ZÉ LIMEIRA, POETA DO ABSURDO
Entre os poucos livros de autor nordestino que alcançaram sucesso de público, certamente está incluído Zé Limeira, poeta do absurdo. Seu autor, o escritor e jornalista Orlando Tejo, paraibano de Campina Grande, nasceu em 1935, porém há bastante tempo vive no Recife. O livro tem como curiosidade flagrante e recorrente, em três textos, o longo relato de sua publicação. Tejo conta como os originais andaram por tantas e numerosas mãos, aponta o envolvimento de um leque considerável de pessoas e instituições, descreve o seu percurso pelos caminhos mais tortuosos e incríveis, até finalmente romper o ineditismo em 1973.
São motivos de sobra para as sucessivas edições do livro o perfil biográfico de Zé Limeira, com sua figura de matuto exótico e inconfundível, além do tom ferino, desdenhoso, irreverente e não raro pornográfico dos versos que sua musa popular lhe ditava. José Limeira (1886-1954), que nasceu e morreu em Teixeira, estado da Paraíba, era um bardo sertanejo despachado e andarilho (consta que nunca se utilizava de automóvel, ônibus ou similares, preferindo andar sempre a pé), que causava sensação por onde passava, naqueles sertões ermos e sempre carentes de novidades, à época sem energia elétrica nas zonas rurais, e portanto, sem aparelhos de TV para tornar menos tediosa a vida dos sertanejos.
Orlando Tejo o retrata de um modo burlesco e característico: “Trajava mescla rústica de um azul vivíssimo a contrastar com o vermelho aceso da flanela que lhe envolvia o pescoço, onde se via um tosco anelão de pedra azul pendurado. Exageradas lentes pretas guarneciam os olhos de carvão líquido ao tempo em que sombreavam o rosto anguloso, dando realce à perfeição dos dentes. Quinze anéis grotescos reluziam nos dedos possantes e ágeis, enquanto dezenas de fitas multicores esvoaçavam nas clavículas da viola festiva, feito bandeirolas ao vento. Não se separava de sua rede-matulão e da bengala de aroeira que mais lembrava uma estaca.” Para o cantador teixeirense, segundo depoimentos de seus apologistas e admiradores, não havia amarras que o contivessem. Nas apresentações que realizava, não diferenciava ambientes rústicos ou sofisticados, tanto fazendo estar a improvisar e cantar os seus versos “destrambelhados” na casa do mais humilde sertanejo, em lugares públicos quaisquer ou na residência oficial de um governador.
Zé Limeira transformou-se em lenda viva, levando com que muita gente chegasse a questionar a sua existência real, especulando se ele não seria apenas uma criação poética e ficcional de Tejo. Houve gente que chegou mesmo a acreditar que Limeira fosse o próprio Tejo, transmutado em alter ego deste. Se estas perquirições ultrapassavam as raias da objetividade pela inclinação especulativa sem suporte concreto, não foram poucos os que caíram nas suas malhas, a exemplo de Ascenso Ferreira. Este engodo foi desfeito posteriormente, quando ficou comprovado que o poeta existia verdadeiramente.
Alguns cantadores o viam como excêntrico, e por isso mesmo era posto um tanto à margem. Em dias recentes, cantadores criaram um mote provocativo, no qual estava implícito o modo desdenhoso como encaravam a poesia limeiriana: “Eu querendo também faço/ igualzinho a Zé Limeira”. Este mote, que não chega a estabelecer um gênero propriamente dito, revela que a “desorientação”, de algum modo proposital, promovida por Limeira em cantorias, incomodava sensivelmente a outros cantadores, fossem eles parceiros do poeta teixeirense ou não. Isto porque cantadores que se batiam com ele irritavam-se com a sua falta de disciplina quanto às normas estabelecidas e consagradas da cantoria. Frequentemente Limeira não respeitava num desafio a deixa do outro cantador na forma de verso isolado ou mote de dois versos, nem o assunto geral da cantoria. E também ao insistir em cantar tendo o disparate como guia, que os cantadores desprezavam, não o considerando como parte da cantoria autêntica, embora eles mesmos cultivassem um lado jocoso, cômico e satírico de improvisar versos.
Zé Limeira, pelo seu próprio senso humorístico e comportamento atípico, cantava apenas o que desejava cantar, sem importar-se com críticas e achaques, nem com o que os outros pensavam. A sua contribuição como poeta popular, veicula-se mais pela deformação intencional e caricata que imprimia às palavras e à linguagem regional. Ao intentar cantar exatamente como falava, tendia fortemente para um lado da chamada poesia matuta. E de outra parte, inclinava-se para as próprias invenções vocabulares e semânticas inusitadas que lembravam raízes da linguagem erudita (“filosomia”, “grodofobia”, “pilogamia”, por exemplo), em consonância com a sonoridade da linguagem oral, numa provocação deliberada a fim de criar o efeito, o chiste e o factóide. A poesia matuta, que já virou uma modalidade do gênero popular, aliada ao disparate e acrescida de uma espécie de “surrealismo brejeiro”, delineiam parte das coordenadas gerais já encontradas ou ainda embutidas na poesia de Zé Limeira.
UM POEMA DE VINÍCIUS DE MORAES
Marcus Vinícius de Melo Moraes (1913-1980), poeta, compositor e boêmio carioca, começou escrevendo poesia mística e religiosa para depois assumir as facetas de poeta lírico-amoroso e politizado. Indiferente às inovações promovidas pela Semana de 22, Vinícius dedicou-se a formas consideradas antigas como a balada e o soneto, tendo escrito versos impecáveis a partir dessas estruturas poéticas. O soneto em decassílabos “Soneto de quarta-feira de cinzas”, é daqueles em que o poeta exercita um lirismo de alta rotação, permeado de antíteses e paradoxos (“Por não te possuir, tendo-te minha”), e caracterizado por uma sonoridade que se manifesta ininterrupta e em cascata, a cada verso construído. Exprime o modo relacional entre o efêmero e o que se eterniza, o que se introduz no cotidiano e o que toma ares de cosmicidade e infinitude. O branco se sobrepõe ao branco, o tudo se confronta ao nada, a “simples aventura” abre um fosso na inconstância e na inconsequência amorosa:
Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada
Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada
Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura
Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.
PARACHOQUES
Não é justo se fazer uma separação radical
entre o trabalho que usa a mente e o manual.
COTIDIANAS
A TV Globo entra no ar com a décima versão do Big Brother Brasil. O apresentador Pedro Bial, jornalista e escritor, procura encetar uma versão algo intelectual ao programa. Mas esbarra nas diretrizes e intencionalidades globais e no nível cultural visivelmente sofrível dos participantes, chamados também de confinados. E o propósito do programa obviamente não é esse. O reality show estimula o ócio com luxo e lucro, a vida boa e aparentemente despreocupada que tem como modelo os ricos e a distribuição de prêmios caros como automóveis, viagens de helicóptero e eletrodomésticos. Nada disso, contudo, é conseguido de graça, pois há provas estafantes, de enorme sacrifício, humilhantes até. Aqueles que se candidatam imaginam apenas superficialmente e de longe o que os espera. No geral, a turma atravessa o tempo de reclusão vigiada fazendo exercícios físicos, dormindo, tomando banho de piscina, comendo ou jogando conversa fora. Muitos brothers não têm coragem nem de lavar o prato em que comem. Festas temáticas semanais são regadas a muito álcool, bate-papo, cerco sensual e dança. Toda semana é formado um paredão com o sacrifício de um deles, às vezes mais de um têm a cabeça cortada. Em certos instantes e ocasiões o clima é de insídia, traição, conspiração e espionagem. O efeito competitivo está sempre e invariavelmente presente no ar. Afinal, todos brigam por 1 milhão e meio de reais. Não é pouca coisa, num país em que parcela significativa da população vive pobremente e intenta ainda aplicar a máxima de se levar vantagem no que e onde se puder. Um alto merchandising de importação completa este breve quadro.
RELEITURAS
O estrangeiro (L’Étranger) – Albert Camus. Primeiro romance de Camus (1913-1960), saiu em 1942 na França. Em tradução para o português de Valerie Rumjaneck, narra a história de Mersault, pequeno empregado de escritório que leva uma vida sem maiores novidades, até que comete um crime. É certo que a sua maneira de encarar a vida e o mundo foge ao senso comum, pelas questões que propõe e pelas respostas que emite, em tom demasiado sincero e provocativo. Mesmo no dia da morte da própria mãe, desconcerta aqueles com quem chega a trocar algumas palavras. Posteriormente acusam-no de frio e indiferente, por não demonstrar nenhuma emoção visível durante o velório e o funeral. Marie, a mulher que se faz sua, não escapa à perplexidade e ao espanto de saber que, para ele, o amor não teria grande importância. O absurdo da narrativa atinge o clímax quando ele se recusa a defender-se do assassinato de um árabe numa praia argelina, por um motivo inusitado e, para muitos, incompreensível. No julgamento, Mersault alega que o impulso para puxar o gatilho deveu-se ao fato de o sol estar muito quente. O personagem central tinha um “coração cego” e um ateísmo militante que, contudo, não o impediam de detectar a luz em todos os momentos dos dias e noites vividos. A sociedade francesa, sustentada na lei e nos valores religiosos, exigia a sua condenação, cuja sentença ao ser pronunciada fez com que ele desviasse o olhar de todos os que o observavam no tribunal: “Não olhei para o lado de Marie. Aliás, não tive tempo, pois o presidente me disse, de um modo estranho, que me cortariam a cabeça, numa praça pública, em nome do povo francês”. Sem abrir mão, em nenhum instante, de suas convicções, que envolviam por dentro a capacidade individual de não aceitar este mundo como ele é ou se mostra, enquanto espera solitariamente seus algozes, será capaz de estabelecer o seguinte monólogo final: “Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”. Camus propõe um enigma entre o claro e o subliminar, para a gênese do “estrangeiro”: se Mersault, permanentemente inadaptado, revoltado e mergulhado em questões existenciais, ou se o árabe inominado, morto talvez por ser um estranho e um invasor no país de França.
DUAS VARIANTES DO RISO FEMININO
O sorriso da pequena princesa
se aflora em luz livremente;
numa mescla de fel e tristeza
o sorriso da velha leoa
qual conflito ou parábola à toa
só se mostra aqui raramente.
sábado, 23 de janeiro de 2010
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