sua valoração artístico-literária, e que não foram devidamente veiculados, ou o foram insuficientemente pela palavra impressa.
PARACHOQUE DE CAMINHÃO
Quem quiser arranjar um inimigo vegetariano,
prometa a ele um peru de Natal de presente.
UM POEMA DE SOSÍGENES COSTA
Sosígenes Costa, poeta baiano, nasceu em Belmonte (1901) e morreu no Rio de Janeiro (1968). Sua poesia divide-se entre o neoparnasianismo de sonetos classicizantes e pavônicos e os poemas de métrica e ritmo livre que abordam temas negros, folclóricos e religiosos. Em 1978, José Paulo Paes organizou e apresentou a sua poética, tendo publicado também, um ano antes, um breve estudo da obra sob a denominação de Pavão, Parlenda, Paraíso. O poema “A Marcha do bumba-meu-boi” reflete a musicalidade inesquivável de versos percussivos, dançantes e característicos da cultura africana transplantada que enriquece o Brasil e de modo notável e acentuado, a Bahia:
Não toque o bombo, Zabumba,
no bumba-meu-boi.
O som do bombo rebumba
e espanta este boi.
Também não toque marimba
no bumba-meu-boi.
O sino quando rebimba,
me espanta este boi.
Zabumba, não toque este bombo
no bumba-meu-boi.
Zabumba, meu bamba, o ribombo
me espanta este boi..
Zabumba, não solte esta bomba
no pé de alecrim.
Sem esta cor de jambo,
o que será de mim?
RECIFE INTEMPORAL
Cada vez que leio sobre o Recife de outras épocas, mais me identifico à cidade. O século que demonstra um forte e grande apelo é o 19, que transita entre a perspectiva de um próximo e enviesado progresso e a decadência intranquila dos costumes e da política herdados da metrópole portuguesa. Castro Alves, Tobias Barreto, romantismo, poesia popular, positivismo, Escola do Recife, combate ao escravismo, conversas em tom conspiratório nos gabinetes inacessíveis, milícia ingenuamente truculenta e malandragem iniciante e incipiente.
Autores tidos como nostálgicos ou passadistas adquirem novas feições e conotações, pois não foram eles que definiram o tempo que lhes foi dado viver. E as suas vivências eram geralmente alimentadas pela sinceridade intelectual e pelo destemor da polêmica, com momentos destacados, ainda que em ambiente pífio e largamente conservador. É preciso procurar ler autores de época nas entrelinhas, para intentar descobrir o espírito crítico e premonitório de muitos desses criadores e pioneiros. As sinuosidades e relevos declinantes de seu estilo, na lentidão da pena, do mata-borrão e do papel de boa qualidade, podiam conter coisas somente descobertas tempos depois.
POEMA DA QUEDA PARCIAL
Ela feriu-se de encontro
ao rochedo, mas não
sucumbiu; assim,
dissolvidas no rímel
as lágrimas ponteiam seu rosto
e ao batom se confundem.
Agora consuma seu choro
que não nos entristece ou afeta,
pois foi estranheza e procura
e do escândalo à queda
provocação, ruptura
de quem com maldade recusa
a quem torturado a deseja.
Com sua fúria mais terna,
sempre tão viva e tão meiga,
sempre divina e faceira
ela absorve esse néctar
de fruição e incerteza
entre artifícios e gestos,
entre alegria e espera
sem a ninguém atender.
Ela desintegra o rochedo
a espantar tédio e medo.
A rebeldia é sua arma
quando destrói casca e calma.
E um novo tombo equivale
à dispersão de sua alma.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Notas Marginais VII
EUFORIA E MAZELAS DO NATAL
O Natal perde um pouco do seu ar de festa de comunhão em família para se transformar, cada vez mais, na compulsão febril e destrutiva de um consumo desenfreado e incontrolável. A dispersão em massa torna-se o estigma insustentável e precário de um balanço inexistente do ano que está a se findar. Talvez apenas os solitários contumazes façam uma espécie de avaliação forçada de suas vidas, pois a circunstância e o peso da solidão os obrigam a isso. Aqueles de feitio gregário jamais irão pensar no que se esfumou, quando se constata que o que passa a lhes interessar no instante é a risada larga e ruidosa, a conversa superficial e ininterrupta, os abraços rápidos ou demasiadamente apertados, os beijos que ressoam acalorados, mas nem sempre sinceros.
O chamado espírito natalino leva à tolerância e à aceitação momentânea dos defeitos e fraquezas do outro, por isso aguenta-se os parentes de variada origem e extração, os conhecidos e vizinhos esquivos e os chatos insistentes e de plantão. Faz-se vista grossa para a parcialidade de certos amigos, não se exigindo mais o que eles não tiveram fibra para partilhar durante os dias do ano. Permanece, contudo, aquela secura na garganta pela frustração das coisas inalcançadas e irrealizadas. O aumento salarial que não se teve, o curso planejado que não se fez, o casamento falido que não se conseguiu desfazer, a perda de amizades por motivações fúteis que não se evitou, a doença que se espalhou avassaladora e que não se esperava, a traição e a inveja sempre por perto e que não puderam ser detectadas a tempo. E ainda, um desejado equilíbrio interno de corpo e cabeça que não se obteve, esfarelou-se ou se manifestou incipiente e sem força.
Quem mais ganha com o Natal é o banqueiro e o contraventor, o grande comerciante e o capitão-de-indústria, com o fabrico e a venda acelerada de produtos os mais diversos, legais ou ilícitos, como bebidas e frios, roupas e calçados, eletrodomésticos e automóveis, onde não estão descartados o contrabando e a sonegação. As agências de viagens e guichês de aeroportos, estações de metrô e terminais rodoviários, empresas de transporte clandestino também aumentam seus lucros em progressão vertiginosa. Contudo, os consumidores mais amenos e conscientes preferem gastar com música, cinema, teatro e livros.
Os bebedores inveterados arranjam, pelo Natal, um pretexto seguro e perdoável para encher a cara. Muitos desejam passar despercebidos, enquanto que outra fração busca justamente o contrário, a exposição pública, um picadeiro gratuito para uma atuação cafajeste e despudorada. Os que fazem parte da categoria enviesada dos ajustados, sovinas e conformistas absorvem tacanhamente a festa como quem calcula os seus efeitos sobre a rotina, o bolso e alguma remota mudança de vida.
As confraternizações de partidos políticos, associações de classe, clubes esportivos, empresas de ramos e interesses diversificados, retocam o que vinha sorrateira ou explicitamente se deteriorando. Assim acontece com as relações de dominação nos âmbitos empresarial e político, público ou privado, que muitas vezes se mostram penosamente difíceis de ser contornadas e controladas, em qualquer nível hierárquico do mundo da política, dos mass media e do trabalho. É nesse sentido que comungam instituições de procedência e intencionalidades díspares, filantrópicas, não-governamentais ou midiáticas, que se mobilizam e unem para tentar diminuir, mesmo que por algumas horas, a fome, a seminudez e a ausência de brinquedos e presentes nas famílias pobres.
Fica praticamente impossível imaginar, na ambiência familiar de fartura e pachorra, o Natal dos prisioneiros, o fim de ano dos sem teto ou sem terra, dos que vivem à beira do suicídio, dos que agonizam nos hospitais, de todos os que se encontram mergulhados, como disse o nosso Presidente há pouco, “na merda”. A parcela significante da população que dança, canta, brinca, bebe e come nem de longe percebe a tremenda solidão e o isolamento dos que não gozam de nenhum privilégio e nem dispõem de parentes ou amigos que os confortem. Porque a criatura mais violenta ou asquerosa, o assassino mais frio e impiedoso, o sujeito mais mesquinho e abjeto guarda no seu íntimo, um mínimo que seja, de pertencimento e ligação à raça humana.
As numerosas missas católicas celebradas intentam reafirmar o espírito religioso, o serviço chegando a atingir, ainda que sem cooptar nem redimir, ateus confessos e uma gente não-praticante que cultiva uma vacilante e frágil descrença. Os cultos evangélicos logram servir a um papel encarniçado e obsessivo de arrebanhar novas e não tão inocentes ovelhas para as suas fileiras, notadamente aquelas almas que se debatem nas fronteiras da dúvida, da insegurança e da indecisão.
No Natal, ensejam confundir-se no pensamento instantâneo e etéreo propiciado pela euforia o esforço vão e a conquista inesperada, o desejo de felicidade e a impossibilidade de satisfação plena. A necessidade de extravasamento pode permitir atitudes de efêmera liberação antes incubadas e impensáveis ao convívio humano, onde o limite é o ridículo e o desastre. Inimigos e desafetos não conseguem, em determinadas circunstâncias, fugir ao luxo e ao direito de um aperto de mão, embora que, pós-Natal, voltem a ser o que eram, assumam a situação habitual de desavença e intriga.
A perplexidade e o espanto que se emergem do cotidiano inglório nivelam o alcance das batalhas justas e perdidas, alinhando-as às ações hipócritas, aos atos falhos e depressões inomináveis. Entretanto, a festa continua a simbolizar, mesmo nestes tempos de violência extremada e tecnologia da informação, a harmonia propiciada pela ceia farta, a voragem humana que não cessa, como se o ser fosse feito apenas de boca e estômago, de paladar e glutonaria, por mais que se pense e se diga o contrário.
O Natal perde um pouco do seu ar de festa de comunhão em família para se transformar, cada vez mais, na compulsão febril e destrutiva de um consumo desenfreado e incontrolável. A dispersão em massa torna-se o estigma insustentável e precário de um balanço inexistente do ano que está a se findar. Talvez apenas os solitários contumazes façam uma espécie de avaliação forçada de suas vidas, pois a circunstância e o peso da solidão os obrigam a isso. Aqueles de feitio gregário jamais irão pensar no que se esfumou, quando se constata que o que passa a lhes interessar no instante é a risada larga e ruidosa, a conversa superficial e ininterrupta, os abraços rápidos ou demasiadamente apertados, os beijos que ressoam acalorados, mas nem sempre sinceros.
O chamado espírito natalino leva à tolerância e à aceitação momentânea dos defeitos e fraquezas do outro, por isso aguenta-se os parentes de variada origem e extração, os conhecidos e vizinhos esquivos e os chatos insistentes e de plantão. Faz-se vista grossa para a parcialidade de certos amigos, não se exigindo mais o que eles não tiveram fibra para partilhar durante os dias do ano. Permanece, contudo, aquela secura na garganta pela frustração das coisas inalcançadas e irrealizadas. O aumento salarial que não se teve, o curso planejado que não se fez, o casamento falido que não se conseguiu desfazer, a perda de amizades por motivações fúteis que não se evitou, a doença que se espalhou avassaladora e que não se esperava, a traição e a inveja sempre por perto e que não puderam ser detectadas a tempo. E ainda, um desejado equilíbrio interno de corpo e cabeça que não se obteve, esfarelou-se ou se manifestou incipiente e sem força.
Quem mais ganha com o Natal é o banqueiro e o contraventor, o grande comerciante e o capitão-de-indústria, com o fabrico e a venda acelerada de produtos os mais diversos, legais ou ilícitos, como bebidas e frios, roupas e calçados, eletrodomésticos e automóveis, onde não estão descartados o contrabando e a sonegação. As agências de viagens e guichês de aeroportos, estações de metrô e terminais rodoviários, empresas de transporte clandestino também aumentam seus lucros em progressão vertiginosa. Contudo, os consumidores mais amenos e conscientes preferem gastar com música, cinema, teatro e livros.
Os bebedores inveterados arranjam, pelo Natal, um pretexto seguro e perdoável para encher a cara. Muitos desejam passar despercebidos, enquanto que outra fração busca justamente o contrário, a exposição pública, um picadeiro gratuito para uma atuação cafajeste e despudorada. Os que fazem parte da categoria enviesada dos ajustados, sovinas e conformistas absorvem tacanhamente a festa como quem calcula os seus efeitos sobre a rotina, o bolso e alguma remota mudança de vida.
As confraternizações de partidos políticos, associações de classe, clubes esportivos, empresas de ramos e interesses diversificados, retocam o que vinha sorrateira ou explicitamente se deteriorando. Assim acontece com as relações de dominação nos âmbitos empresarial e político, público ou privado, que muitas vezes se mostram penosamente difíceis de ser contornadas e controladas, em qualquer nível hierárquico do mundo da política, dos mass media e do trabalho. É nesse sentido que comungam instituições de procedência e intencionalidades díspares, filantrópicas, não-governamentais ou midiáticas, que se mobilizam e unem para tentar diminuir, mesmo que por algumas horas, a fome, a seminudez e a ausência de brinquedos e presentes nas famílias pobres.
Fica praticamente impossível imaginar, na ambiência familiar de fartura e pachorra, o Natal dos prisioneiros, o fim de ano dos sem teto ou sem terra, dos que vivem à beira do suicídio, dos que agonizam nos hospitais, de todos os que se encontram mergulhados, como disse o nosso Presidente há pouco, “na merda”. A parcela significante da população que dança, canta, brinca, bebe e come nem de longe percebe a tremenda solidão e o isolamento dos que não gozam de nenhum privilégio e nem dispõem de parentes ou amigos que os confortem. Porque a criatura mais violenta ou asquerosa, o assassino mais frio e impiedoso, o sujeito mais mesquinho e abjeto guarda no seu íntimo, um mínimo que seja, de pertencimento e ligação à raça humana.
As numerosas missas católicas celebradas intentam reafirmar o espírito religioso, o serviço chegando a atingir, ainda que sem cooptar nem redimir, ateus confessos e uma gente não-praticante que cultiva uma vacilante e frágil descrença. Os cultos evangélicos logram servir a um papel encarniçado e obsessivo de arrebanhar novas e não tão inocentes ovelhas para as suas fileiras, notadamente aquelas almas que se debatem nas fronteiras da dúvida, da insegurança e da indecisão.
No Natal, ensejam confundir-se no pensamento instantâneo e etéreo propiciado pela euforia o esforço vão e a conquista inesperada, o desejo de felicidade e a impossibilidade de satisfação plena. A necessidade de extravasamento pode permitir atitudes de efêmera liberação antes incubadas e impensáveis ao convívio humano, onde o limite é o ridículo e o desastre. Inimigos e desafetos não conseguem, em determinadas circunstâncias, fugir ao luxo e ao direito de um aperto de mão, embora que, pós-Natal, voltem a ser o que eram, assumam a situação habitual de desavença e intriga.
A perplexidade e o espanto que se emergem do cotidiano inglório nivelam o alcance das batalhas justas e perdidas, alinhando-as às ações hipócritas, aos atos falhos e depressões inomináveis. Entretanto, a festa continua a simbolizar, mesmo nestes tempos de violência extremada e tecnologia da informação, a harmonia propiciada pela ceia farta, a voragem humana que não cessa, como se o ser fosse feito apenas de boca e estômago, de paladar e glutonaria, por mais que se pense e se diga o contrário.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Notas Marginais VI
A GUERRILHA VISTA POR DENTRO
Soledad no Recife, do jornalista e escritor Urariano Mota, publicado pela Boitempo, é um livro imprescindível para se compreender o movimento guerrilheiro em Pernambuco na década de 1970. Inicia-se numa sexta-feira de carnaval de 1972 no Recife, no bar Aroeira, no Pátio de São Pedro e finaliza com as mortes de um grupo de seis guerrilheiros na chácara de São Bento, em Paulista, cidade da região metropolitana recifense, em janeiro de 1973. Não sem haver uma intensiva e vigilante atualização temporal, pois o relato é também datado, e se realiza em 2009.
O encontro de militantes de esquerda naquele carnaval deflagra toda a ação posterior. Assim como o encontro do narrador que está ocultado enseja o tom explicadamente subjetivo do amor, da paixão do poeta comunista pela guerrilheira paraguaia culta, destemida e cosmopolita. Elaborado numa perspectiva em que o detalhe sugere a amplidão, o fato isolado atinge o país todo, o texto traz a reflexão dialética permanente, insistente e, em certos instantes, obsessiva até. Porque o autor tende a explicar e desenvolver pormenores, a não deixar nada sem esclarecimento. A narrativa transforma-se, assim, num testemunho ficcional que comporta forte sentido do real, como se a ficção se entranhasse ao cotidiano e a poesia tivesse alcance alargado e consequências práticas.
O narrador-personagem se remove na sombra, embora interfira diretamente nas vidas dos outros personagens. Mas de um modo discreto, sem causar danos à maioria deles. No entanto, o amor por Soledad e a solidariedade aos companheiros são entremeados pelo ódio e a desconfiança que, ao tempo, já se manifestava contra um deles, o infiltrado Cabo Anselmo. O capítulo mais longo é dedicado justamente à tentativa de compreensão da figura do verdugo e dos motivos e intencionalidades que levaram o traiçoeiro Anselmo a entregar a própria mulher, Soledad. Mesmo assim, em vista do nojo e do ódio que nutre, esse personagem inominado mantém o necessário equilíbrio e a tremenda frieza da precisão na análise dos acontecimentos. E isto, apesar da dor inominável que os eventos lhe causaram. O ato de escrever torna-se, aqui, necessidade premente e urgente de livrar-se, um pouco que seja, ainda que 37 anos depois, do fluxo trágico da memória da chacina da chácara de São Bento. E da perda do amor ali bem próximo, para, exatamente, Anselmo, que tem no livro o cognome de Daniel, um dos maiores dedos-duros da América Latina, alcaguete subordinado ao Delegado Fleury. Que não teve pulso suficiente para evitar a morte da companheira grávida, mesmo que isso significasse a separação definitiva de ambos em vida.
De outro lado, os membros da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária, ou de outras organizações, não perdoavam àqueles que fossem suspeitos de infiltração em suas fileiras. A execução era certa, a decretação de morte um caso decidido. O espião, contudo, era mais esperto, usava roupas de estilo hippie, conhecia o jargão revolucionário e conspiratório, tinha uma postura aparentemente destemida, radical, combativa. Depois da sua chegada ao Recife, sucessivos pontos foram caindo, a repressão passou a atuar sem contemplações.
Em muitas passagens de Soledad no Recife a percepção crua dos fatos cede lugar ao lirismo, a inclinação socialista se abre para sentimentos, vivências e emoções geralmente vetadas aos revolucionários, à gente que queria mudar os rumos do país. É nessa direção que Urariano Mota escreve sua melhor ficção, quando o jornalista se afasta do flagrante e da informação para que o escritor se revele em toda a sua potencialidade e fruição. A construção inteligente dos diálogos, a visão intensa da mulher amada sem esperanças, o companheirismo que não admite nem mesmo as fronteiras oscilantes da experiência da morte em clima propício a isto, o cuidado do jovem suburbano recifense que morava com a mãe em não cair nas malhas da polícia política são relatados com o vigor e o desempenho de quem sabe os segredos do ofício. Pode-se imaginar o sufoco de quem esteve, como é o caso do narrador, que se confunde com o próprio autor, bem próximo daquela chacina, de desencavar o pesadelo em papel e tinta, quase quarenta anos depois.
Não se pode negar que Urariano Mota conseguiu seu intento com eficácia, presteza e honestidade intelectual. Um firme distanciamento se desfaz em certos trechos, pois se coloca inevitavelmente ao homem que conta uma história algo de sua participação, o afloramento de uma psique quase sempre reprimida por orientação partidária em descontração, boemia e sentimentos. No fogo cerrado da preparação da guerrilha urbana, ou da ação em si, na clandestinidade forçada, existiam momentos para se conversar, ler poesia, assistir a bons filmes, ouvir a música tropicalista e de resistência da época.
Soledad no Recife chega no tempo certo, bem depois de outros livros bombásticos e sensacionalistas sobre a temática, alguns já esquecidos. Entre as boas realizações nesse campo, pode-se lembrar o impactante Poema sujo, de Ferreira Gullar, guardando-se as respectivas diferenças de gênero, tragicidade e alcance literário. O longo poema de Gullar foi escrito em 1975 em Buenos Aires e editado um ano depois, no Brasil, e tem como assunto a cidade de São Luís do Maranhão, propiciando uma mirada visceral que nada escamoteia ou esconde, desde as mazelas das vivências familiares, a circunstancialidade urbana da pobreza nordestina, os personagens populares inesquecíveis.
O romance de Urariano Mota fala também de uma cidade, o Recife, estendendo-se por vezes a outras duas, Olinda e Paulista. O texto centra-se em algumas poucas casas, bares, encontros e reuniões políticas. A partir do que ocorre nessa ambientação, toda uma teia de experiências existenciais e políticas é entretecida, atingindo uma profundidade ímpar, pela forma detalhista como é realizada a narrativa. A escrita perfaz-se articulada por dentro, modelar e insubstituível em suas contradições, paradoxos, contrações, tensões e sinuosidades, pondo a nu o entendimento e desvendando impiedosamente os anos terríveis do governo Médici. São razões fortes estas e outras somente descobertas no texto, que fazem a leitura de Soledad no Recife, como dito lá no início, imprescindível.
UM POEMA DE SÉRGIO DE CASTRO PINTO
Um poema de Sérgio de Castro Pinto, “Papel de jornal”, chama particularmente a atenção, pela forma como sintetiza a efemeridade e o engodo dos papéis do jornal: o papel literal de embrulho para peixe e outras mercadorias e o papel de veicular sub-repticiamente a informação, de escamoteá-la e deformá-la sem que nem sempre se perceba. O poema é de 1982 e faz parte do livro O cerco da memória (1993), podendo ser encontrando também em O cristal dos verões, poemas escolhidos: 40 anos de poesia (1967-2007). A precisão poética é uma das marcas reconhecidas de Castro Pinto. Suas visadas e tiradas inteligentes produzem versos densos, comprimidos, satíricos, de um humor que se situa entre o trágico e o lúdico. As palavras se acumulam em estrofes breves e semanticamente inter-relacionadas, em vocabulário rico e fértil em suas escolhas. Além disso, o poeta paraibano exerce, entre outras atividades, o jornalismo profissional, o que o autoriza a escrever um poema crítico e incisivo como esse. Eis o texto em sua inteireza:
no papel de jornal
cabe o presente
e o seu papel
de estocar embrulhos.
o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.
no papel de jornal
transporto o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.
o presente
e o seu papel
de provocar engulhos.
no papel de jornal
cabe todo presente.
o presente
e o seu papel
de sonegar futuro.
CLUBE NÁUTICO CAPIBARIBE
Torço pelo Náutico desde menino. Comecei aí pelos onze anos de idade, ainda em Sertânia, continuando fiel ao time até hoje. Assisti a jogos memoráveis na década de 1970, mas não vou mais a campo. Assim, não me peçam escalações completas, pois para isso teria de pesquisar nas seções esportivas dos jornais ou consultar torcedores mais antenados a isso. As vitórias do time trazem aquela alegria leve, descontraída e esperançosa. Na derrota é preciso ter a cabeça fria, não procurar desculpas esfarrapadas para o fracasso de uma partida.
Quando o Náutico entra em campo, com o fascínio das cores branco e vermelho, o coração pulsa mais forte. Um sentimento épico e indizível atinge seus torcedores, e honrosamente me associo a eles. A vontade de estar também vestindo a camisa alvirrubra faz com que o sonho, por instantes, se transmute em real e a realidade fique sendo, flagrantemente, a expectativa do início do embate.
O único inconveniente no futebol mostra-se na circunstância de se assistir a um jogo sozinho. Os amigos desaparecem às vezes, a família pode estar ocupada em outras atividades, e não há mais escolha coletiva. Resta, apenas, a concentração total no jogo que os canais de TV competentemente permitem e facilitam. O domingo se passa mais movimentado e alegre ao sabor da bola rolando no campo.
LITERATURA E ARTE NOS GROTÕES
A paisagem rural do Sertão é áspera, estática, solar, misteriosa e pouco muda ao longo do tempo. Há, ainda, vaqueiros que são telúricos, primitivos, destemidos. Entretanto, estações de telefonia móvel, rádios FM, antenas parabólicas, o aparato receptor para internet e TV a cabo proliferam paulatinamente. Com seus poetas, artistas, artesãos e intelectuais nativos o Sertão produz a sua arte, música e literatura, os seus objetos de barro e madeira para exportação. E isto, em dosagens discretas do urbano e da tecnologia, conectadas à inquietação do mundo e ao presente.
Lá não existem apenas os grotões, como já classificou o Sertão, um tanto pejorativamente, um conhecido político pernambucano numa polêmica eleitoreira. Feito aquele mesmo político que sempre cabalou, surrupiou e vilipendiou milhares de votos destes mesmos grotões.
PASSOS SUBTERRÂNEOS
À margem do silêncio
a perplexidade
da cidade aflita,
seu visível teor
de concreto e quimera.
Delírios/ tramas/ cômputos
aqui ecoando:
colagens, laivos de vida.
Soledad no Recife, do jornalista e escritor Urariano Mota, publicado pela Boitempo, é um livro imprescindível para se compreender o movimento guerrilheiro em Pernambuco na década de 1970. Inicia-se numa sexta-feira de carnaval de 1972 no Recife, no bar Aroeira, no Pátio de São Pedro e finaliza com as mortes de um grupo de seis guerrilheiros na chácara de São Bento, em Paulista, cidade da região metropolitana recifense, em janeiro de 1973. Não sem haver uma intensiva e vigilante atualização temporal, pois o relato é também datado, e se realiza em 2009.
O encontro de militantes de esquerda naquele carnaval deflagra toda a ação posterior. Assim como o encontro do narrador que está ocultado enseja o tom explicadamente subjetivo do amor, da paixão do poeta comunista pela guerrilheira paraguaia culta, destemida e cosmopolita. Elaborado numa perspectiva em que o detalhe sugere a amplidão, o fato isolado atinge o país todo, o texto traz a reflexão dialética permanente, insistente e, em certos instantes, obsessiva até. Porque o autor tende a explicar e desenvolver pormenores, a não deixar nada sem esclarecimento. A narrativa transforma-se, assim, num testemunho ficcional que comporta forte sentido do real, como se a ficção se entranhasse ao cotidiano e a poesia tivesse alcance alargado e consequências práticas.
O narrador-personagem se remove na sombra, embora interfira diretamente nas vidas dos outros personagens. Mas de um modo discreto, sem causar danos à maioria deles. No entanto, o amor por Soledad e a solidariedade aos companheiros são entremeados pelo ódio e a desconfiança que, ao tempo, já se manifestava contra um deles, o infiltrado Cabo Anselmo. O capítulo mais longo é dedicado justamente à tentativa de compreensão da figura do verdugo e dos motivos e intencionalidades que levaram o traiçoeiro Anselmo a entregar a própria mulher, Soledad. Mesmo assim, em vista do nojo e do ódio que nutre, esse personagem inominado mantém o necessário equilíbrio e a tremenda frieza da precisão na análise dos acontecimentos. E isto, apesar da dor inominável que os eventos lhe causaram. O ato de escrever torna-se, aqui, necessidade premente e urgente de livrar-se, um pouco que seja, ainda que 37 anos depois, do fluxo trágico da memória da chacina da chácara de São Bento. E da perda do amor ali bem próximo, para, exatamente, Anselmo, que tem no livro o cognome de Daniel, um dos maiores dedos-duros da América Latina, alcaguete subordinado ao Delegado Fleury. Que não teve pulso suficiente para evitar a morte da companheira grávida, mesmo que isso significasse a separação definitiva de ambos em vida.
De outro lado, os membros da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária, ou de outras organizações, não perdoavam àqueles que fossem suspeitos de infiltração em suas fileiras. A execução era certa, a decretação de morte um caso decidido. O espião, contudo, era mais esperto, usava roupas de estilo hippie, conhecia o jargão revolucionário e conspiratório, tinha uma postura aparentemente destemida, radical, combativa. Depois da sua chegada ao Recife, sucessivos pontos foram caindo, a repressão passou a atuar sem contemplações.
Em muitas passagens de Soledad no Recife a percepção crua dos fatos cede lugar ao lirismo, a inclinação socialista se abre para sentimentos, vivências e emoções geralmente vetadas aos revolucionários, à gente que queria mudar os rumos do país. É nessa direção que Urariano Mota escreve sua melhor ficção, quando o jornalista se afasta do flagrante e da informação para que o escritor se revele em toda a sua potencialidade e fruição. A construção inteligente dos diálogos, a visão intensa da mulher amada sem esperanças, o companheirismo que não admite nem mesmo as fronteiras oscilantes da experiência da morte em clima propício a isto, o cuidado do jovem suburbano recifense que morava com a mãe em não cair nas malhas da polícia política são relatados com o vigor e o desempenho de quem sabe os segredos do ofício. Pode-se imaginar o sufoco de quem esteve, como é o caso do narrador, que se confunde com o próprio autor, bem próximo daquela chacina, de desencavar o pesadelo em papel e tinta, quase quarenta anos depois.
Não se pode negar que Urariano Mota conseguiu seu intento com eficácia, presteza e honestidade intelectual. Um firme distanciamento se desfaz em certos trechos, pois se coloca inevitavelmente ao homem que conta uma história algo de sua participação, o afloramento de uma psique quase sempre reprimida por orientação partidária em descontração, boemia e sentimentos. No fogo cerrado da preparação da guerrilha urbana, ou da ação em si, na clandestinidade forçada, existiam momentos para se conversar, ler poesia, assistir a bons filmes, ouvir a música tropicalista e de resistência da época.
Soledad no Recife chega no tempo certo, bem depois de outros livros bombásticos e sensacionalistas sobre a temática, alguns já esquecidos. Entre as boas realizações nesse campo, pode-se lembrar o impactante Poema sujo, de Ferreira Gullar, guardando-se as respectivas diferenças de gênero, tragicidade e alcance literário. O longo poema de Gullar foi escrito em 1975 em Buenos Aires e editado um ano depois, no Brasil, e tem como assunto a cidade de São Luís do Maranhão, propiciando uma mirada visceral que nada escamoteia ou esconde, desde as mazelas das vivências familiares, a circunstancialidade urbana da pobreza nordestina, os personagens populares inesquecíveis.
O romance de Urariano Mota fala também de uma cidade, o Recife, estendendo-se por vezes a outras duas, Olinda e Paulista. O texto centra-se em algumas poucas casas, bares, encontros e reuniões políticas. A partir do que ocorre nessa ambientação, toda uma teia de experiências existenciais e políticas é entretecida, atingindo uma profundidade ímpar, pela forma detalhista como é realizada a narrativa. A escrita perfaz-se articulada por dentro, modelar e insubstituível em suas contradições, paradoxos, contrações, tensões e sinuosidades, pondo a nu o entendimento e desvendando impiedosamente os anos terríveis do governo Médici. São razões fortes estas e outras somente descobertas no texto, que fazem a leitura de Soledad no Recife, como dito lá no início, imprescindível.
UM POEMA DE SÉRGIO DE CASTRO PINTO
Um poema de Sérgio de Castro Pinto, “Papel de jornal”, chama particularmente a atenção, pela forma como sintetiza a efemeridade e o engodo dos papéis do jornal: o papel literal de embrulho para peixe e outras mercadorias e o papel de veicular sub-repticiamente a informação, de escamoteá-la e deformá-la sem que nem sempre se perceba. O poema é de 1982 e faz parte do livro O cerco da memória (1993), podendo ser encontrando também em O cristal dos verões, poemas escolhidos: 40 anos de poesia (1967-2007). A precisão poética é uma das marcas reconhecidas de Castro Pinto. Suas visadas e tiradas inteligentes produzem versos densos, comprimidos, satíricos, de um humor que se situa entre o trágico e o lúdico. As palavras se acumulam em estrofes breves e semanticamente inter-relacionadas, em vocabulário rico e fértil em suas escolhas. Além disso, o poeta paraibano exerce, entre outras atividades, o jornalismo profissional, o que o autoriza a escrever um poema crítico e incisivo como esse. Eis o texto em sua inteireza:
no papel de jornal
cabe o presente
e o seu papel
de estocar embrulhos.
o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.
no papel de jornal
transporto o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.
o presente
e o seu papel
de provocar engulhos.
no papel de jornal
cabe todo presente.
o presente
e o seu papel
de sonegar futuro.
CLUBE NÁUTICO CAPIBARIBE
Torço pelo Náutico desde menino. Comecei aí pelos onze anos de idade, ainda em Sertânia, continuando fiel ao time até hoje. Assisti a jogos memoráveis na década de 1970, mas não vou mais a campo. Assim, não me peçam escalações completas, pois para isso teria de pesquisar nas seções esportivas dos jornais ou consultar torcedores mais antenados a isso. As vitórias do time trazem aquela alegria leve, descontraída e esperançosa. Na derrota é preciso ter a cabeça fria, não procurar desculpas esfarrapadas para o fracasso de uma partida.
Quando o Náutico entra em campo, com o fascínio das cores branco e vermelho, o coração pulsa mais forte. Um sentimento épico e indizível atinge seus torcedores, e honrosamente me associo a eles. A vontade de estar também vestindo a camisa alvirrubra faz com que o sonho, por instantes, se transmute em real e a realidade fique sendo, flagrantemente, a expectativa do início do embate.
O único inconveniente no futebol mostra-se na circunstância de se assistir a um jogo sozinho. Os amigos desaparecem às vezes, a família pode estar ocupada em outras atividades, e não há mais escolha coletiva. Resta, apenas, a concentração total no jogo que os canais de TV competentemente permitem e facilitam. O domingo se passa mais movimentado e alegre ao sabor da bola rolando no campo.
LITERATURA E ARTE NOS GROTÕES
A paisagem rural do Sertão é áspera, estática, solar, misteriosa e pouco muda ao longo do tempo. Há, ainda, vaqueiros que são telúricos, primitivos, destemidos. Entretanto, estações de telefonia móvel, rádios FM, antenas parabólicas, o aparato receptor para internet e TV a cabo proliferam paulatinamente. Com seus poetas, artistas, artesãos e intelectuais nativos o Sertão produz a sua arte, música e literatura, os seus objetos de barro e madeira para exportação. E isto, em dosagens discretas do urbano e da tecnologia, conectadas à inquietação do mundo e ao presente.
Lá não existem apenas os grotões, como já classificou o Sertão, um tanto pejorativamente, um conhecido político pernambucano numa polêmica eleitoreira. Feito aquele mesmo político que sempre cabalou, surrupiou e vilipendiou milhares de votos destes mesmos grotões.
PASSOS SUBTERRÂNEOS
À margem do silêncio
a perplexidade
da cidade aflita,
seu visível teor
de concreto e quimera.
Delírios/ tramas/ cômputos
aqui ecoando:
colagens, laivos de vida.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Notas Marginais V
DRUMMOND INÉDITO
A revista Veja de 11 de novembro último traz o artigo “Drummond antes de Drummond”, de Marcelo Bortoloti, sobre um livro inédito do grande poeta brasileiro. Está sob a guarda de Antonio Carlos Secchin, e pela raridade dos “25 Poemas da triste alegria”, resta esperar com paciência para vê-lo editado. O artigo de Bortoloti é entretecido como são articuladas as matérias e reportagens da revista: puxando para a novidade, o sensacionalismo e a insistente tentativa de abrangência. Tudo isso engendrado em tempo ínfimo e pouco espaço.
Os poemas eróticos e ecológicos de Drummond encerraram o ciclo de sua poesia, e nada mais agora poderá causar surpresa. Ele sempre terá novos leitores e aficionados. Um livro-reportagem de Geneton Moraes Neto, Dossiê Drummond, dissecou segredos da vida íntima do poeta, antes jamais vindos a público. Os comentadores e analistas da obra do mineiro se multiplicam com rara profusão.
É preciso conferir um dos poemas, para se ter uma breve ideia dessa fase inicial de Drummond, que não se diferencia de outros poetas do tempo, pelo tom neo-romântico, levemente simbolista e algo parnasiano de “Matinal”: “Seios aromados do meu amor,/ na manhã cheirando a lírios!// Volúpia das flores, volúpia das almas!// Um vento leve nas folhas,/ um céu de porcelana, muito fino,/ e a manhã cheirando s lírios!// A vida é belo porque sois belos/ e sorri ante a vossa beleza,/ ó brancos e redondos/ seios aromados do meu amor.”
A INSISTÊNCIA NO ÓBVIO
O óbvio é aquela parte do cotidiano que pode levar alguém à loucura pelo excesso de real que comporta.
UM POEMA DE GULLAR
O poema “Pela rua”, de Ferreira Gullar, poeta que dispensa apresentação, associa o mais intenso lirismo da solidão e da ausência à tristeza do poeta a transitar à toa no espaço urbano e flagrantemente temporal de um domingo no Rio de Janeiro de 1966. Transcrevo o poema na íntegra:
Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
Continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.
FESTIVAL LITERÁRIO NO SERTÃO
A viagem do Recife a Sertânia tem um percurso aproximado de 320 quilômetros. No caminho há cidades como Caruaru e Arcoverde, que estão entre as mais conhecidas. Para se chegar a Sertânia, passa-se por Cruzeiro do Nordeste, distrito que teve locações do filme Central do Brasil. Há trechos sinuosos e traiçoeiros, onde a rodovia não é duplicada. Um tráfego ininterrupto de carretas, ônibus e caminhões, além, obviamente, dos carros de passeio e motocicletas. A paisagem é composta de serrotes, descampados, granitos, árvores e leitos secos de riachos. É uma travessia de sol e asfalto, numerosos postos de gasolina e cidades sequenciadas que se assemelham umas às outras bem mais do que deveriam.
Em Sertânia participei, nos dias 19 e 20 de novembro, da versão 3 do Festival Literário do Sertão, que ganhou o prêmio Viva Leitura 2009, na categoria Escolas Públicas e Privadas. O prêmio tem alcance nacional e patrocínio dos ministérios da Cultura e da Educação. Na Escola Estadual Olavo Bilac, local de realização do evento, estudei de 1969 a 72. Um auditório repleto de alunos, professores e gente interessada da população foi o palco de apresentações de músicos, escritores e artistas populares.
Diante dessa plateia, conversei como poeta e professor Josessandro Andrade, idealizador do evento, sobre o meu livro Musa fragmentada – a poética de Carlos Pena Filho. Ele me perguntou sobre a vertente popular na poesia de Carlos Pena: se o poeta
recifense trabalhou o Episódio sinistro de Virgulino Ferreira apenas em bases temáticas, sem se preocupar em absorver e desenvolver as formas populares dos cantadores de viola e cordelistas. Acredito que Pena Filho elaborou seus poemas de cunho popular entranhando-se às formas dos poetas populares, como o demonstra a intervenção do cego cantador no poema. Não foi apenas o mito de Lampião sobejamente glosado que incitou Carlos Pena Filho a escrever o Episódio sinistro. Foi preciso, sim, que Pena Filho distendesse ao máximo a sua inclinação para as temáticas e formas populares que tanto o seduziam, para alcançar tamanha eficiência naquele poema.
OS VAQUEIROS – IV
Mesmo que certos vaqueiros
atalhem o gado de moto
a tradição não se acaba
por ser ela a mais própria:
Tanger boi a cavalo
junta trabalho e esporte
e vem de tempos antigos
que não se tinha o transporte
perigoso, enviesado, de aço
de quem viaja em duas rodas.
A revista Veja de 11 de novembro último traz o artigo “Drummond antes de Drummond”, de Marcelo Bortoloti, sobre um livro inédito do grande poeta brasileiro. Está sob a guarda de Antonio Carlos Secchin, e pela raridade dos “25 Poemas da triste alegria”, resta esperar com paciência para vê-lo editado. O artigo de Bortoloti é entretecido como são articuladas as matérias e reportagens da revista: puxando para a novidade, o sensacionalismo e a insistente tentativa de abrangência. Tudo isso engendrado em tempo ínfimo e pouco espaço.
Os poemas eróticos e ecológicos de Drummond encerraram o ciclo de sua poesia, e nada mais agora poderá causar surpresa. Ele sempre terá novos leitores e aficionados. Um livro-reportagem de Geneton Moraes Neto, Dossiê Drummond, dissecou segredos da vida íntima do poeta, antes jamais vindos a público. Os comentadores e analistas da obra do mineiro se multiplicam com rara profusão.
É preciso conferir um dos poemas, para se ter uma breve ideia dessa fase inicial de Drummond, que não se diferencia de outros poetas do tempo, pelo tom neo-romântico, levemente simbolista e algo parnasiano de “Matinal”: “Seios aromados do meu amor,/ na manhã cheirando a lírios!// Volúpia das flores, volúpia das almas!// Um vento leve nas folhas,/ um céu de porcelana, muito fino,/ e a manhã cheirando s lírios!// A vida é belo porque sois belos/ e sorri ante a vossa beleza,/ ó brancos e redondos/ seios aromados do meu amor.”
A INSISTÊNCIA NO ÓBVIO
O óbvio é aquela parte do cotidiano que pode levar alguém à loucura pelo excesso de real que comporta.
UM POEMA DE GULLAR
O poema “Pela rua”, de Ferreira Gullar, poeta que dispensa apresentação, associa o mais intenso lirismo da solidão e da ausência à tristeza do poeta a transitar à toa no espaço urbano e flagrantemente temporal de um domingo no Rio de Janeiro de 1966. Transcrevo o poema na íntegra:
Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
Continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.
FESTIVAL LITERÁRIO NO SERTÃO
A viagem do Recife a Sertânia tem um percurso aproximado de 320 quilômetros. No caminho há cidades como Caruaru e Arcoverde, que estão entre as mais conhecidas. Para se chegar a Sertânia, passa-se por Cruzeiro do Nordeste, distrito que teve locações do filme Central do Brasil. Há trechos sinuosos e traiçoeiros, onde a rodovia não é duplicada. Um tráfego ininterrupto de carretas, ônibus e caminhões, além, obviamente, dos carros de passeio e motocicletas. A paisagem é composta de serrotes, descampados, granitos, árvores e leitos secos de riachos. É uma travessia de sol e asfalto, numerosos postos de gasolina e cidades sequenciadas que se assemelham umas às outras bem mais do que deveriam.
Em Sertânia participei, nos dias 19 e 20 de novembro, da versão 3 do Festival Literário do Sertão, que ganhou o prêmio Viva Leitura 2009, na categoria Escolas Públicas e Privadas. O prêmio tem alcance nacional e patrocínio dos ministérios da Cultura e da Educação. Na Escola Estadual Olavo Bilac, local de realização do evento, estudei de 1969 a 72. Um auditório repleto de alunos, professores e gente interessada da população foi o palco de apresentações de músicos, escritores e artistas populares.
Diante dessa plateia, conversei como poeta e professor Josessandro Andrade, idealizador do evento, sobre o meu livro Musa fragmentada – a poética de Carlos Pena Filho. Ele me perguntou sobre a vertente popular na poesia de Carlos Pena: se o poeta
recifense trabalhou o Episódio sinistro de Virgulino Ferreira apenas em bases temáticas, sem se preocupar em absorver e desenvolver as formas populares dos cantadores de viola e cordelistas. Acredito que Pena Filho elaborou seus poemas de cunho popular entranhando-se às formas dos poetas populares, como o demonstra a intervenção do cego cantador no poema. Não foi apenas o mito de Lampião sobejamente glosado que incitou Carlos Pena Filho a escrever o Episódio sinistro. Foi preciso, sim, que Pena Filho distendesse ao máximo a sua inclinação para as temáticas e formas populares que tanto o seduziam, para alcançar tamanha eficiência naquele poema.
OS VAQUEIROS – IV
Mesmo que certos vaqueiros
atalhem o gado de moto
a tradição não se acaba
por ser ela a mais própria:
Tanger boi a cavalo
junta trabalho e esporte
e vem de tempos antigos
que não se tinha o transporte
perigoso, enviesado, de aço
de quem viaja em duas rodas.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Notas Marginais IV
UMA ANTOLOGIA DO CANGAÇO
Publicada em São Paulo, pela Escrituras Editora, a antologia poética O cangaço na poesia brasileira. A organização é do escritor pernambucano Carlos Newton Júnior, que fez um trabalho de alta garimpagem no que se poetizou sobre o assunto. Mesmo que Lampião seja o cangaceiro mais lembrado pelos poetas, há poemas sobre Antônio Silvino, Corisco e Jesuíno Brilhante que, ao lado de outros menos representativos, compõem o romanceiro deste ciclo de violência sertaneja.
O ciclo épico dos cangaceiros nas primeiras décadas do século 20 realizava-se no estigma aventureiro de homens transitando desabridos e solitários, ainda quando em bando, circulando a pé ou a cavalo pelas terras sertanejas desoladas na sua imensidão e miséria. A caatinga eleita como palco incendido de balas de rifles e fuzis, recortada pelas lâminas de sabres e punhais, se insurgindo como reinado sombrio de noites propícias a emboscadas, ataques e traições. Uma ambiência revelada nos meandros naturais de vales, rios e lajedos em estágio primário, ao mesmo tempo letárgica e brutal.
Na coletânea aparecem 35 poetas eruditos, com apenas quatro não-nordestinos: Murilo Mendes, Maria José de Carvalho, Walmir Ayala e Alexei Bueno. Os contemplados participam com um ou mais de um poema, sendo o esforço criterioso de seleção e escolha o único norteador da unidade temática alcançada. Tanto pode ser conferido, em versão de poesia culta, o folheto de cordel, como as formas reelaboradas do quadrão e do martelo. Há outras estruturas vérsicas como o soneto decassilábico e o poema curto sem definição estrófica, podendo constatar-se também certo equilíbrio na incidência de versos rimados e brancos.
Um poema algo espacializado de José Nêumanne Pinto tem como motivação o cinema de Glauber Rocha, um de Jorge de Lima convoca Marcel Proust a sair dos salões parisienses e vir conhecer o sertão e um de Ascenso Ferreira canta o misticismo cruel dos “guerreiros” Cabeleira, Conselheiro, Tempestade e Lampião, “que já nascem feitos”. O gaúcho Walmir Ayala participa com o único texto ilustrado da coletânea, glosando xilogravuras de José Altino. Não se encontrarão na obra as vertentes populares do cordel e do repente, praticadas pelos poetas profissionais desses ramos, embora ninguém possa negar a grande contribuição dada por eles ao tema.
Três mulheres participam do livro, e o que é digno de nota, com poemas longos ou tendendo para o longo. A paulista Maria José de Carvalho, com fragmentos do seu texto Romance de Lampião, a baiana Myriam Fraga, com o poema “Maria Bonita”, além de Janice Japiassu, que já deu mostras de sua inclinação para a poesia de feitio rural. Janice Japiassu estabelece comparações entre Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, entre a agilidade feroz e traiçoeira de um e o olho cego do outro, que valia por dois e iluminava a caatinga com os gritos guerreiros seguidos do clarão dos estampidos, como nesta passagem: “Silvino, o temido/ De punhal ligeiro/ De esperança morta/ E fogo certeiro// Lampião, o louco/ Desacorrentado/ Um olho de tigre/ O outro de espasmo”.
As opiniões ainda hoje se dividem, principalmente quando se atenta para o fato do que representou o cangaço, em sua voga violenta, para as populações do interior nordestino e para o poder público e privado. Para uns, Lampião aflora como um herói que suplanta todas as atrocidades conhecidas ou apenas imaginadas que cometeu. Para outros, não mais que um facínora alucinado. Tal duplicação mítica de Lampião tem sido responsável por distorções e confusões na análise do cangaço, que se expande desde a vingança familiar e a luta localista, até se converter na guerra sem tréguas contra todo o poder instituído na região nordestina (com exceção do fogo amigo dos religiosos e coiteiros), mobilizando forças políticas de boa parte do país. Acossado e duramente perseguido, Lampião esteve sempre a padecer, como escreveu Carlos Pena Filho, de uma sina anunciada em que “A morte será tão grande/ que até mesmo a solidão/ que há tantos anos te habita/ será cortada a facão”.
Na antologia, poetas consagrados convivem com poetas pouco conhecidos, formando uma tessitura em que o que está em jogo e passa a prevalecer é a qualidade individual dos trabalhos, agora expostos à leitura pública e extensiva. O que vale, para a eficácia da reunião, é exatamente a compulsão de cada poeta em expressar o que o emocionou, espantou ou instigou ao ponto de não poder deixar de registrar em poesia a sua visão sobre a saga e o fenômeno do cangaço.
RETRATO DO BRASIL
A revista Retrato do Brasil de outubro deste ano traz um artigo esclarecedor sobre Emily Dickinson, “Emily entre nós”, de Antônio Carlos Queiroz. Na fronteira entre o biográfico e o analítico, o ensaísta empreende o levantamento crítico de algumas traduções de poemas de Dickinson feitas no Brasil. Do ponto de vista fonético, mostra sutis diferenças entre o original e o traduzido, onde às vezes o emprego de uma única palavra pode definir todo o ritmo e alcance do poema, para melhor ou para pior. Queiroz não teme a profundidade interpretativa numa resenha para uma revista mais inclinada à política, à economia, ao jornalismo investigativo e científico. Mas, no quesito cultura, a revista acerta em cheio com esse artigo. Confira-se um trecho que ajuda a compreender os propósitos do autor: “A ironia e a transgressão dos valores de sua época e sociedade são elementos centrais na arte de Emily Dickinson, muito estudada, mas ainda pouco compreendida. No Brasil, é auspicioso o crescimento da fortuna crítica da poeta, muito embora haja mais fortuna do que crítica. Há falta de debate, motivada – quem sabe? – pelo receio da polêmica. Seria útil questionar, por exemplo, a qualidade de nossas traduções, que, por leitura equivocada dos originais, às vezes tornam a versão em português mais difícil do que em inglês.” E arremata com a solução lexical e semântica para um poema traduzido por Augusto de Campos, demonstrada concretamente no texto, afirmando ainda que “esse tipo de exercício contribuiria sobremaneira para a melhor apreciação da grande poeta norte-americana”.
RECORTES
Guardo numerosos recortes de jornais e revistas. Muita coisa se perdeu no tempo e em mudanças sucessivas de casas, pensões, hotéis e apartamentos. Uma perda que lamento, ainda hoje, foi a da coleção do jornal Versus, da esquerda internacional. Trazia contribuições de jornalistas e escritores de vários países, além de abrir espaço para contos, poemas, pequenos textos biográficos e relatos gerais da resistência latino-americana e das colônias sob o jugo português. Preservo, mesmo assim, recortes de poemas meus publicados em jornais de Minas Gerais, Goiás e Pernambuco.
OS AMANTES DESCOBREM SEU ÓCIO
Os amantes descobrem seu ócio
entre orgasmo, prazer, alegria.
Só muitos poetas não vemos
descobrir neste tempo a poesia.
Publicada em São Paulo, pela Escrituras Editora, a antologia poética O cangaço na poesia brasileira. A organização é do escritor pernambucano Carlos Newton Júnior, que fez um trabalho de alta garimpagem no que se poetizou sobre o assunto. Mesmo que Lampião seja o cangaceiro mais lembrado pelos poetas, há poemas sobre Antônio Silvino, Corisco e Jesuíno Brilhante que, ao lado de outros menos representativos, compõem o romanceiro deste ciclo de violência sertaneja.
O ciclo épico dos cangaceiros nas primeiras décadas do século 20 realizava-se no estigma aventureiro de homens transitando desabridos e solitários, ainda quando em bando, circulando a pé ou a cavalo pelas terras sertanejas desoladas na sua imensidão e miséria. A caatinga eleita como palco incendido de balas de rifles e fuzis, recortada pelas lâminas de sabres e punhais, se insurgindo como reinado sombrio de noites propícias a emboscadas, ataques e traições. Uma ambiência revelada nos meandros naturais de vales, rios e lajedos em estágio primário, ao mesmo tempo letárgica e brutal.
Na coletânea aparecem 35 poetas eruditos, com apenas quatro não-nordestinos: Murilo Mendes, Maria José de Carvalho, Walmir Ayala e Alexei Bueno. Os contemplados participam com um ou mais de um poema, sendo o esforço criterioso de seleção e escolha o único norteador da unidade temática alcançada. Tanto pode ser conferido, em versão de poesia culta, o folheto de cordel, como as formas reelaboradas do quadrão e do martelo. Há outras estruturas vérsicas como o soneto decassilábico e o poema curto sem definição estrófica, podendo constatar-se também certo equilíbrio na incidência de versos rimados e brancos.
Um poema algo espacializado de José Nêumanne Pinto tem como motivação o cinema de Glauber Rocha, um de Jorge de Lima convoca Marcel Proust a sair dos salões parisienses e vir conhecer o sertão e um de Ascenso Ferreira canta o misticismo cruel dos “guerreiros” Cabeleira, Conselheiro, Tempestade e Lampião, “que já nascem feitos”. O gaúcho Walmir Ayala participa com o único texto ilustrado da coletânea, glosando xilogravuras de José Altino. Não se encontrarão na obra as vertentes populares do cordel e do repente, praticadas pelos poetas profissionais desses ramos, embora ninguém possa negar a grande contribuição dada por eles ao tema.
Três mulheres participam do livro, e o que é digno de nota, com poemas longos ou tendendo para o longo. A paulista Maria José de Carvalho, com fragmentos do seu texto Romance de Lampião, a baiana Myriam Fraga, com o poema “Maria Bonita”, além de Janice Japiassu, que já deu mostras de sua inclinação para a poesia de feitio rural. Janice Japiassu estabelece comparações entre Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, entre a agilidade feroz e traiçoeira de um e o olho cego do outro, que valia por dois e iluminava a caatinga com os gritos guerreiros seguidos do clarão dos estampidos, como nesta passagem: “Silvino, o temido/ De punhal ligeiro/ De esperança morta/ E fogo certeiro// Lampião, o louco/ Desacorrentado/ Um olho de tigre/ O outro de espasmo”.
As opiniões ainda hoje se dividem, principalmente quando se atenta para o fato do que representou o cangaço, em sua voga violenta, para as populações do interior nordestino e para o poder público e privado. Para uns, Lampião aflora como um herói que suplanta todas as atrocidades conhecidas ou apenas imaginadas que cometeu. Para outros, não mais que um facínora alucinado. Tal duplicação mítica de Lampião tem sido responsável por distorções e confusões na análise do cangaço, que se expande desde a vingança familiar e a luta localista, até se converter na guerra sem tréguas contra todo o poder instituído na região nordestina (com exceção do fogo amigo dos religiosos e coiteiros), mobilizando forças políticas de boa parte do país. Acossado e duramente perseguido, Lampião esteve sempre a padecer, como escreveu Carlos Pena Filho, de uma sina anunciada em que “A morte será tão grande/ que até mesmo a solidão/ que há tantos anos te habita/ será cortada a facão”.
Na antologia, poetas consagrados convivem com poetas pouco conhecidos, formando uma tessitura em que o que está em jogo e passa a prevalecer é a qualidade individual dos trabalhos, agora expostos à leitura pública e extensiva. O que vale, para a eficácia da reunião, é exatamente a compulsão de cada poeta em expressar o que o emocionou, espantou ou instigou ao ponto de não poder deixar de registrar em poesia a sua visão sobre a saga e o fenômeno do cangaço.
RETRATO DO BRASIL
A revista Retrato do Brasil de outubro deste ano traz um artigo esclarecedor sobre Emily Dickinson, “Emily entre nós”, de Antônio Carlos Queiroz. Na fronteira entre o biográfico e o analítico, o ensaísta empreende o levantamento crítico de algumas traduções de poemas de Dickinson feitas no Brasil. Do ponto de vista fonético, mostra sutis diferenças entre o original e o traduzido, onde às vezes o emprego de uma única palavra pode definir todo o ritmo e alcance do poema, para melhor ou para pior. Queiroz não teme a profundidade interpretativa numa resenha para uma revista mais inclinada à política, à economia, ao jornalismo investigativo e científico. Mas, no quesito cultura, a revista acerta em cheio com esse artigo. Confira-se um trecho que ajuda a compreender os propósitos do autor: “A ironia e a transgressão dos valores de sua época e sociedade são elementos centrais na arte de Emily Dickinson, muito estudada, mas ainda pouco compreendida. No Brasil, é auspicioso o crescimento da fortuna crítica da poeta, muito embora haja mais fortuna do que crítica. Há falta de debate, motivada – quem sabe? – pelo receio da polêmica. Seria útil questionar, por exemplo, a qualidade de nossas traduções, que, por leitura equivocada dos originais, às vezes tornam a versão em português mais difícil do que em inglês.” E arremata com a solução lexical e semântica para um poema traduzido por Augusto de Campos, demonstrada concretamente no texto, afirmando ainda que “esse tipo de exercício contribuiria sobremaneira para a melhor apreciação da grande poeta norte-americana”.
RECORTES
Guardo numerosos recortes de jornais e revistas. Muita coisa se perdeu no tempo e em mudanças sucessivas de casas, pensões, hotéis e apartamentos. Uma perda que lamento, ainda hoje, foi a da coleção do jornal Versus, da esquerda internacional. Trazia contribuições de jornalistas e escritores de vários países, além de abrir espaço para contos, poemas, pequenos textos biográficos e relatos gerais da resistência latino-americana e das colônias sob o jugo português. Preservo, mesmo assim, recortes de poemas meus publicados em jornais de Minas Gerais, Goiás e Pernambuco.
OS AMANTES DESCOBREM SEU ÓCIO
Os amantes descobrem seu ócio
entre orgasmo, prazer, alegria.
Só muitos poetas não vemos
descobrir neste tempo a poesia.
terça-feira, 10 de novembro de 2009
Notas Marginais III
FLIPORTO
O Jornal do Commercio veiculou,no Caderno C, no dia 05/11/2009, a matéria "Começa a festa em Porto", da qual destaco trecho que fala dos lançamentos a serem realizados em Porto de Galinhas: "É natural que um evento como a Fliporto promova um agendamento de lançamentos e relançamentos. Selecionamos aqui as principais sessões de autógrafos da festa, que acontece no Pavilhão do Centro de Convenções 2 do Hotel Armação. Além de realizar a conferência de abertura da Fliporto, o uruguaio Eduardo Galeano autografa logo mais, às 19h30, Espelhos – Uma história quase universal. O autor conta a (sua) história da humanidade para além da biografia de grandes reis – o que importa aqui é o drama de subalternos e esquecidos. O lado B do que entendemos por história.
Com edição de bolso (formato no qual a Cepe Editora tem, com razão, apostado suas fichas), Luiz Arraes lança nesta quinta, às 11h, A noite sem sol. Suas histórias são permeadas por ótimos desenhos de Renata Cadena e trazem preocupações que se dividem entre o filosófico e o social, pedindo sempre a participação do leitor. “Nos contos que escreve, Luiz Arraes adota dois elementos que o circunscrevem no rol dos contistas mais modernos: a brevidade de uma leitura que não expurga a forma e ‘aquela intensidade como acontecimento puro’, de que trata Julio Cortázar no ensaio sobre Poe”, destaca a orelha do poeta Everardo Norões.
Ainda nesta sexta, o crítico literário Luiz Carlos Monteiro autografa, às 18h, o seu novíssimo Musa fragmentada. A obra traz um estudo da poética de Carlos Pena Filho. O autor procura redimensionar a importância do poeta do azul: “Apesar da obra de dimensão reduzida, Carlos Pena Filho destaca-se como um dos poetas mais vigorosos da década de 50, ombreando-se a poetas locais de repercussão nacional como João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo, Mauro Mota e Ascenso Ferreira”.
No sábado, o português José Luís Peixoto aproveita, às 17h, para lançar a novíssima edição brasileira do seu segundo romance Uma casa na escuridão. O público brasileiro já conhecia o autor pelo elogiado romance Nenhum olhar, uma espécie de bestiário fantástico pelo interior de Portugal. Nesse lançamento, JLP faz uma espécie de livro temático de amor, mas de um amor às avessas, mais para o horror que qualquer outro arroubo sentimental. Ainda no sábado, às 19h, Raimundo Carrero e Sidney Rocha autografam, respectivamente, Minha alma é irmã de Deus e Matriuska.
Também no sábado, às 19h, Valéria Torres da Costa e Silva autografa o seu estudo A modernidade nos trópicos – Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. O livro traz uma minuciosa leitura do pensamento de Gilberto Freyre nos anos 1920 e 1930, tentando entender como se formou sua obra dali para frente."
O Jornal do Commercio veiculou,no Caderno C, no dia 05/11/2009, a matéria "Começa a festa em Porto", da qual destaco trecho que fala dos lançamentos a serem realizados em Porto de Galinhas: "É natural que um evento como a Fliporto promova um agendamento de lançamentos e relançamentos. Selecionamos aqui as principais sessões de autógrafos da festa, que acontece no Pavilhão do Centro de Convenções 2 do Hotel Armação. Além de realizar a conferência de abertura da Fliporto, o uruguaio Eduardo Galeano autografa logo mais, às 19h30, Espelhos – Uma história quase universal. O autor conta a (sua) história da humanidade para além da biografia de grandes reis – o que importa aqui é o drama de subalternos e esquecidos. O lado B do que entendemos por história.
Com edição de bolso (formato no qual a Cepe Editora tem, com razão, apostado suas fichas), Luiz Arraes lança nesta quinta, às 11h, A noite sem sol. Suas histórias são permeadas por ótimos desenhos de Renata Cadena e trazem preocupações que se dividem entre o filosófico e o social, pedindo sempre a participação do leitor. “Nos contos que escreve, Luiz Arraes adota dois elementos que o circunscrevem no rol dos contistas mais modernos: a brevidade de uma leitura que não expurga a forma e ‘aquela intensidade como acontecimento puro’, de que trata Julio Cortázar no ensaio sobre Poe”, destaca a orelha do poeta Everardo Norões.
Ainda nesta sexta, o crítico literário Luiz Carlos Monteiro autografa, às 18h, o seu novíssimo Musa fragmentada. A obra traz um estudo da poética de Carlos Pena Filho. O autor procura redimensionar a importância do poeta do azul: “Apesar da obra de dimensão reduzida, Carlos Pena Filho destaca-se como um dos poetas mais vigorosos da década de 50, ombreando-se a poetas locais de repercussão nacional como João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo, Mauro Mota e Ascenso Ferreira”.
No sábado, o português José Luís Peixoto aproveita, às 17h, para lançar a novíssima edição brasileira do seu segundo romance Uma casa na escuridão. O público brasileiro já conhecia o autor pelo elogiado romance Nenhum olhar, uma espécie de bestiário fantástico pelo interior de Portugal. Nesse lançamento, JLP faz uma espécie de livro temático de amor, mas de um amor às avessas, mais para o horror que qualquer outro arroubo sentimental. Ainda no sábado, às 19h, Raimundo Carrero e Sidney Rocha autografam, respectivamente, Minha alma é irmã de Deus e Matriuska.
Também no sábado, às 19h, Valéria Torres da Costa e Silva autografa o seu estudo A modernidade nos trópicos – Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. O livro traz uma minuciosa leitura do pensamento de Gilberto Freyre nos anos 1920 e 1930, tentando entender como se formou sua obra dali para frente."
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Notas Marginais II
Apresento um trecho do meu livro Para ler Maximiano Campos (Edições Bagaço, 2008), que fala basicamente sobre a faceta de contista do escritor. Neste livro, construí um roteiro sobre a escrita de Maximiano Campos, trazendo a público a análise breve de sua obra, cronologia, iconografia, opiniões sobre sua ficção e recortes de livros seus.
OS CONTOS DE CIDADE E CAMPO
Maximiano Campos publicou, logo depois de Sem lei nem rei, dois livros de contos, As emboscadas da sorte em 1971 e As sentenças do tempo em 1973. Nos contos rurais destes volumes predominam os relatos das vivências que se enraízam fortemente entre a fome e a riqueza, a valentia e o acovardamento, a preguiça e o trabalho. O verde do canavial farto e exuberante contrasta com a exploração secular dos trabalhadores rurais, que vivem e labutam praticamente sob o mesmo regime de política salarial que foi estendido e transferido da Colônia e do Império à República. Representam assim elementos propulsores e motivadores da sua contística a alusão social aos conflitos entre capital e trabalho, as formas precárias de mobilização e persuasão ideológica, os castigos de morte, surra e prisão como consequência das campanhas salariais no campo.
Ao escrever o texto de apresentação da seleta de contos Na estrada, em 2004, Raimundo Carrero alinha Maximiano ao Movimento Armorial: “Por ter uma técnica – o que não significa sofisticação formal – e por não ser apenas regional, no sentido do documento, é que integrou o Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna, que está baseado nos valores culturais e artísticos do Nordeste e não na cópia da realidade”. É certo que, nos seus livros, existem referências temáticas e construção de personagens que lembram instantâneos do romance de Cavalaria, da poesia popular nordestina e do misticismo sertanejo. Pela via dos folguedos populares entranham-se nas narrativas, vestidos a caráter para uma festa da insanidade, os loucos desbaratados, os santos falseados e os foliões inconsequentes. Estas mesmas pessoas do povo que brigam, discutem, deliram e gritam incitadas pelas próprias subcondições de vida e por uma espécie de alegria despojada de pudores e sem artificialismos. Há ainda, os cavaleiros rurais que enlouquecem em consequência dos reflexos da decadência familiar e financeira, lembrando os fidalgos arruinados de todas as épocas, pelas crises econômicas e mudanças políticas e científicas processadas em reinos e repúblicas. Não podem ser esquecidos os cangaceiros, que utilizavam o cavalo, o armamento e a indumentária peculiarmente enfeitada como componentes da função guerreira.
Na sua armadura ficcional de personagens, assumem uma espécie de autonomia fomentada pela verve do seu criador, através da própria fluência da trama em que estão enredados e dos acontecimentos que a circundam. Colocados à deriva pelo contexto político repressor e oscilante em que se abrigam, tanto nos tempos do cangaço quanto em dias mais recentes, por ocasião da vigência do regime militar no Brasil, tais personagens terminam por explodir em revolta ou morrer desprezados e à míngua no meio da rua, no campo, em casa ou na prisão.
O ficcionista descarna vícios mundanos que assolam suas criaturas como o jogo de azar e a prostituição, com a aguardente e o tabaco sendo substitutivos para a fome, além das lendas e fatos da cultura popular onde não deixam de estar presentes os folguedos nordestinos e os versos dos poetas improvisadores da viola, que as revitalizam e divulgam. Os contos que revelam o ludismo infante, a alegoria circense e os excessos da descontração carnavalesca derivam-se da infância de jogos e brincadeiras no engenho (“O menino e o reino”, As emboscadas da sorte) ou da juventude marcada pela boemia e pelos carnavais recifenses, resultando na criação de personagens surreais e fantásticos como um rei negro e mecânico de profissão, um cangaceiro folião mas descendente legítimo de sertanejos e um astronauta pequeno-burguês bêbado e brigão (“O rei, o cangaceiro e o astronauta”, As emboscadas da sorte). Alguns deles não possuem locação determinada, parecendo estar soltos no tempo e no espaço do mesmo modo que seus personagens palhaços, anões, trapezistas. Em “O sonho real” (As sentenças do tempo), o operário negro João se fantasia de rei no carnaval e termina por enlouquecer, ao assumir no real o papel que vivera na folia. Em vários contos de As sentenças do tempo, percebe-se uma inclinação surreal inesquivável, uma forte tendência ao sonho e ao delírio, à entrada no mundo do absurdo.
A sexualidade na ficção de Maximiano Campos faz-se presente como algo a ser vivido entre seres que se atraem natural ou instintivamente, sem nenhum laivo de obscenidade ou espúrios complexos de culpa, como necessidade humana de realização do desejo sexual reprimido ou latente, que urge ser aplacado. O conto “A visita” (As emboscadas da sorte), põe a nu o sexo instintivo do pescador Cícero e da prostituta negra Joana, que aceita deitar-se com ele sem nenhuma paga pelo amor feito. Em “O sonho do rapaz”, também de As emboscadas da sorte, deslinda a iniciação sexual de um jovem do campo com uma “mulher-dama”, além dos meandros do prazer solitário. A narrativa “O escorpião”, de As feras mortas, oscila entre o lírico e o trágico, a sensualidade desenfreada e a solidão anunciada “pelo escorpião venenoso de bote armado”, apesar do alto grau de envolvimento carnal entre os amantes.
Outro lado dessa produção salienta aqueles contos metalingüísticos, ou seja, aqueles textos que questionam a linguagem ficcional dentro da própria narrativa em termos de construção de personagens e enredos, monólogos ou diálogos. E que chamam a atenção para o próprio ato da escrita, sua serventia ou falta de objetivo. Além disso, ele interpreta e analisa nos textos metalingüísticos os autores canônicos do gênero, com Cervantes e Tolstoi sempre reaparecendo. Nos contos de dimensão mais elastecida, a surpresa a cada página ou trecho da narrativa será o melhor elemento. Os dois melhores exemplos de contos mais longos aqui são “Na estrada” (As emboscadas da sorte) e “A vingança” (As sentenças do tempo), dinamizados pelas viagens boiadeiras de Luís Jatinã e Antônio Jesuíno. Em “Na estrada”, Jatinã destaca-se pela persistência humana levada ao limite. Ele é um homem que não quer se entregar nem mesmo diante da morte que o surpreende cavalgando, mas não o faz cair da montaria. Venceu todas as batalhas que encampou como vaqueiro, tendo como recompensa final pelo esforço aplicado e contínuo, a morte traiçoeira a que, por uma postura de apego desarvorado à vida, não se rendeu.
O conto “A vingança”, de andamento circular e de diálogos extremamente rápidos, é a história de um conflito entre Antônio Jesuíno e Ezequiel Mão de Pilão. A cidade de Mimoso, no final do agreste pernambucano, serve como cenário dos acontecimentos fatídicos. Ezequiel matou Rivaldo, irmão mais novo de Antônio, por causa de uma traição conjugal. O fato é que Rivaldo teve encontros amorosos com Luísa, mulher de Ezequiel. São outros personagens ativos na trama o pai de Antônio, que deflagra a ação, quando dá a incumbência a este de vender um gado ao marchante Ezequiel. A mãe, que aconselha o filho a não esmorecer na sua missão e viagem. E Joaquim, um apaixonado por Luísa, que propõe a Antônio uma parceria para darem fim a Ezequiel.
Uma situação de extrema tensão mostra-se como o diálogo de Antônio e Joaquim, ambos na mesa de um bar e cada um portando sorrateiramente armas de fogo. Joaquim é morto por Ezequiel, e este é morto por Antônio. Luísa sobrevive a tudo, e Antônio faz a viagem de volta. Na maior parte do texto, a vingança não fica explicitada, citada ou referida. No entanto, ela está implícita nos gestos e nas falas dos personagens, mesmo quando dizem ou sugerem o contrário. Destacam-se as reflexões irônicas de Antônio, no monólogo desenvolvido paralelamente em todo o episódio, desde os instantes iniciais do conto, quando diz ou pensa “Nós, os da família Jesuíno, nunca fomos vingativos”. Nas suas palavras finais, após concretizar a vingança motivada pela morte do irmão mais novo, Antônio conversa com o pai: “Pronto, pai, vendi o gado; só que não foi Ezequiel quem comprou”. E Antônio continua, refletindo e falando: “Notei certa tristeza no seu olhar. Aí remendei: ‘Defunto não pode comprar gado’. Ele nunca me perguntou nada. Voltei a trabalhar. Já estava com saudade do meu filho, da minha mulher. Minha mãe continua rezando, reza muito.” Antônio intenta convencer a si mesmo de que os seus exercem um tipo de pacifismo que só se emerge em violência quando sumariamente atacados, ao confessar ao seu interlocutor oculto: “Mas, moço, a gente, os Jesuínos, até que somos um povo cordato”.
O humor subterrâneo de Antônio reflete todo o seu esforço e amor pela vida, em contraste com a banalização da morte, pois no meio rural, valendo ainda hoje para certos locais, quem não lava sua honra com sangue não merece respeito. O homem rural esmera-se numa espécie de vingança às avessas contra a própria vida, a sua e a dos outros, contra a sina e o destino que lhe chegam sempre permeados por misérias, atribulações e desencontros. O pretexto do pai de Antônio foi a venda de dez garrotes, mas com um comprador definido, Ezequiel. “A vingança” traz uma grande mobilidade de diálogos e uma construção de personagens e cenários que reafirmam e referendam o inusitado dos acontecimentos, a surpresa permanente e o desvendamento dos fatos, todo este esforço só chegando a seu termo com o desfecho da história.
De As feras mortas, o conto “Noite”, de feição mais urbana, representa um dos trabalhos que se removem entre a recordação e o presente, entre o que aconteceu num passado ainda próximo e a vida vivida no momento em que tudo está acontecendo. Obedece a um ritmo delirante e mistura lembranças da cidade e do campo. Inicia-se com a referência a uma música do argentino Astor Piazzolla e finaliza com uma valsa. A infância, a vida boêmia, o circo, os letreiros luminosos. Também a festa com champanha, muita alegria, mulheres elegantes e refinadas. A visão enviesada dos marginalizados da sociedade, daqueles que vivem impulsionados pela teimosia e a insistência, espremidos nas subcondições das favelas: “Homens, mulheres, crianças e ratos amontoados”. Vinganças e perdões, a espera e a Esperança.
As feras mortas, assim como os livros anteriores do gênero conto, é composto de narrativas rurais e urbanas. A quantidade de textos líricos suplanta os textos de outras tendências e orientações, como os que privilegiam o delírio surrealista, a loucura visionária ou a angústia provocada pelo entrave na escrita. O conto “Perto do fim”, sustentado num lirismo pungente e resignado, sugere a presença inesquivável da morte. O personagem, vivendo um processo de lenta agonia, pede à mulher que conte histórias da juventude de ambos. Enquanto ela vai desfiando um tecido de recordações de um passado feliz e venturoso, ele vai relaxando até que adormece plenamente, sem mais retorno à vida. No balanço que faz, a literatura predomina em detrimento da própria saúde, pois ensaia o término de uma novela, mesmo sem as condições físicas mínimas. Contempla a biblioteca de “mil volumes, [onde] seis eram de sua autoria, romances escritos entre os vinte e os quarenta anos”. A constatação de sua vida se esvaindo, do seu corpo em processo de decomposição pelas dores do coração, emerge-se como um fantasma onipresente e impiedoso: “Ele sabia que estava bem perto do momento final. Breve se fecharia a cortina e para ele desapareceriam o cenário, os atores. A platéia se retiraria deixando o recinto vazio”. Mesmo que aplicado a um alguém inominado, guarda semelhanças, em certos momentos, com a própria jornada do escritor em direção à grande travessia para o desconhecido da morte, e nisto exprime um conteúdo autobiográfico latente.
OS CONTOS DE CIDADE E CAMPO
Maximiano Campos publicou, logo depois de Sem lei nem rei, dois livros de contos, As emboscadas da sorte em 1971 e As sentenças do tempo em 1973. Nos contos rurais destes volumes predominam os relatos das vivências que se enraízam fortemente entre a fome e a riqueza, a valentia e o acovardamento, a preguiça e o trabalho. O verde do canavial farto e exuberante contrasta com a exploração secular dos trabalhadores rurais, que vivem e labutam praticamente sob o mesmo regime de política salarial que foi estendido e transferido da Colônia e do Império à República. Representam assim elementos propulsores e motivadores da sua contística a alusão social aos conflitos entre capital e trabalho, as formas precárias de mobilização e persuasão ideológica, os castigos de morte, surra e prisão como consequência das campanhas salariais no campo.
Ao escrever o texto de apresentação da seleta de contos Na estrada, em 2004, Raimundo Carrero alinha Maximiano ao Movimento Armorial: “Por ter uma técnica – o que não significa sofisticação formal – e por não ser apenas regional, no sentido do documento, é que integrou o Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna, que está baseado nos valores culturais e artísticos do Nordeste e não na cópia da realidade”. É certo que, nos seus livros, existem referências temáticas e construção de personagens que lembram instantâneos do romance de Cavalaria, da poesia popular nordestina e do misticismo sertanejo. Pela via dos folguedos populares entranham-se nas narrativas, vestidos a caráter para uma festa da insanidade, os loucos desbaratados, os santos falseados e os foliões inconsequentes. Estas mesmas pessoas do povo que brigam, discutem, deliram e gritam incitadas pelas próprias subcondições de vida e por uma espécie de alegria despojada de pudores e sem artificialismos. Há ainda, os cavaleiros rurais que enlouquecem em consequência dos reflexos da decadência familiar e financeira, lembrando os fidalgos arruinados de todas as épocas, pelas crises econômicas e mudanças políticas e científicas processadas em reinos e repúblicas. Não podem ser esquecidos os cangaceiros, que utilizavam o cavalo, o armamento e a indumentária peculiarmente enfeitada como componentes da função guerreira.
Na sua armadura ficcional de personagens, assumem uma espécie de autonomia fomentada pela verve do seu criador, através da própria fluência da trama em que estão enredados e dos acontecimentos que a circundam. Colocados à deriva pelo contexto político repressor e oscilante em que se abrigam, tanto nos tempos do cangaço quanto em dias mais recentes, por ocasião da vigência do regime militar no Brasil, tais personagens terminam por explodir em revolta ou morrer desprezados e à míngua no meio da rua, no campo, em casa ou na prisão.
O ficcionista descarna vícios mundanos que assolam suas criaturas como o jogo de azar e a prostituição, com a aguardente e o tabaco sendo substitutivos para a fome, além das lendas e fatos da cultura popular onde não deixam de estar presentes os folguedos nordestinos e os versos dos poetas improvisadores da viola, que as revitalizam e divulgam. Os contos que revelam o ludismo infante, a alegoria circense e os excessos da descontração carnavalesca derivam-se da infância de jogos e brincadeiras no engenho (“O menino e o reino”, As emboscadas da sorte) ou da juventude marcada pela boemia e pelos carnavais recifenses, resultando na criação de personagens surreais e fantásticos como um rei negro e mecânico de profissão, um cangaceiro folião mas descendente legítimo de sertanejos e um astronauta pequeno-burguês bêbado e brigão (“O rei, o cangaceiro e o astronauta”, As emboscadas da sorte). Alguns deles não possuem locação determinada, parecendo estar soltos no tempo e no espaço do mesmo modo que seus personagens palhaços, anões, trapezistas. Em “O sonho real” (As sentenças do tempo), o operário negro João se fantasia de rei no carnaval e termina por enlouquecer, ao assumir no real o papel que vivera na folia. Em vários contos de As sentenças do tempo, percebe-se uma inclinação surreal inesquivável, uma forte tendência ao sonho e ao delírio, à entrada no mundo do absurdo.
A sexualidade na ficção de Maximiano Campos faz-se presente como algo a ser vivido entre seres que se atraem natural ou instintivamente, sem nenhum laivo de obscenidade ou espúrios complexos de culpa, como necessidade humana de realização do desejo sexual reprimido ou latente, que urge ser aplacado. O conto “A visita” (As emboscadas da sorte), põe a nu o sexo instintivo do pescador Cícero e da prostituta negra Joana, que aceita deitar-se com ele sem nenhuma paga pelo amor feito. Em “O sonho do rapaz”, também de As emboscadas da sorte, deslinda a iniciação sexual de um jovem do campo com uma “mulher-dama”, além dos meandros do prazer solitário. A narrativa “O escorpião”, de As feras mortas, oscila entre o lírico e o trágico, a sensualidade desenfreada e a solidão anunciada “pelo escorpião venenoso de bote armado”, apesar do alto grau de envolvimento carnal entre os amantes.
Outro lado dessa produção salienta aqueles contos metalingüísticos, ou seja, aqueles textos que questionam a linguagem ficcional dentro da própria narrativa em termos de construção de personagens e enredos, monólogos ou diálogos. E que chamam a atenção para o próprio ato da escrita, sua serventia ou falta de objetivo. Além disso, ele interpreta e analisa nos textos metalingüísticos os autores canônicos do gênero, com Cervantes e Tolstoi sempre reaparecendo. Nos contos de dimensão mais elastecida, a surpresa a cada página ou trecho da narrativa será o melhor elemento. Os dois melhores exemplos de contos mais longos aqui são “Na estrada” (As emboscadas da sorte) e “A vingança” (As sentenças do tempo), dinamizados pelas viagens boiadeiras de Luís Jatinã e Antônio Jesuíno. Em “Na estrada”, Jatinã destaca-se pela persistência humana levada ao limite. Ele é um homem que não quer se entregar nem mesmo diante da morte que o surpreende cavalgando, mas não o faz cair da montaria. Venceu todas as batalhas que encampou como vaqueiro, tendo como recompensa final pelo esforço aplicado e contínuo, a morte traiçoeira a que, por uma postura de apego desarvorado à vida, não se rendeu.
O conto “A vingança”, de andamento circular e de diálogos extremamente rápidos, é a história de um conflito entre Antônio Jesuíno e Ezequiel Mão de Pilão. A cidade de Mimoso, no final do agreste pernambucano, serve como cenário dos acontecimentos fatídicos. Ezequiel matou Rivaldo, irmão mais novo de Antônio, por causa de uma traição conjugal. O fato é que Rivaldo teve encontros amorosos com Luísa, mulher de Ezequiel. São outros personagens ativos na trama o pai de Antônio, que deflagra a ação, quando dá a incumbência a este de vender um gado ao marchante Ezequiel. A mãe, que aconselha o filho a não esmorecer na sua missão e viagem. E Joaquim, um apaixonado por Luísa, que propõe a Antônio uma parceria para darem fim a Ezequiel.
Uma situação de extrema tensão mostra-se como o diálogo de Antônio e Joaquim, ambos na mesa de um bar e cada um portando sorrateiramente armas de fogo. Joaquim é morto por Ezequiel, e este é morto por Antônio. Luísa sobrevive a tudo, e Antônio faz a viagem de volta. Na maior parte do texto, a vingança não fica explicitada, citada ou referida. No entanto, ela está implícita nos gestos e nas falas dos personagens, mesmo quando dizem ou sugerem o contrário. Destacam-se as reflexões irônicas de Antônio, no monólogo desenvolvido paralelamente em todo o episódio, desde os instantes iniciais do conto, quando diz ou pensa “Nós, os da família Jesuíno, nunca fomos vingativos”. Nas suas palavras finais, após concretizar a vingança motivada pela morte do irmão mais novo, Antônio conversa com o pai: “Pronto, pai, vendi o gado; só que não foi Ezequiel quem comprou”. E Antônio continua, refletindo e falando: “Notei certa tristeza no seu olhar. Aí remendei: ‘Defunto não pode comprar gado’. Ele nunca me perguntou nada. Voltei a trabalhar. Já estava com saudade do meu filho, da minha mulher. Minha mãe continua rezando, reza muito.” Antônio intenta convencer a si mesmo de que os seus exercem um tipo de pacifismo que só se emerge em violência quando sumariamente atacados, ao confessar ao seu interlocutor oculto: “Mas, moço, a gente, os Jesuínos, até que somos um povo cordato”.
O humor subterrâneo de Antônio reflete todo o seu esforço e amor pela vida, em contraste com a banalização da morte, pois no meio rural, valendo ainda hoje para certos locais, quem não lava sua honra com sangue não merece respeito. O homem rural esmera-se numa espécie de vingança às avessas contra a própria vida, a sua e a dos outros, contra a sina e o destino que lhe chegam sempre permeados por misérias, atribulações e desencontros. O pretexto do pai de Antônio foi a venda de dez garrotes, mas com um comprador definido, Ezequiel. “A vingança” traz uma grande mobilidade de diálogos e uma construção de personagens e cenários que reafirmam e referendam o inusitado dos acontecimentos, a surpresa permanente e o desvendamento dos fatos, todo este esforço só chegando a seu termo com o desfecho da história.
De As feras mortas, o conto “Noite”, de feição mais urbana, representa um dos trabalhos que se removem entre a recordação e o presente, entre o que aconteceu num passado ainda próximo e a vida vivida no momento em que tudo está acontecendo. Obedece a um ritmo delirante e mistura lembranças da cidade e do campo. Inicia-se com a referência a uma música do argentino Astor Piazzolla e finaliza com uma valsa. A infância, a vida boêmia, o circo, os letreiros luminosos. Também a festa com champanha, muita alegria, mulheres elegantes e refinadas. A visão enviesada dos marginalizados da sociedade, daqueles que vivem impulsionados pela teimosia e a insistência, espremidos nas subcondições das favelas: “Homens, mulheres, crianças e ratos amontoados”. Vinganças e perdões, a espera e a Esperança.
As feras mortas, assim como os livros anteriores do gênero conto, é composto de narrativas rurais e urbanas. A quantidade de textos líricos suplanta os textos de outras tendências e orientações, como os que privilegiam o delírio surrealista, a loucura visionária ou a angústia provocada pelo entrave na escrita. O conto “Perto do fim”, sustentado num lirismo pungente e resignado, sugere a presença inesquivável da morte. O personagem, vivendo um processo de lenta agonia, pede à mulher que conte histórias da juventude de ambos. Enquanto ela vai desfiando um tecido de recordações de um passado feliz e venturoso, ele vai relaxando até que adormece plenamente, sem mais retorno à vida. No balanço que faz, a literatura predomina em detrimento da própria saúde, pois ensaia o término de uma novela, mesmo sem as condições físicas mínimas. Contempla a biblioteca de “mil volumes, [onde] seis eram de sua autoria, romances escritos entre os vinte e os quarenta anos”. A constatação de sua vida se esvaindo, do seu corpo em processo de decomposição pelas dores do coração, emerge-se como um fantasma onipresente e impiedoso: “Ele sabia que estava bem perto do momento final. Breve se fecharia a cortina e para ele desapareceriam o cenário, os atores. A platéia se retiraria deixando o recinto vazio”. Mesmo que aplicado a um alguém inominado, guarda semelhanças, em certos momentos, com a própria jornada do escritor em direção à grande travessia para o desconhecido da morte, e nisto exprime um conteúdo autobiográfico latente.
terça-feira, 3 de novembro de 2009
Notas Marginais I
A INTERNET
A sociedade contemporânea tende a sustentar seus valores, no século 21, através do esforço de uma rede de comunicação intensamente poderosa e eficaz. O complexo da tecnologia da informação distribui-se em numerosas ramificações e polarizações intercontinentais. Os seus modelos culturais diferenciados de produção e consumo situam-se na fronteira estética que delimita o gosto popular e o erudito, e como produtos gerais desta oferta, a informação e o entretenimento ilimitados.
PRAGMATISMO
Tudo é relativamente cíclico, passageiro, eventual. Ninguém permanece para sempre num posto privilegiado, que pode ter vários formatos: desde aqueles de execução implacável, passando pelos de favorecimento político ou de tráfico de influência, aos arrumados em amizade. No âmbito empresarial, os mais competentes e supostamente indispensáveis podem um dia amanhecer sem emprego. Em política, um deslize ou o descontentamento do chefe pode ser fatídico. No caso da amizade, às vezes qualquer arranhão no relacionamento torna duas pessoas antes fraternas, desafetas figadais.
SERTÂNIA
Na extinta Revista da Educação, vol. X, Secretaria do Interior/PE, abr., mai., jun. 1945, encontro os seguintes esclarecimentos sobre a mudança do nome de Alagoa de Baixo para Sertânia: “Alagoa de Baixo, cidade, tomou o nome de Sertânia. Vila por lei provincial nº 1093, de 24 de maio de 1873; cidade por lei estadual nº 991 de 1 de julho de 1909. Sertânia, por solicitação dos habitantes, em virtude de ser a primeira cidade, de leste para oeste, da zona sertaneja”.
INFÂNCIA
Em Sertânia passei toda a minha infância. Viajava constantemente com parentes pelas cidades circunvizinhas. Fui menino solto, tendo direito a tomar banho de poço, rio e açude, caçar e pescar, jogar futebol, andar de bicicleta e patins. Na pré-adolescência, pude peruar sinuca e vagabundear nos bares e cabarés. Passei longas férias em fazendas de familiares, num mundo mais rural ainda, recuperando vivências que me foram tiradas logo após o meu nascimento no sítio Cacimbinha. Não tenho grandes ressentimentos dessa infância, apesar dos extensos bigodes e da severidade de meu pai, da educação extremamente rigorosa e exigente de minha mãe.
ALBERTO LINS CALDAS
Gorgonas (Recife, 2008), do poeta pernambucano Alberto Lins Caldas, é um livro estranho, radical, violento. Exprime a angústia de alguém que jamais se adaptou ao mundo, o descrédito total nos valores humanos. Sua sintaxe subverte o discurso poético com artifícios como cortes vocabulares e supressões morfológicas, utilização diferenciada de signos e sinais de pontuação. Seus poemas são invariavelmente longos, repartidos e subdivididos internamente, numa fragmentação que explicita também o estado íntimo do autor. Como exemplo, destaco este trecho, que é também um poema, do poema “Morto”:
sempre diferente.
sem saber como depois de tantos
inda sou o mesmo.
cada vez mais ignorante.
nunca impostor.
roda viva depois de tanta luta.
sei q nada disso é verdade.
devia ta inchado de vaidade.
mas naum.
fico assim.
cheio de escrupulos y terrores
atribulado de sonhos y martirios
sem ânimos.
nem me iludir posso.
finjo espalhar escuridaum como fingem a luz.
dos bons fasso maus y deles melhores.
todos somem.
eu mesmo ambiciono poder
sempre mais sem fim.
y vivo pobre.
pobre demais.
mais pobre do qeu ta morto
podre de pobre.
cobisso pouco mas muito poder.
qé a unica coisa que vale.
o resto é tolice.
naum espero nada da vida.
igual aos cães da rua.
mas esses esperam
carne osso ou lixo.
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Em Memória de minhas putas tristes (2006), Gabriel García Márquez mostra o quanto há de incestuoso – e também de isenção induzida de culpa do personagem em relação a si mesmo – no relacionamento entre um homem de noventa anos e uma garota de catorze. Além disso, a mania e o exagero de catalogar, ávida e criteriosamente, mulheres: “Lá pelos meus vinte anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo. Até os cinqüentas anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez.”
ANA CRISTINA CESAR
A bela poetisa carioca Ana Cristina Cesar, nascida em 1952, suicidou-se violentamente com pouco mais de trinta e um anos, em 29 de outubro de 1983. Um suicídio, como se sabe, nunca é explicável de todo. Os argumentos que se apresentam para justificá-lo sempre esbarram na estranheza própria e insólita do gesto e nas aparentes desrazões que o motivaram. Além destes entraves, não se pode mais contar com o único ente que poderia, de alguma forma, dar um testemunho inequívoco e esclarecedor, o suicida.
O que um poeta deixa como herança a quem provisoriamente fica é o brilho ou a falência de seus versos. E nestes, algo de seu espírito, lucidez, racionalidade, ânsias, concepções e idealizações pessoais e de suas vivências mais profundamente arraigadas. Um dos últimos poemas escritos por Ana Cristina Cesar, Contagem regressiva, descarna e põe a nu o sentimento amoroso vivido com uma intensidade altamente dramática e angustiante. O amor, no poema, não se amesquinha e nem se envergonha de sua condição de perda cotidiana e conquista permanente, nem se amofina diante da hipocrisia do senso comum.
Embora o poema afunde-se num tipo de intimismo inflamado e grandemente confessional, algo dele se passa também na velocidade virtual e alucinada do cenário urbano do Rio de Janeiro, ou, de outra maneira, na perigosa calmaria de um apartamento inquietantemente familiar. Os minutos que antecedem um encontro definidor para os amantes, mostram-se tensos, extremados e arrebatadores. Mesmo quando o recurso utilizado para uma possível reconciliação seja o silêncio perscrutador e desolado, quando não mais uma espécie de desespero calmo e contido. Neste poema, o amor não tem nome catalogável ou explícito, e o seu encanto revela-se justamente no fato de não se saber a que ser amado é dedicada uma paixão tão sublime e radical. Neste anonimato, onde desaparece também a noção convencional de sexo, trabalha contra o amor apenas esse tempo retido na mais exigente volição e impulsão do ser que ama.
Há um contraste nítido entre a pressa da viagem paranoica pela grande cidade e a busca do ser amado em sua morada e recolhimento. A resposta para essa busca é a empatia do silêncio tornado comum pelas circunstâncias do encontro doloroso entre os amantes. O silêncio mágico e definitivo que se instaura, desaquece os ímpetos mais fortes ao estabelecer as regras do jogo e o preço inglório de não se saber o que o outro deseja ou pensa. As palavras passam a perder a densidade de sua aura, e a ser momentaneamente desnecessárias e dispensáveis, ensejando assim, no bojo dessa situação conflitante, a sua contagem regressiva.
A ESCRITA
Minha relação pessoal com a escrita literária impulsiona-me mais diretamente à poesia, ao ensaio e à crítica. No caso da prosa de ficção, assumo uma posição que é a do leitor, de um leitor algo especializado, mas que não resume suas leituras apenas à interpretação ou à análise. Se não fosse assim, não praticaria a releitura de textos que um dia me instigaram e comoveram, que me proporcionaram prazer e emoção.
OS MENDIGOS
No Brasil
até mesmo
uma ferida
vira meio de vida.
A sociedade contemporânea tende a sustentar seus valores, no século 21, através do esforço de uma rede de comunicação intensamente poderosa e eficaz. O complexo da tecnologia da informação distribui-se em numerosas ramificações e polarizações intercontinentais. Os seus modelos culturais diferenciados de produção e consumo situam-se na fronteira estética que delimita o gosto popular e o erudito, e como produtos gerais desta oferta, a informação e o entretenimento ilimitados.
PRAGMATISMO
Tudo é relativamente cíclico, passageiro, eventual. Ninguém permanece para sempre num posto privilegiado, que pode ter vários formatos: desde aqueles de execução implacável, passando pelos de favorecimento político ou de tráfico de influência, aos arrumados em amizade. No âmbito empresarial, os mais competentes e supostamente indispensáveis podem um dia amanhecer sem emprego. Em política, um deslize ou o descontentamento do chefe pode ser fatídico. No caso da amizade, às vezes qualquer arranhão no relacionamento torna duas pessoas antes fraternas, desafetas figadais.
SERTÂNIA
Na extinta Revista da Educação, vol. X, Secretaria do Interior/PE, abr., mai., jun. 1945, encontro os seguintes esclarecimentos sobre a mudança do nome de Alagoa de Baixo para Sertânia: “Alagoa de Baixo, cidade, tomou o nome de Sertânia. Vila por lei provincial nº 1093, de 24 de maio de 1873; cidade por lei estadual nº 991 de 1 de julho de 1909. Sertânia, por solicitação dos habitantes, em virtude de ser a primeira cidade, de leste para oeste, da zona sertaneja”.
INFÂNCIA
Em Sertânia passei toda a minha infância. Viajava constantemente com parentes pelas cidades circunvizinhas. Fui menino solto, tendo direito a tomar banho de poço, rio e açude, caçar e pescar, jogar futebol, andar de bicicleta e patins. Na pré-adolescência, pude peruar sinuca e vagabundear nos bares e cabarés. Passei longas férias em fazendas de familiares, num mundo mais rural ainda, recuperando vivências que me foram tiradas logo após o meu nascimento no sítio Cacimbinha. Não tenho grandes ressentimentos dessa infância, apesar dos extensos bigodes e da severidade de meu pai, da educação extremamente rigorosa e exigente de minha mãe.
ALBERTO LINS CALDAS
Gorgonas (Recife, 2008), do poeta pernambucano Alberto Lins Caldas, é um livro estranho, radical, violento. Exprime a angústia de alguém que jamais se adaptou ao mundo, o descrédito total nos valores humanos. Sua sintaxe subverte o discurso poético com artifícios como cortes vocabulares e supressões morfológicas, utilização diferenciada de signos e sinais de pontuação. Seus poemas são invariavelmente longos, repartidos e subdivididos internamente, numa fragmentação que explicita também o estado íntimo do autor. Como exemplo, destaco este trecho, que é também um poema, do poema “Morto”:
sempre diferente.
sem saber como depois de tantos
inda sou o mesmo.
cada vez mais ignorante.
nunca impostor.
roda viva depois de tanta luta.
sei q nada disso é verdade.
devia ta inchado de vaidade.
mas naum.
fico assim.
cheio de escrupulos y terrores
atribulado de sonhos y martirios
sem ânimos.
nem me iludir posso.
finjo espalhar escuridaum como fingem a luz.
dos bons fasso maus y deles melhores.
todos somem.
eu mesmo ambiciono poder
sempre mais sem fim.
y vivo pobre.
pobre demais.
mais pobre do qeu ta morto
podre de pobre.
cobisso pouco mas muito poder.
qé a unica coisa que vale.
o resto é tolice.
naum espero nada da vida.
igual aos cães da rua.
mas esses esperam
carne osso ou lixo.
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Em Memória de minhas putas tristes (2006), Gabriel García Márquez mostra o quanto há de incestuoso – e também de isenção induzida de culpa do personagem em relação a si mesmo – no relacionamento entre um homem de noventa anos e uma garota de catorze. Além disso, a mania e o exagero de catalogar, ávida e criteriosamente, mulheres: “Lá pelos meus vinte anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo. Até os cinqüentas anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez.”
ANA CRISTINA CESAR
A bela poetisa carioca Ana Cristina Cesar, nascida em 1952, suicidou-se violentamente com pouco mais de trinta e um anos, em 29 de outubro de 1983. Um suicídio, como se sabe, nunca é explicável de todo. Os argumentos que se apresentam para justificá-lo sempre esbarram na estranheza própria e insólita do gesto e nas aparentes desrazões que o motivaram. Além destes entraves, não se pode mais contar com o único ente que poderia, de alguma forma, dar um testemunho inequívoco e esclarecedor, o suicida.
O que um poeta deixa como herança a quem provisoriamente fica é o brilho ou a falência de seus versos. E nestes, algo de seu espírito, lucidez, racionalidade, ânsias, concepções e idealizações pessoais e de suas vivências mais profundamente arraigadas. Um dos últimos poemas escritos por Ana Cristina Cesar, Contagem regressiva, descarna e põe a nu o sentimento amoroso vivido com uma intensidade altamente dramática e angustiante. O amor, no poema, não se amesquinha e nem se envergonha de sua condição de perda cotidiana e conquista permanente, nem se amofina diante da hipocrisia do senso comum.
Embora o poema afunde-se num tipo de intimismo inflamado e grandemente confessional, algo dele se passa também na velocidade virtual e alucinada do cenário urbano do Rio de Janeiro, ou, de outra maneira, na perigosa calmaria de um apartamento inquietantemente familiar. Os minutos que antecedem um encontro definidor para os amantes, mostram-se tensos, extremados e arrebatadores. Mesmo quando o recurso utilizado para uma possível reconciliação seja o silêncio perscrutador e desolado, quando não mais uma espécie de desespero calmo e contido. Neste poema, o amor não tem nome catalogável ou explícito, e o seu encanto revela-se justamente no fato de não se saber a que ser amado é dedicada uma paixão tão sublime e radical. Neste anonimato, onde desaparece também a noção convencional de sexo, trabalha contra o amor apenas esse tempo retido na mais exigente volição e impulsão do ser que ama.
Há um contraste nítido entre a pressa da viagem paranoica pela grande cidade e a busca do ser amado em sua morada e recolhimento. A resposta para essa busca é a empatia do silêncio tornado comum pelas circunstâncias do encontro doloroso entre os amantes. O silêncio mágico e definitivo que se instaura, desaquece os ímpetos mais fortes ao estabelecer as regras do jogo e o preço inglório de não se saber o que o outro deseja ou pensa. As palavras passam a perder a densidade de sua aura, e a ser momentaneamente desnecessárias e dispensáveis, ensejando assim, no bojo dessa situação conflitante, a sua contagem regressiva.
A ESCRITA
Minha relação pessoal com a escrita literária impulsiona-me mais diretamente à poesia, ao ensaio e à crítica. No caso da prosa de ficção, assumo uma posição que é a do leitor, de um leitor algo especializado, mas que não resume suas leituras apenas à interpretação ou à análise. Se não fosse assim, não praticaria a releitura de textos que um dia me instigaram e comoveram, que me proporcionaram prazer e emoção.
OS MENDIGOS
No Brasil
até mesmo
uma ferida
vira meio de vida.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Notas Marginais
O INÍCIO
Inicio a escrita destas Notas Marginais no dia 10 de outubro de 2009. Resisti bastante até convencer-me da importância do contato com um leitor virtual, invisível e distanciado, no entanto possível.
A PASSAGEM DO TEMPO
Não me vejo tendo nascido em outra província que não Pernambuco, e mais particularmente em Sertânia, antiga Alagoa de Baixo, no Sertão do Moxotó. Fui adotado pelo Recife, desde estudante do ensino médio, precisamente em 1973. Aos 16 anos, pensava que jamais iria envelhecer. Dez anos depois, fiz minha estreia na poesia, com o livreto Na solidão do neón. Um grande cortejo de amigos saudou esta primeira publicação. Coisa de que sinto falta hoje: tanta gente que se afastou, alguns de quem me afastei. A vida segue o seu curso enviesado, os amigos presentes e ausentes voltam ao pensamento com certa insistência.
O POETA E O ANONIMATO
O caracol não precisa de público, pois se encontra absurda e desumanamente centrado em si mesmo.
VIDA SOCIAL E VIDA LITERÁRIA
O dia-a-dia requer numerosos contatos humanos, uns mais constantes, outros esporádicos. Para ficar só e escrever torna-se mais raro, em certos instantes quase impossível, pelas obrigações e circunstâncias de sobrevivência que a vida impõe. Frequento, hoje, alguns eventos literários em ambientes fechados e, quando acontecem e não resisto ao chamamento, eventos de massa em via pública. Mas em dosagens que não me tornem em figura desgastada e desolada no redemoinho dos encontros fugazes ou na expectativa inútil da procura frustrada.
SOBRE O BRASIL
Um poema escrito pelo ex-exilado político Guilem Rodrigues da Silva, engajado mas humano o suficiente para comover mesmo quem não viveu aquela experiência ideológica:
SOBRE O BRASIL, MINHA PEQUENA – PARA MINHA FILHA NASCIDA NO EXÍLIO
Sobre o Brasil quero contar-te, minha pequena
a terra bem-amada
cheia de paz, de sol e de beleza
onde uma generosa natureza
desenhou rios, vales e montanhas.
No Brasil, minha pequena
são todos felizes
ali há justiça, trabalho, pão e escolas
a miséria e o analfabetismo
já não existem, pertencem ao passado.
Nenhum estudante desaparece nas cidades
não há mais presos políticos e reina a liberdade
as companhias estrangeiras não são mais proprietárias
dos nossos enormes recursos naturais
já não há mais golpes-de-Estado nem torturas
e em suas casernas e quartéis os nossos generais
esqueceram há muito os atos institucionais.
Para ti minha filhinha que nasceste no exílio
e brincaste na neve longe da nossa pátria
eu escrevo estes versos cheios de esperança.
Oxalá quando os leia no entardecer dos meus anos
não mais sejam quimera nem vã utopia
mas se eu te minto perdoa
quero apenas que durmas
embalada em meus sonhos.
SEMICLANDESTINO
Um encontro ansiado e secreto na noite. O contorno impreciso da gente com que se esbarra. O grupo que passa indiferente e distraído ao olhar mais aguçado. A torturante espera, o ridículo tenso da espreita. A despedida tardia e ligeira ao vento.
OSCAR WILDE
“Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas.” Nada pode definir melhor a vaidade e o orgulho do que um dito como este. Wilde era especialista em aforismos irônicos, inteligentes, envenenados. O orgulhoso de hoje pode vir a ser o mendigo de amanhã. Já vi alguns exemplos disto. O poderoso da hora pode vir a transformar-se no catador de doações aleatórias, subordinado a quem um dia causou constrangimentos e por vezes humilhou e retaliou. O destino entregue aos vermes, a solidão espectral dos cemitérios e a companhia muda de outros mortos será um experimento de todos.
JOSEPH BRODSKY
“Nenhuma poesia é escrita para o simples cômputo do que diz, assim como nenhuma vida é vivida para o cômputo do resumo necrológico.” Brodsky está falando aqui da boa poesia, daquela poesia que tem sobre o outro efeitos de prazer, emoção, vitalidade. Mesmo uma poesia considerada mórbida, sombria, pode arrancar o leitor de seu marasmo instantâneo, pela força da voz que ali se manifesta.
DUAL
A longa noite misteriosa da morte.
O breve e frágil sopro dos dias da vida.
Inicio a escrita destas Notas Marginais no dia 10 de outubro de 2009. Resisti bastante até convencer-me da importância do contato com um leitor virtual, invisível e distanciado, no entanto possível.
A PASSAGEM DO TEMPO
Não me vejo tendo nascido em outra província que não Pernambuco, e mais particularmente em Sertânia, antiga Alagoa de Baixo, no Sertão do Moxotó. Fui adotado pelo Recife, desde estudante do ensino médio, precisamente em 1973. Aos 16 anos, pensava que jamais iria envelhecer. Dez anos depois, fiz minha estreia na poesia, com o livreto Na solidão do neón. Um grande cortejo de amigos saudou esta primeira publicação. Coisa de que sinto falta hoje: tanta gente que se afastou, alguns de quem me afastei. A vida segue o seu curso enviesado, os amigos presentes e ausentes voltam ao pensamento com certa insistência.
O POETA E O ANONIMATO
O caracol não precisa de público, pois se encontra absurda e desumanamente centrado em si mesmo.
VIDA SOCIAL E VIDA LITERÁRIA
O dia-a-dia requer numerosos contatos humanos, uns mais constantes, outros esporádicos. Para ficar só e escrever torna-se mais raro, em certos instantes quase impossível, pelas obrigações e circunstâncias de sobrevivência que a vida impõe. Frequento, hoje, alguns eventos literários em ambientes fechados e, quando acontecem e não resisto ao chamamento, eventos de massa em via pública. Mas em dosagens que não me tornem em figura desgastada e desolada no redemoinho dos encontros fugazes ou na expectativa inútil da procura frustrada.
SOBRE O BRASIL
Um poema escrito pelo ex-exilado político Guilem Rodrigues da Silva, engajado mas humano o suficiente para comover mesmo quem não viveu aquela experiência ideológica:
SOBRE O BRASIL, MINHA PEQUENA – PARA MINHA FILHA NASCIDA NO EXÍLIO
Sobre o Brasil quero contar-te, minha pequena
a terra bem-amada
cheia de paz, de sol e de beleza
onde uma generosa natureza
desenhou rios, vales e montanhas.
No Brasil, minha pequena
são todos felizes
ali há justiça, trabalho, pão e escolas
a miséria e o analfabetismo
já não existem, pertencem ao passado.
Nenhum estudante desaparece nas cidades
não há mais presos políticos e reina a liberdade
as companhias estrangeiras não são mais proprietárias
dos nossos enormes recursos naturais
já não há mais golpes-de-Estado nem torturas
e em suas casernas e quartéis os nossos generais
esqueceram há muito os atos institucionais.
Para ti minha filhinha que nasceste no exílio
e brincaste na neve longe da nossa pátria
eu escrevo estes versos cheios de esperança.
Oxalá quando os leia no entardecer dos meus anos
não mais sejam quimera nem vã utopia
mas se eu te minto perdoa
quero apenas que durmas
embalada em meus sonhos.
SEMICLANDESTINO
Um encontro ansiado e secreto na noite. O contorno impreciso da gente com que se esbarra. O grupo que passa indiferente e distraído ao olhar mais aguçado. A torturante espera, o ridículo tenso da espreita. A despedida tardia e ligeira ao vento.
OSCAR WILDE
“Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas.” Nada pode definir melhor a vaidade e o orgulho do que um dito como este. Wilde era especialista em aforismos irônicos, inteligentes, envenenados. O orgulhoso de hoje pode vir a ser o mendigo de amanhã. Já vi alguns exemplos disto. O poderoso da hora pode vir a transformar-se no catador de doações aleatórias, subordinado a quem um dia causou constrangimentos e por vezes humilhou e retaliou. O destino entregue aos vermes, a solidão espectral dos cemitérios e a companhia muda de outros mortos será um experimento de todos.
JOSEPH BRODSKY
“Nenhuma poesia é escrita para o simples cômputo do que diz, assim como nenhuma vida é vivida para o cômputo do resumo necrológico.” Brodsky está falando aqui da boa poesia, daquela poesia que tem sobre o outro efeitos de prazer, emoção, vitalidade. Mesmo uma poesia considerada mórbida, sombria, pode arrancar o leitor de seu marasmo instantâneo, pela força da voz que ali se manifesta.
DUAL
A longa noite misteriosa da morte.
O breve e frágil sopro dos dias da vida.
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