sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias IX

EDSON RÉGIS E AS CONDIÇÕES AMBIENTES

O poeta pernambucano Edson Régis de Carvalho, nascido em Timbaúba a 29 de abril de 1923, teve uma morte trágica, violenta, inesperada. O episódio, que envolveu também a morte de um militar, o almirante Nelson Fernandes, configurou-se num atentado a bomba no Recife, no aeroporto dos Guararapes (atual Gilberto Freyre), no dia 25 de julho de 1966. Na ocasião, Edson Régis, na qualidade de secretário de Estado, representava o governador Paulo Guerra na recepção ao marechal Costa e Silva, então virtual candidato a presidente da República, e a quem, de resto, destinava-se a bomba. A autoria da ação não foi ainda totalmente esclarecida.
As principais atividades literárias de Edson Régis estenderam-se à editoração da revista Região e de suplementos literários de jornais de Pernambuco e da Paraíba, além da participação ativa junto à geração de 45. Ele assumiu os preceitos e atitudes dessa geração, levando-os às últimas consequências, permanecendo fiel e ligado a ela enquanto viveu. E assumiu também, na condição de epígono que era, o intenso maneirismo formal, o desértico e acurado senso neoparnasiano de ordem e disciplina em poesia, o espírito corporativista e os eventuais sucessos de uma geração de escritores brasileiros que foi uma das mais combatidas e detratadas.
De dimensão reduzida, a obra desse poeta resume-se a apenas dois livros: “O deserto e os números” (publicado a primeira vez em 1949, no Rio de Janeiro, pelas Edições Orfeu, que editou praticamente todos os poetas da geração de 45) e “As condições ambientes”, que ele não logrou publicar em vida. Em 1971, ambos os livros foram reunidos num único, publicado pela Editora Universitária da UFPE, ostentando uma dupla titulação. Dos seus escritos que não constam deste livro, sabe-se do poema “Lisboa”, que circulava no Recife nas redações dos jornais, nos bares frequentados por intelectuais e através da recitação de amigos.
O poema “As condições ambientes”, contido no livro de título homônimo, é representativo de tematizações e formas poéticas ocorrentes ao longo da escrita de Edson Régis, instaurando, logo na primeira das sete partições que o compõem, a noção de espacialidade urbana que permeia muito do que ele escreveu. Palavras como praça, cidade e mundo, estabelecem relações espaciais visíveis e que se alternam, em sentido crescente e/ou decrescente, a exemplo de praça-mundo (a praça contida no mundo), cidades-passeios públicos (cidades contendo passeios públicos), até retornar novamente à mais abrangente mundo, que por sua vez contém as mesmas praças, cidades e passeios públicos. E o homem-poeta que se situa neste contexto espacializado, que se reafirma como o espaço habitado ou visitado por ele, sente, canta, silencia ou luta em torno às condições ambientes: “Em cada praça do mundo/ Há um poeta sentindo/ As condições ambientes.// Se em algumas cidades/ Ele canta e o seu canto/ É ouvido pelos seus amigos,// Em outras ele está mudo/ Como estão as estátuas/ Nos passeios públicos.// Há uma grande luta/ Travada no mundo/ Que nos reservaram”.
Na parte II do poema, ele apoia-se em um efeito estilístico como a anáfora (largamente empregada por um poeta que fez escola nos anos 30, Augusto Frederico Schmidt, mas ainda hoje corrente e muito aplicada), cujo processo consiste, no caso específico deste poema, na repetição do primeiro verso de cada estrofe, “Sair pela noite”, e do verbo “Considerando”, que inicia o verso final de cada uma das cinco estrofes, como nesta estrofe escolhida: “Sair pela noite/ Como simples humano,/ Vítima de todos os acontecimentos,/ Considerando a morte e o poema definitivo”. Aqui a presença da morte é reforçada pelos “fantasmas de guerra”, mais precisamente do segundo pós-guerra, que o poeta acompanhou e testemunhou. Mas é na parte III que ele não abre mão da sua condição de poeta e da geração a que pertenceu, apegado definitivamente à sua poesia e às formas que a animaram, sem concessões nem constrangimentos, num trecho que guarda semelhanças nítidas com versos do “Cântico negro” do poeta português José Régio: “E porque amo esta poesia, não irei pelos rios/ Que eu não saiba a fonte.
Na IV partição, o “tom profético”, aproximado ao de um Deolindo Tavares, aflora-se com a inserção de um devir – quando ele intenta, de modo delirante e premonitório, a antecipação de acontecimentos que se imaginam iminentes, premonição e delírio que têm muito de especulação e fantasia, mas que também não raro revelam-se e veiculam-se competentemente através da sensibilidade misteriosa que caracteriza os poetas. É feita ainda uma referência ao gênesis que, nos dias tidos como primeiros, caracterizava-se pela harmonia e pelo silêncio, até o surgimento de uma noite que persistiu em alongar-se, como se derivada da escuridão de um poço insondável. O poema finaliza com dois sonetos, um setissilábico (VI) e o outro decassilábico (VII). No primeiro, os movimentos da lua aparecem literalmente nos meses de maio a dezembro, entre a tradição floral e a chegada do ano novo, embora, como o próprio poeta anuncia, num intervalo de tempo que “Não foi mistério nem sonho”. O segundo soneto, de veio platônico e contemplativo, metaforiza a mulher pelo lado da dúvida e da incerteza, a partir de uma visada indecisa e de um desconforto peregrino ou estático entre os caminhos do partir ou do ficar.
O humanismo como visão de mundo com que às vezes se distingue Edson Régis, sem se pensar no seu pendor ideológico de ideário conservador, sinaliza para uma linguagem que se propõe a afixar e situar o homem no âmbito restritivo e limitado da cultura literária. E isto implica numa linguagem e num humanismo peculiares que estão em muito dissociados da vida. Tal humanismo deveria acentuar, de modo incisivo, por outro lado, a ausência de uma perspectiva otimizada e dinâmica da vida, fragmentada nos nossos dias entre a grande parcela de escravos e excluídos e a parcela mínima dos que comandam e usufruem das benesses que inicialmente se destinariam, se não a todos, a pelo menos uma maioria social. Neste sentido, em certos instantes sua dicção faz-se ambígua e confusa, anódina e esterilizada, pela utilização de metáforas e significados que expressam apenas um vago compromisso com uma liberdade indefinida e inominada.
Do lado da comunicação poética, a poesia de Edson Régis sustenta-se quase sempre no seu atentar para a prática de uma linguagem que privilegia a ocorrência vocabular das palavras mais correntes e cotidianas. Ele exprime-se com frequência no seu signo verbal de um modo que um possível leitor, que não precisaria ser necessariamente um iniciado, o entenda.
(In: Suplemento Cultura/CEPE, ano XI, jul. 1997; aqui, com pequenas alterações.)


UM POEMA DE ALMIR CASTRO BARROS

Na produção poética de Almir Castro Barros, mostra-e significativo um poema curto, que leva o título “A um poeta”, constante em Ritmo dos nus (1992):

Os fracos
Num país de ferocidades
Se emprestam de cigarras
Para açoitar pobres cantos
Deveriam conhecer o solitário
Caminho de tímidos lazarentos
E passageiros do cadafalso
Que esquecem a morte
Pela altura de seus voos.

Sendo um poema de nove versos apenas, que se removem no intervalo de duas a dez sílabas, seu característico principal é a economia verbal empreendida (aliás, como a maioria dos poemas de Almir até agora). E isto desemboca numa condensação e rigor que demonstram visivelmente uma preferência especial pela amarração rítmica. Essa amarração rítmica consiste no movimento silábico que se realiza passo a passo, na sequência em que aparecem vogais, consoantes, fonemas e vocábulos em cada verso ou na combinação destes. Podem ser constatados efeitos fonéticos e aliterativos na disposição de rimas extremamente flexíveis e aparentemente casuais, em vocábulos como “fracos”, “ferocidades”, “cigarras”, “solitário” e “cadafalso”.
Em termos de conteúdos, os “fracos” de que fala o poeta diferem fundamentalmente dos “tímidos lazarentos” e dos “passageiros do cadafalso”. Ao fazer o contraponto com “país de ferocidades”, gerando uma antítese brusca e inesperada, esses “fracos” travestem-se de “cigarras”, onde o som estridente e retumbante que alardeiam, insinua-se por trás da metáfora entrevista, e completa-se no açoite a “pobres cantos”. O que o poema sugere ainda, de um modo até certo ponto literal, é o desconhecimento que os “fracos” teriam do “caminho” por onde transitam aqueles “tímidos lazarentos” e “passageiros do cadafalso”.
Desconhecimento, ignorância ou indiferença que reforçam as ideias de anulação e marginalidade, neste caso representadas pelo anonimato e pelo estrangulamento da voz solitária do poeta. Mas, é exatamente essa obscuridade que torna a poesia paradoxalmente luminosa, incitando-a a abrir seus caminhos nos espaços ermos, escuros e desertos do cenário urbano desumanizado, ou na paisagem ecológica desolada de um mundo rural em conflito ideológico permanente e acirrado nos nossos dias.
Se neste poema os estigmas da opressão indiscriminada e da exclusão social servem de carapaça aos poetas, estes talvez não pretendam render-se à sanha dominadora de outros homens, ou às circunstâncias um tanto inesquiváveis e imprevisíveis da vida, que exigem uma adaptação cotidiana e continuada da morte. É de admitir que a morte se faça esquecida, distanciada ou ausente apenas nos raros momentos em que o poeta se predispõe a trocar a crueza do real pelo sonho, ou a subir àquelas alturas do voo que somente a poesia logra permitir.


PARACHOQUES

A literatura às vezes é vaga, entedia
mesmo a quem luta com ela todo dia.


COTIDIANAS

Completados os seus oito anos, o menino pode fazer a primeira comunhão. No dia programado, chega à igreja com grande atraso. Teme ser castigado por isso, o que para ele é quase uma certeza. Seus pais não perdoam a desobediência e o desvio, nem nas datas de festas e eventos religiosos. Não há trégua possível na educação que lhe é imposta. Mas não reclama, não esperneia, não se importa, aceita o erro cometido como coisa corriqueira. Aliás, isto se repetiria muitas e muitas vezes na sua vida e na escola, embora não fosse mau aluno. Disfarçava-se de bom moço para fazer as maiores presepadas.
Com outros meninos, resolve um dia fugir da cidade. Imprudentemente, sem razão aparente ou motivo plausível. Sabia de antemão que iria receber um castigo duríssimo pela ousadia. Encontrado, apanhou até dizer basta, um basta que seus pais pareciam desconhecer. De outra feita, azucrinou um burrico, açoitando-o até que o animal perdeu a paciência e legou como prêmio ao garoto uma queda memorável e violenta, arranhões e escoriações. O primo, dono do jumento, apenas ria de longe como se aprovando.
Tempo de jogar pião e soltar papagaio, dividir o sucesso da bola Pelé no cheiro do plástico que deixava marcas acintosamente vermelhas em qualquer lugar do corpo onde batesse. Tempo de fabricar carros de lata e compensado, com rodas de madeira compradas na feira do Sábado. Tempo de sessões domingueiras de matinê impagáveis de filmes de faroeste. Ali se trocavam revistas em quadrinhos que os meninos da época chamavam gibis ou guris.
O sentimento de exílio da infância, no prazer da redescoberta de um sol que esbanjava seus raios espalhados e intensos pelas manhãs inesquecíveis, oscilando entre o luminoso e o obscuro. Em toda a arquitetura dos versos do poeta adulto perpassam essas lembranças cinzentas e solares. Feito uma experiência insistentemente lírica, que ele teima em desentranhar dos inícios de sua memória rural e das suas vivências urbanas posteriores.


RELEITURAS

Elegbara – Alberto Mussa. As dez narrativas de Elegbara (2005) do carioca Alberto Mussa têm como medida explícita para o seu entendimento e leitura, o estranhamento e a surpresa. Elas poderiam ser caracterizadas como contos, quando se percebe que a brevidade e a condensação permanecem em primeiro plano. As afirmações sobre fatos, personagens ou situações históricas chegam sempre acompanhadas de seu oposto: a negação, a dúvida e, conforme já tinha observado Antonio Houaiss, a ambiguidade. Os personagens deste livro são imprevisíveis: um degredado judeu da expedição de Cabral que vomita quando lhe é oferecida a hóstia, a mulher vedada, de quem ninguém podia ver o rosto porque buscava a verdade, Elegbara, o detentor do poder (e que significa Exu), Zumbi e Ganga Zumba que vivem em constante embate, Dom Sebastião em Alcácer Quibir ou um capitão-do-mato que se apaixona por uma escrava e é condenado à morte. O flash biográfico se dilui nos enredos histórico-antropológicos, estabelecendo um choque dialético inusitado entre sujeito e objeto, entre mitologia e história. E isso logra deixar o leitor perplexo, mesmo aquele bem-informado. O autor intenta anular as fronteiras entre realidade e ficção, e aí está a grande provocação do livro, embora não devam ser levados demasiadamente a sério todos os eventos e personagens da obra, imaginando-os como absolutamente reais. De modo oposto, renegá-los totalmente seria destruir o caráter de verossimilhança que toda obra ficcional deve trazer em alguma proporção. Resta ao leitor se embrenhar nas páginas de Elegbara e desfrutar do prazer de uma leitura insigne e diferenciada, onde vale mais o que está dito e escrito do que as possíveis especulações acerca do que pode ou não ter acontecido.


UMA ARANHA, SUA TESSITURA

Aquela aranha
instalada em seu reino
tecia seus fios de cinza

suas garras
afiadas, frágeis embora
sustentavam a teia em avanço
no cimo da erva-cidreira.

Nenhum movimento visível
se alguém a espreitava.

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