quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias VII

EDMUND WILSON

Mesmo sendo os Estados Unidos um país de tradição literária recente e derivativa com relação às grandes literaturas do Ocidente, não deixa de ter entre seus escritores personagens de alta relevância artística e forte expressividade cultural. O escritor e crítico literário Edmundo Wilson é um destes nomes definitivamente circunscritos na história da literatura mundial, com uma obra que contabiliza 50 livros subdivididos em diários, romances, contos, peças teatrais, crítica literária e social e poemas. Wilson sabia conduzir-se competentemente em meio a essa multiplicidade de interesses literários. Um de seus raros livros de poesia, de 1929, tem título ironicamente sugestivo (Poets, farewell!) e quase homônimo ao do Drummond final (Farwell). Um de seus romances mais conhecidos, Memória do condado de Hecate, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, rendeu-lhe dinheiro, mas lhe valeu um processo judicial pelas confissões sexuais cruamente expostas e ainda inadmissíveis nos anos de 1940.
Por aqui foram traduzidos outros livros de Wilson, várias décadas após a publicação original nos Estados Unidos ou na Inglaterra, a exemplo de Raízes da criação literária (1965), O castelo de Axel (1967), Rumo à estação Finlândia (1986), Os anos 20 (1987)) e dois mais aproximados aos nossos dias, Manuscritos do Mar Morto e Onze ensaios, este último organizado pelo jornalista Paulo Francis. Sobre sua vida e sua obra, tem-se o breve ensaio crítico Edmund Wilson (1970), de Warner Berthoff e a mais que extensa biografia Edmund Wilson: uma biografia (1997), de Jeffrey Meyers.
Nascido em Red Bank, estado de Nova Jersey, a 8 de maio de 1895, Edmund Wilson Jr. teve atuação mais fecunda no jornalismo e na crítica literária. Empreendia julgamentos que nada tinham de arbitrários, concessivos ou parcializados. A admiração pelos clássicos greco-latinos não os eximia do julgamento certeiro, isento, racional. Wilson não escondia qualidades e nem deixava de apontar defeitos nos autores avaliados. Identificava-se aos refluxos éticos e humanistas do século 18, com sua logicidade e racionalismo reforçados também pela influência paterna.
Com os amigos, podia repentinamente ensaiar rompimentos impiedosos, geralmente sem nenhuma chance de reconciliação posterior. A polêmica Wilson-Nabokov, sustentada após a tradução feita por Nabokov do poema Eugene Onegin, de Pushkin, criticada por Wilson, esfriou uma relação de amizade e correspondência que durara 31 anos. Por outro lado Hemingway, em carta a Wilson, confessou em 1923: “A sua é a única opinião crítica em todos os Estados Unidos pela qual eu tenho respeito”. Não era raro que alguma de suas criticadas passasse a ser mulher legítima (Mary McCarty) ou amante temporária (Edna Millay).
O seu desprezo pelo mundo acadêmico não impedia que chegassem convites constantes para ministrar cursos e palestras ou participar de seminários, aceitando-os quando necessitava urgentemente de dinheiro, embora estabelecesse longos intervalos nessas suas aparições acadêmicas. Entre as décadas de 1940-1950, no auge da fama e reconhecimento público como a maior personalidade literária dos Estados Unidos, porém cansado do assédio promovido por estranhos, sua irreverência veio à tona num cartão que mandou imprimir, onde avisava sobre os pedidos que não poderia atender: “Edmund Wilson sente muito, mas para ele é impossível:/ Ler manuscritos,/ Escrever artigos sobre livros a pedido,/ Escrever prefácios e introduções,/ Fazer declarações para serem usadas publicitariamente,/ Fazer qualquer tipo de trabalho de copidesque,/ Ser juiz de concursos literários,/ Dar entrevistas,/ Dar qualquer curso educacional,/ Dar conferências,/ Dar palestras ou fazer discursos,/ Contribuir ou fazer parte de qualquer simpósio ou de panelinhas de qualquer gênero,/ Contribuir com manuscritos para leilões de caridade,/ Dar exemplares de seus livros para bibliotecas,/ Autografar livros para estranhos,/ Permitir que seu nome seja usado no cabeçalho de qualquer papel timbrado,/ Dar informações a seu respeito,/ Dar autógrafos,/ Dar opiniões sobre literatura ou qualquer outro assunto”. Embora tenha escrito isso, ele não se guiava completamente por esses preceitos, notadamente com referência a seus companheiros de copo e de profissão. Às vezes fazia exatamente o contrário, elevando-os às alturas com sua autoridade de crítico ou intercedendo em favor deles junto a editores de jornais e revistas, para a obtenção de empregos ou divulgação de trabalhos.
Wilson é um crítico que se lê com avidez e fascínio, independentemente de sua não filiação às novidades criticas que foi presenciando em meio século de militância critica, sem adotá-las cegamente, ou assimilando-as à sua maneira, ou ainda adequando-as a seu padrão de crítico humanista e caracteristicamente pessoal, que intercalava argutamente o ensaio biográfico com análises e intrusões psicológicas e temáticas das obras interpretadas. Na crítica social, foi acusado de fornecer um retrato excessivamente benevolente de Lênin, no livro Rumo à estação Finlândia, no qual busca as origens do marxismo-leninismo em suas raízes revolucionárias remotas, em historiadores e críticos como Michelet, Renan, Taine e Anatole France. Em O castelo de Axel, no ensaio “T. S. Eliot”, fez o confronto literário Eliot Pound, com absoluta vantagem para o primeiro como poeta e crítico, talvez uma das melhores passagens da sua crítica.
Contudo, conforme escreveu Russel Jacoby em Os últimos intelectuais (1990), o prestígio crítico de Wilson vinha sendo posto à prova pela academia desde, pelo menos, o primeiro pós-guerra: “Quando um professor lhe solicitou uma bibliografia completa de seus escritos publicados, Wilson compreendeu que sua época e sua geração haviam terminado, ele havia se tornado um objeto de estudo, alguém para se admirar”.
Emund Wilson manteve sua atividades de crítico, leitor infatigável e escritor centrado nas suas próprias vivências até a morte, em 12 de junho de 1972. Nos últimos dias, dedicou-se mais à escrita íntima dos diários, que compartimentam cinco décadas sucessivas a partir de 1919. O escritor Leon Edel, encarregado por Wilson para publicar suas obras póstumas, afirmou que os cadernos do crítico consistiam em 2125 páginas manuscritas de 41 cadernos grossos e encadernados. Talvez a sua maior vingança contra um mundo complexo de relacionamentos conturbados, depois de morto, tenha sido encetar a última palavra, expondo avassaladoramente amigos, parentes, mulheres e inimigos na vastidão de seus diários.


UM POEMA DE WLADÍMIR MAIAKÓVSKI

Wladímir Maiakóvski (1893-1930), foi o poeta que melhor escreveu sobre a paisagem urbana da Rússia nas primeiras décadas do século 20. Seus poemas encontraram um modo adequado de veiculação e expressão no mundo concreto das ruas, praças, cafés, auditórios, cabarés, teatros e fábricas. Os versos urbanos de Maiakóvski não se resumem a apenas descrever ou nomear os objetos do ambiente e da realidade cotidiana. A relação linear e estática mantida entre o homem e que o rodeia é subvertida através de novas configurações imagéticas e metafóricas. Tais objetos adquirem vida e movimento inusitados, aproximam-se e associam-se às vivências humanas, passando a fazer parte, nos termos que a poética logra permitir, do mundo dos seres vivos. Nos momentos de maior fragmentação, aspereza ou dissonância, essa poesia ainda mantém sua beleza e integridade, como quando no caso da utilização dos palíndromos, contrastes e inversões. No poema “De rua em rua”, de 1913, em tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman, alguns destes efeitos podem ser percebidos:

Ru-
as.
As
ru-
gas dos
dogues
dos
anos
sona-
dos.
Nos cavalos de ferro
das janelas das casas que correm
saltaram os primeiros cubos.
Cisnes de pescoços-campanários,
torcei-vos nos fios do telégrafo!
No céu se grava o guache das girafas,
desaviva a ferrugem dos penachos.
Brilhante como truta
o filho]
da leiva sem lavra.
O mágico
puxa
da goela do bonde os trilhos,
oculto pelo mostrador da torre.
Estamos ganhos.
Banhos.
Duchas.
Elevador.
A dor que leva o corpete da alma.
Ao corpo queimam os dedos.
Grites ou não grites
“Eu não queria!” –
ao corte
queimam
os medos.
O vento farpado
arranca
da chaminé
um farrapo de lã esfumaçada.
O lampião calvo
despe voluptuosamente
da rua
uma meia preta.


PARACHOQUES

A paixão é uma dor diluída e efêmera,
remoída ocultada no jorro das veias.


COTIDIANAS

Está chegando a época da grande orgia coletiva que é o carnaval. Poucos conseguem fugir à sua sedução, à sensação de descontração, relaxamento e pique de viver que ele parece proporcionar. Blocos e troças levam ao delírio foliões de todas as idades, que não pensam em mais nada a não ser brincar o carnaval. Em Pernambuco, berço do Galo da Madrugada, antigos sucessos de frevo que passam o ano sem tocar, ou tocam muito pouco, reaquecem quem pula e dança. Maracatus, caboclinhos e papangus definem também uma parcela da festa, principalmente em cidades onde essa tradição é forte, sendo transplantados eventualmente a outros lugares. Escolas de samba desfilam até em São Paulo, cidade austera e avessa à alegria e ao jeito malandro e ladino do povo carioca. A Bahia torna-se a campeã de estilos musicais de repercussão e interesse exclusivo dos baianos. Com a incrível quantidade de álcool que se consome, nos quatro cantos do Brasil, a folia às vezes descamba para a violência, o desregramento e a perda total dos sentidos da realidade. Consome-se também muita droga, que já é bastante consumida cotidianamente, porém com maior acirramento no período carnavalesco. Em outros tempos, era liberado o lança-perfume, mas somente na época da folia. Não há nenhuma festa tão popular como o carnaval, chegando a obscurecer a grande maioria das atividades corriqueiras. Até mesmo os fanáticos pelo futebol desligam-se, ou utilizam o feriado para sair fazendo propaganda gratuita de seus times. As situações mais absurdas podem acontecer no carnaval: alguém pode, por exemplo, trocar a mulher de casa pela cadela de estimação; cafajestes e brutamontes enrustidos podem subitamente se afeminarem; moças que gostavam de rapazes podem se assumir atraídas por garotas. Pode-se perder a roupa, a carteira, o ônibus, o carro e o caminho de casa, não importa: é carnaval. Evoé, Baco!


RELEITURAS

A vida é fêmea – Homero Fonseca. Neste livro de 2000, que perfaz a estreia do autor na ficção, chama logo atenção o título afirmativo, centrado no presente e irônico, pelo óbvio que indica (todos nasceram e nascem de fêmeas). Traduz o presente diferenciado que caracteriza a transitação feminina no mundo urbano, a desenvoltura que cada vez mais as mulheres externam. O tipo de narrativa sugere que os contos podem ser lidos de modo independente uns dos outros, a depender da escolha do leitor. E podem ser lidos também numa sequência normal, linear e lógica de leitura. Quando juntos em bloco, sugerem certa unidade temática que os amarra entre si. Mostram-se também monotemáticos, cujos desfechos (ou a falta deles, que incomoda e desconcerta o leitor) vão se acumulando até formar um todo que espelha a complexidade narrativa que os norteia e identifica em algo maior. Pode-se pensar em “romance disfarçado” ou “novela dissimulada” num corpo de narrativas breves. Todo o exterior é captado pelos diálogos entre mulheres e homens, embutidos em meio ao desenrolar da prosa. Tais diálogos se transformam posteriormente no Grande Diálogo que une os textos, estabelecendo seu sentido narrativo comum e acumulado. São unidos ainda pelo fio temático que contempla a condição feminina a se afirmar num mundo hostil, machista e preconceituoso. O narrador flagra, sem piedade, o homem e a mulher do jeito que eles são: entre o glamour e as fraquezas e fragilidades inerentes a eles, entre a aparência imperativa e segura que externam e a precariedade dos defeitos e misérias aflorantes. Os personagens têm nomes eventuais, ocasionais e soltos em cada narrativa breve, que às vezes se entrecruzam em textos anteriores ou posteriores. O narrador está ocultado e dirige-se principalmente a um “Você”, eliminando toda possibilidade de figuração dos textos em primeira pessoa O ficcionista se distancia de sua criatura mulher, ao mesmo tempo em que expõe, analisa, disseca e desvenda as intimidades de sua personagem, que é uma e todas as mulheres, que é a mulher na busca de emancipação sexual e profissional. No cenário essencialmente urbano do livro, as relações entre homens e mulheres se elastecem, fazendo crescer as possibilidades dos encontros agendados ou fugazes e dos espetáculos noturnos que as cidades oferecem. Na urbe proliferam os objetos externos da civilização e da cultura, da ostentação e do consumismo em lugares como casas, bares, aeroportos, cinemas. A mulher assume facetas diversificadas e ramificações sensuais de sua persona, a depender do parceiro com o qual se envolve – desde o taxista que estuda Belas Artes ao cientista famosos e agressivo; do triângulo amoroso formado com dois amigos próximos ao marido que, ao reconhecer que faz o papel de “Amélia” na relação, rompe o casamento; do executivo que a assedia no local de trabalho ao conde aventureiro e imaginário na Londres de fins do século XVIII. O mundo urbano objetivo e veloz da vida contemporânea explicita e recupera o intimismo franco, liberado e sensual da mulher (ou das diversas mulheres) que atravessam a narrativa (ou as narrativas). É nos meandros desse mundo ramificado, despersonalizado e competitivo que se realiza a eficácia e o alcance do texto de A vida é fêmea.


O ESPELHO

O reflexo no vidro.
A paixão
refreada,

a partida
perdida
num duelo com a vida.

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