terça-feira, 25 de maio de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXIII


O PRÍNCIPE MALDITO:
MAZELAS DA REALEZA BRASILEIRA



Não será novidade para os que fazem a comunidade histórica brasileira alguma notícia sobre o livro de Mary Del Priore, O príncipe maldito, por ocasião de sua reedição recente, no Rio de Janeiro, pela Objetiva. É provável, no entanto, que para muitos leitores que não tiveram imediato acesso ao texto, que perderam a oportunidade de lê-lo ou pelo menos folheá-lo na primeira edição em 2007, resenhá-lo agora sirva para chamar a atenção para alguns pontos e problemas. O fato é que a partir do subtítulo expressivo, Traição e loucura na família imperial, o leitor começa a imaginar o que virá nas suas páginas. E, realmente, a autora corresponde ao que se propôs num relato pungente e apaixonado, numa escrita de quem não mediu esforços para chegar ao seu objetivo, através do conhecimento detalhado do seu objeto. Porque nada parece escapar ao olhar de lince da historiadora.

Infância, internato, viagens, estudos, o privado e o externo são investigados com grande riqueza nominativa e documental através de pesquisa abalizada, exaustiva e segura da maioria dos eventos e relações familiares e sociais que absorveram o príncipe Pedro Augusto de Saxe e Coburgo. “O menino que queria ser rei” titula o primeiro capítulo, que enseja uma visada panorâmica em câmara lenta da chegada do navio Boyne, fazendo retornar o imperador Pedro II de terras europeias, no dia 1 de abril de 1872. O imperador, acompanhado de D. Teresa Cristina e dos netos Pedro Augusto e Augustinho, entra no Rio de Janeiro aclamado, recebido acaloradamente pelas forças aliadas que compreendiam ministros, militares, políticos, comerciantes, acólitos, cortesãos e populares. Fizera a viagem de dez meses para, entre outras coisas, visitar o túmulo da filha Leopoldina na Áustria, que morrera um ano antes de febre tifoide.

O príncipe Pedro Augusto, nascido em 19 de março de 1866, estava com seis anos e trazia esse triste legado da perda da mãe Leopoldina, além da ausência constante do pai Luis Augusto de Saxe e Coburgo, o Gusty, que pensava mais em caçar do que dedicar-se aos filhos. Gusty nutria esperanças de completar o quinto império de príncipes austríacos, alemães e ingleses, através de seu filho Pedro Augusto, que alimentava a possibilidade de expansão dessa dinastia europeia, nos anos em que a aristocracia era substituída pela burguesia em ascensão, cresciam o industrialismo e o comércio com evidências nos sinais de consumismo e de uma nova consciência da classe trabalhadora.

Posteriormente, a convivência conturbada com a tia Isabel e o seu esposo francês Gaston, o conde d’Eu, foram experiências que se somaram e levaram Pedro Augusto a estágios constantes de desequilíbrio emocional. O seu suporte era o avô, o imperador Pedro II, que o protegeu e educou após a orfandade, além de alimentar a ideia de tê-lo como seu sucessor. O imperador incentivava também a princesa Isabel a lutar pela sucessão. Essa posição dúbia de D. Pedro II teria consequências desastrosas para a família imperial e a monarquia. Ela iria permitir uma guerra surda, que duraria muitos anos, entre o neto Pedro Augusto e a princesa Isabel. A conspiração de ambos os lados era flagrante: Pedro fez aliados entre os liberais e até entre os republicanos, enquanto que Isabel tinha a seu favor abolicionistas e a gente da Igreja Católica. A circunstância de ser a filha mais velha do imperador dava-lhe direito constitucional ao trono nas viagens de Pedro II. O seu primeiro filho homem seria o sucessor natural, que nasceria somente em 1875, defeituoso de uma mão e recebendo o cognome real de príncipe do Grão-Pará. Representava uma ameaça a mais aos planos de Pedro de Alcântara, que ficara tão irado, invejoso e ressentido quanto a princesa Isabel, nove anos antes, no momento do nascimento do próprio Pedro.

A carolice da princesa e a assinatura de leis abolicionistas serão suas fraquezas maiores na luta pelo trono, gerando antipatia de uns (políticos, maçons e fazendeiros) e empatia de outros (escravos e católicos). Aliás, a passagem de Deodoro da Fonseca, antes amigo e comandado do imperador, para o lado dos republicanos, foi tida como um ato de vingança e retaliação contra Gaston, genro de Pedro II e marido de Isabel, que lutou na guerra do Paraguai substituindo Caxias, cometeu vários equívocos e deslizes arriscando vidas de brasileiros, tendo, entretanto, voltado como herói.

Uma viagem de Pedro Augusto com os avós à Europa entre 1887 e 1888 revela as suas qualidades de bon vivant, de engenheiro conferencista e colecionador de minerais, do articulador de si próprio visando o reinado brasileiro. Foi recebido pela nobreza do Velho Mundo e chamou a atenção da imprensa por onde passava, que não deixava de registrar positivamente os eventos dessa viagem. Há rumores de um suposto casamento do príncipe e as pretendentes são muitas, mas ele, solitário inveterado, pensando somente em reinar, e mesmo depois de ver frustradas suas aspirações, permanecerá solteiro por toda a vida, não tendo jamais se livrado dos efeitos da ausência do amor materno.

O acompanhamento cronológico da situação histórica da segunda metade do século 19, dos seus eventos políticos, literários e artísticos pelo mundo, autoriza a classificação do livro como literatura de não-ficção. Isso gera, também, efeitos perceptivos de outra ordem, como o deslocamento e a interpenetração de datas, estabelecendo o sincrônico de algumas décadas. Contudo, aparecem momentos em que Del Priore se deixa seduzir pela ficção, ao utilizar recursos desta, apesar de não se afastar totalmente da imagética realista renitente, da metáfora dura dos narradores historiógrafos e da ironia severa decalcada em pontos inesperados do texto. O relato biográfico excessivamente datado e descritivo transcende o histórico em passagens e trechos em que a escritora se aproxima da crônica em fragmentos e instantâneos da ficção, dando lugar a insights narrativos bem característicos do texto literário.

O príncipe maldito tem o mérito de humanizar a família real brasileira, de olhos azuis e ramos mais que misturados, a exemplo dos opostos Orléans e Coburgo. A obra mostra ainda que a estirpe da nobreza era tão mortal e tão suscetível a fatores externos e cotidianos quanto qualquer pessoa que não fizesse parte dos seus círculos fechados e reservados. O leitor, qualquer leitor, especializado ou não, se acaso entrar no embalo da leitura, terá dificuldades em abandonar o livro antes de ter virado a página final.

A loucura do príncipe D. Pedro vai intensificar-se ainda mais após a expulsão da família imperial do Brasil, com a proclamação da República. Tentará o suicídio, será internado em manicômios e clínicas, e falecerá, aos 68 anos, no sanatório austríaco de Tülln. E se aquele leitor optar por conferir depois as páginas pretas em tipos brancos que iniciam o livro, não sem intencionalidades editoriais visíveis, conhecerá as raízes de todas as mazelas do príncipe Pedro Augusto, em convulsão, isolamento e exílio na cabine de um navio em direção à Europa, sinalizadas pela morte precoce da mãe e pela não consecução do trono brasileiro.


UM POEMA DE SEVERO SARDUY

O cubano Severo Sarduy (1937-1993), adotou a escrita do grupo agora menos disperso de poetas e prosadores neobarrocos latino-americanos. O texto que se vai ler encontra-se no livro Jardim de camaleões: a poesia neobarrooca na América Latina (2004), organizado por Cláudio Daniel. O poema “Morandi” foi traduzido por Glauco Mattoso e representa uma espécie de homenagem ao italiano Giorgio Morandi, um inovador da pintura de natureza-morta. Sarduy nomeia os objetos e depois os apresenta nas suas relações com o ambiente, vívidos em sua nitidez e obscuridade, como se partilhassem do movimento e da inércia de todas as coisas. Mostramos a versão bilingue do poema:


MORANDI

Uma lâmpada. Um copo. Uma garrafa.
Sem outra utilidade ou pertinência
que estar ali, que dar à consciência
um casual pretexto, mas não grafa

o traço humano que ora inflama, abafa
a luz ou que ali beba. Em tudo a ausência:
paredes que, caiadas, dão ciência
que ali ninguém repousa nem se estafa.

Somente é familiar a luz acesa
que põe sobre a toalha posta à a mesa
a sombra que se alarga: o dia quedo

do tempo o passo segue em sua vaga
irrealidade. A tarde já se apaga.
Abraçam-se os objetos: sentem medo.


MORANDI

Una lámpara. Un vaso. Una botella.
Sin más utilidad ni pertinencia
que estar ahí, que dar a la consciencia
un suporte casual. Mas no la huella

del hombre que la enciende o que los usa
para beber: todo há sido blanqueado
o cubierto de cal y nada acusa
abandono, descuido ni cuidado.

Sólo la luz es familiar y escueta
el relieve eficaz: la sombra neta
se alarga em el mante. El día quedo


sigue el paso del tiempo con su vaga
irrealidad. La tarde ya se apaga.
Los objetos se abrazan: tienem miedo.


CÉSAR LEAL, CRÍTICO

A obra crítica de César Leal foi publicada em dois volumes intitulados Dimensões temporais na poesia & outros ensaios (2005). que somam mais de 1.100 páginas. Os textos enfeixados no volume 1, às vezes revistos, contemplam ensaios e estudos antigos já publicados em outros livros como Os cavaleiros de Júpiter e A palavra como forma de ação. São republicados estudos memoráveis sobre autores universais e de há muito consagrados como Dante, Thomas Mann, Gil Vicente, Camões. Entre os ensaios sobre brasileiros, Machado de Assis, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Pena Filho. Este volume mantém uma certa coerência sinalizada pelos autores escolhidos, que representam uma linha de pensamento ao nível da competência poética tanto em seus aspectos clássicos como nas incursões pela modernidade.

Os trabalhos mais novos, às vezes inéditos em livro, que mostram uma produção mais eclética, ficaram para o volume 2, com textos sobre artes plásticas, teoria e história literária e ainda um bloco final com diversos poemas-homenagem dedicados a outros escritores ou a amigos do autor. Podem estar juntos, neste volume 2, poetas tão diferenciados e díspares como Ezra Pound e Weydson Barros Leal, Soares Feitosa e Octavio Paz. O fato relevante é que no âmbito da crítica literária ele fez sempre questão de deixar clara sua opção pela crítica de poesia, desde o aparecimento dos primeiros trabalhos em forma de artigos ou conferências na década de 1950. Sob esse ponto de vista, não se esquivou à problematização dos movimentos e tendências críticas mais importantes do passado e do presente – o new criticism, o estruturalismo, o formalismo russo, o impressionismo, o desconstrucionismo. Os preceitos propalados pelos grupos literários que assinam tais tendências o levaram a servir-se de um amplo acervo teórico para utilização analítica e interpretativa no poema, resultando numa propensão para enfatizar mais o efeito dos elementos expressivos do que comunicativos em poesia.

No ensaio “A crítica literária no Brasil”, registram-se afirmações que apenas corroboram o que pensa a respeito de poesia e técnica expressiva: “Na modernidade, o importante no poema não são os seus materiais, mas a técnica expressiva. Compreender um poema é compreender sua forma, sua estrutura linguística, seus sinais, suas obscuridades, pois a poesia moderna está escrita assim e não como desejariam seus críticos, seus autores, os apreciadores e desapreciadores de sua expressão. Expressão do poeta ou expressão do estilo que eles representam. Temos, ainda, de levar na devida conta aqueles críticos sofisticados aprisionados em seus próprios sistemas, ou os que não admitem modificações no cânon das artes”. Alguns autores imprescindíveis para ele, principalmente ingleses, alemães e norte-americanos, podem encontrar-se hoje um pouco afastados das discussões literárias, sendo, no entanto válidos em setores isolados e em compartimentos específicos de suas obras, a exemplo de T. S. Eliot, Ezra Pound, Dr. Richards, E.R. Curtius, René Wellek, e ainda Hegel e sua estética, que aparece constantemente no sistema crítico de César Leal.

No exercício público da crítica, César Leal especializou-se e revelou idéias próprias a partir de suas reflexões e leituras, assumindo a defesa de uma associação poesia-crítica-ciência, com a vinculação do poeta e do crítico às tendências da física de nossos dias, para enriquecer o instrumental científico-literário e humanista de ambos. E isto, para uma melhor compreensão do universo pós-Newton, com o acréscimo da relatividade e da multidimensionalidade do espaço-tempo. Com o elastecimento do universo, seria ideal que o homem também fosse privilegiado com a abertura da sua própria cabeça, com um pensamento que se distanciasse cada vez mais da barbárie e das práticas reacionárias e retrógradas, adquirindo uma visão voltada para o futuro e para a busca de um mundo melhor. Tal percepção cosmológica se sustenta nas mudanças que não poderiam deixar de acompanhar aquelas transformações científicas e tecnológicas socialmente benéficas e suas contribuições ao desenvolvimento, na atualidade do tempo, de um espírito cosmopolita cultivado e culto, amante da poesia e das artes.

A combinação de erudição com um forte estilo argumentativo, não representaria elemento motivador definitivo para que seus desafetos – a quem chama de “filisteus”, e desautoriza pela carga de intuição que demonstram, embora decline de dizer seus nomes – afirmassem que a crítica e a poesia de César Leal seriam excessivamente intelectualizadas. A leitura de seus textos críticos, de um modo geral, se verifica no âmbito da exposição clara e da expressão compreensível, mesmo que alguns assuntos tragam dificuldades imponderáveis para serem explicados e absorvidos. O ensaio curto pode vir iluminado por uma súbita reflexão ali colocada para deleite, informação e também reflexão do leitor.

Outra qualidade de sua crítica é a sinceridade de propósitos que encampa, sem deixar de apontar as fraquezas de concepção ou realização de autores que ele mesmo admira, mas sem se recusar também ao elogio como reconhecimento da excelência textual. Em muitos momentos, César Leal poderá parecer alguém que detém uma boa fatia do saber literário, contudo sem ser partidário de uma prática exclusivista da retenção de idéias e afirmações, fazendo questão de alardeá-las e divulgá-las onde quer que possa chegar o seu alcance. Esta edição comemorativa dos 80 anos do poeta-crítico, organizada por ele mesmo, tem uma função didática irreprimível, pela vasta informação histórica, pelo desempenho teórico sem vacilações e pela responsabilidade das opiniões e julgamentos emitidos, que apenas promovem a ampliação do conhecimento literário, contemplando desde a época dos clássicos até os dias mais recentes.

“César Leal, crítico”, Continente Multicultural, ano VI, nº 61, jan. 2006.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXII

FERNANDO MONTEIRO & ANNA AKHMÁTOVA:
UM DIÁLOGO POSSÍVEL DA POESIA OCIDENTAL

Pode parecer estranho um poeta escrever todo um poema longo estimulado pela visada instantânea e avassaladora de um rosto feminino numa fotografia antiga. A imagem em preto-e-branco deflagra uma viagem ao fundo da herança poética e cultural planetária acumulada, que passa a envolver referências antigas, presentes e em constante progressão resguardadas no seu refluir greco-romano, medievo e iluminista, e somadas aos oráculos orientais nas vastas paisagens de montanha e deserto. Completando esse veio elastecido em verticalidade poética e desdobramento cultural que atravessa os séculos, do 19 em diante são trazidos a lume e em razoável proporção os rumos e descaminhos reinventados e deslindados pela poesia de amor e de guerra no Ocidente.

Antes deste Vi uma foto de Anna Akhmátova, Fernando Monteiro já carregava em seu fazer literário um êxito comprovado por várias obras de ficção e poesia que ultrapassaram as fronteiras locais. A escrita de livros alternando-se numa fatura estética que contemplava certa diferenciação peculiar entre cada um dos volumes lançados, mesmo pensando-se naqueles de prosa seriada. Na elaboração de poesia, cada texto mostrando-se formalmente desvinculado do anterior, o autor não se distanciando da inteireza de seu estilo, permitindo que traços diccionais e itens de linguagem se tornassem reconhecíveis em sua maneira adotada desde os começos.

Para citar sem consulta, lembre-se aqui esse percurso poético a partir de Memória do mar sublevado, sua estreia em 1973, apresentando um canto solene repleto de ancestralidade e dinastia faraônica. Um balanço enviesado de vida pessoal foi Leilão sem pena, publicado na voga pernambucana da Pirata, num tempo de resistência política, culto entusiasmado ao cinema e incursão pelas artes plásticas. Monteiro vai passar por uma experiência de especial inquirição metafísica em A interrogação dos dias. Sem perder de vista o impulso e o empenho empregados no ritmo ágil, mas que às vezes se arrasta, transparente e obscuro ao mesmo tempo, temperado fortemente pelas passagens de melancolia e depressão e pelas tiradas da sensibilidade irônica. E chegará, quem sabe se em simultaneidade, à exatidão centrada na consecução milimétrica de vocábulos, versos e estrofes em cadência matematicamente obsessiva com Ecométrica.

Em Vi uma foto de Anna Akhmátova uma solidariedade surda e rebelada vasculha o lastro histórico de guerras e revoluções repisadas de sangue dos inícios do século 20, trazendo a lume as numerosas e insanas perseguições que sofreram poetas e cidadãos pelos regimes ditatoriais que se locupletavam de sua própria indiscriminação ideológica. A poetisa Anna Akhmátova encontrava-se no rol de censura e cerceamento promovidos pelo Estado russo, que deixou marcas inapagáveis de violência. Os burocratas e dirigentes russos imaginavam que, para a manutenção do regime comunista, seria necessário alinhar ou expurgar os dissidentes, torturando e fuzilando intelectuais, artistas e poetas. Sendo um texto realizado a contrapelo de toda e qualquer tirania, descarta as viseiras da genuflexão política e revela uma faceta social permeada pela constatação corrente, porém sem a amplitude dos resultados práticos, de que qualquer atentado à liberdade do homem sufoca-o e termina por eliminá-lo. Uma opressão sustentada em atos abjetos e excessos de violência difíceis de suportar, faz com que se perca temporalmente a inclinação humana para os desvelos da convivência comum cotidiana e pacífica, na qual, em boa medida, podem ser buscados elos vitais do artístico e do criativo.

A cerveja da Boa Vista não desemboca no chope da Guararapes, e a presença de poetas pernambucanos se afirma indiretamente (Carlos Pena, Bandeira, João Cabral). A inclusão en passant de outros poetas reconhecidos como de alcance nacional reabre velhos problemas, tanto pela absorção questionadora de sentido e matéria abordados, quanto pela negação estética e conceitual que transita nas vias marginais do confronto temático e do modo de expressão de uma época (Drummond e Mário de Andrade). Aqui, na condição interna de leitor crítico, o poeta não resiste e associa sua própria experiência com o poético à experiência desses poetas que se encarregaram de transformar, ao longo de seu tempo, vida em poesia. Há uma transplantação de culturas poéticas em choque para instantes paródicos, miméticos e declinantes únicos, na tentativa de absorção do poema como um todo, afastada do unilateral e aproximada dos sentidos não vistos a olho desprevenido.

Este poema dedicado a Anna Akhmátova, estabelece um diálogo com a poetisa e esmiúça relações pessoais existentes talvez apenas no plano do imaginário da criação. A transferência empreendida flagra sexualidades latentes nas tramas veladas das funções solitárias e desejos indizíveis. Faz aflorar os meandros do prazer algo irracional que consome a sucessão de imagens profusas e apaga os rasgos detalhistas de corpos em solidão ou conjunção carnal, com sua atração irrefreável pelo impossível, o mórbido e o proibido. Morto o corpo, distanciada a alma, os atos se enfronham no presente da imaginação movida pela tremenda insatisfação, compulsão e efemeridade que impulsionam e dominam os jogos sensuais. E Anna vai assumir o papel de Mãe Maior da Poesia, irmã e filha, deusa e mulher, musa e amante.

Fernando Monteiro utiliza largamente esquemas e procedimentos expressivos como associações imagéticas em encadeamentos, enjambements e no palavra-puxa-palavra. Com o sabor diferencial de quem tem fôlego suficiente para manter um ritmo acelerado e eficaz na confecção de recortes, intrusões e incisões no corpo do poema, procura evitar o derramamento baboso e as celulites da fala. Por isso, sua dicção traz uma espécie de contenção cerebral inevitável por ser o autor quem é, por ser quem jamais escondeu sua erudição nem os propósitos de fazer alta literatura.

Neste poema, existem evidências que outros analistas podem facilmente identificar, como os ecos percussivos da “terra arrasada” de Eliot que remetem aos metafísicos ingleses e simbolistas franceses. A visão baudelaireana marginal das ruas que lembram Clarice Lispector e Anna Akhmátova, ambas ucranianas, uma tendo vivido no Recife e a outra fisgada no expressivo da fotografia interna a uma antologia de poesia russa comprada num sebo naquela tarde de setembro de 2001. A aquisição do livro suscita a questão de trocá-lo por cervejas em promoção nos botequins das imediações centrais da cidade, considerando-se a oportunidade de absorver o calor tropical em goles gelados e observando a surpresa indiferente da fauna humana que transita pelos becos, ruelas e praças.

Vi uma foto de Anna Akhmátova não foge da contemplação performática que reconcilia o poeta com o espírito pós-moderno e a alma cósmica. São desencavadas vivências cotidianas e situações particulares somente conhecidas, no andamento da construção do poema, pelo próprio poeta. Paisagens à aparência inalcançáveis e pouco acessíveis a quem está de fora, porém pressentidas em pequenos flashes, que ora se perdem no instante, ora são captadas pela sutilidade da poesia, mesmo que em regime de incompletude. E mesmo que seja assim, o poema continua a ofertar um conjunto de imagens em movimento alternado entre o veloz e o estático. E fornece também uma nova cinética e um novo dinamismo ao olhar que enxerga poesia na escuridão mais cerrada, cuja desfocação persiste sobretudo no encobrimento de estágios sensíveis da fruição humana optante pela não-destruição da vida no mundo.


A MULHER FLUTUANTE

Estavam todos completamente sem ação, todos que ali transitavam naquela hora da manhã sob um sol impiedoso de outubro. Homens e mulheres sem idade e sem rosto, mudos e perplexos ante a cena de transgressão milagrosa que se desenrolava na rua central da cidade. Ônibus, carros de aluguel e de passeio, motos e bicicletas entravam em rota de colisão com seus condutores acionando os freios para melhor ver a mulher. No mesmo passo de perturbação e curiosidade, a gente das lojas, bancas, fiteiros e botequins estancava a venda de roupas, sapatos, sonhos lotéricos, miudezas da ganga pirata, cachaça e cigarros.

Ela começou por acariciar o vestido que parecia feito da conjunção de pedaços de pele de tomate intensamente plástico e vermelho com farelos de carne de cenoura de um amarelo queimado. Contrastando com os raios ofuscantes do sol, o moreno saliente e destacado das coxas, do rosto e dos braços que iniciavam um movimento leve e sutil em direção ao secreto de auréolas e bicos, de pelos agressivos e imantados no seu absurdo brilho e negror, instigando promessas de desvelar e encontrar na caverna aventurosa e sugestiva de paisagens e recantos novos a safira preciosa e ansiada de um mundo cósmico inaugural.

Ela caminhava uns poucos passos e depois parava para contemplar o corpo que era seu pertencimento e danação narcisista, como se não houvesse mais ninguém do lado esquerdo da rua. Não andava, pois seu caminhar era um bailado abençoado por todos os deuses e entidades impossíveis e inimagináveis ou que porventura tivessem existido. Nela tudo era rubro e amarelo, as unhas e lábios flagrados em esmalte e batom, os botões redondos de osso do vestido agora lascivamente aberto, o magnífico corpo flutuante e a presença radiosa, os adereços que ela não precisava para compor sua beleza.

Era um caminhar preguiçoso que descobria quadris ousados e divididos em duas partes simétricas e absolutamente distintas, que encarnavam um complemento de loucura e prazer circulante para a órbita voyeurista no feitio assemelhado da rua. Abriam-se passagens de magia ancestral para um presente demasiado feroz e cruel, onde se entranhavam as duas vertentes oscilando entre o escuro e a luminosidade, ensaiando um mergulho definitivo e fatídico para outras veredas desconhecidas e inusitadas.

O trânsito parado, os pedestres acotovelando-se, a pulso dando o espaço necessário para melhor apreciação do espetáculo da mulher em se livrar de sua nudez parcializada e consentida, evoluindo para uma nudez maior, mais livre e sexualizada. Nela nada poderia agredir quem quer que fosse, naquele instante em que era como um turbilhão de carne que revirava o olhar mendicante dos homens e indignava a visada clínica das mulheres.

Ela era a mulher na inteireza de sua nudez, na simbolização secular do pecado original. E todos, com especial fervor os homens, eram adões que talvez não merecessem doar àquela divindade sensual e carnal os ossos da costela não mais edênica. Porque já estavam impregnados da fuligem urbana da cidade destruída pela lama e sujeira, dos dias e das noites reinventados em carência irremissível por uma imaginação paralisada, debilitada e excessivamente inchada das coisas artificiais.


O ENTREVERO DE LAMPIÃO COM MEIA-NOITE
OU O LIMITE DA TENSÃO NA CAATINGA

I

Sem que naquele instante
de tensão atingindo o limite
no bando de cangaceiros

ninguém tivesse a ousadia
de se pronunciar ou mover-se
um passo ínfimo que fosse

e então sorrateiro ou explícito
mas nunca desavisado
pensasse em intervir ou meter-se

em ingresia tão grossa e certeira
ao intentar demonstrar ou fazer
um gesto qualquer de boca

ou ligeiro usar ao acaso
as mãos e os dedos nervosos
de agilidade feroz e treinada

que nem mesmo no lazer ou repouso
prevenidos não se separavam
do gatilho e da lâmina das armas

para se postar de um lado da briga
e firmar posição ostensiva
de lealdade-defesa-amizade.

II

Depois do ataque a Souza
naquele ano de vinte e quatro
Meia-Noite discutiu feio
com dois dos irmãos Ferreira.

Levino e Antônio tramaram
naquele Agosto agourento
uma enviesada partilha
dos restos do roubo e pilhagem.

III

A desavença está feita
e é preciso a interferência
urgente e destemerosa

do chefe dos cangaceiros:
há uma situação radical
de decisão e bravura,

irrepetível e único
eis um momento total
de ferocidade e loucura.

IV

Definidor é agora o confronto
para a liderança de Lampião
desacatado por Meia-Noite.

Naqueles sertões bravios
o negro desaforado
a vivente nenhum respeitava.

E a autoridade legítima
de Virgulino famoso e cruel
não mais reconhecia ou atestava.

Naquela hora incendida de ira
estavam em xeque as vidas
de homens sem medo da sina.

Na caatinga o vento escondia-se,
as nuvens ficaram paradas no ar
e o Sol recoberto de cinzas.

Lampião está calmo e frio
como o seu punhal preferido
sempre sedento por sangue.

Por ora não pensa em fama,
ouro e dinheiro esquece,
quer apenas resolver o conflito

mesmo sem vocação de pacífico,
pois no seu íntimo admira
a valentia do ousado bandido.

V

Meia-Noite desafia o bando
gritando em alto e bom som
que na cabroeira canalha
ninguém ali é tão macho
para diretamente enfrentá-lo
ou apreender suas armas.

Maria Bonita ainda não conta.
Não apitam Jararaca ou Sabino.
Lampião está lúcido e severo,
porém concentrado e em vigília,
relegando até a vingança paterna
a um plano passado e antigo.

Sabe que Meia-Noite é capaz
de impiedosamente matá-lo.
Do mesmo modo que o negro
tem também Lampião seu destino
na palma das mãos ou nos dedos,
nos desfechos de punhal ou de rifle.

Um irmão morto não será importante
no desafio que o instante lhe impõe.
E contra o protesto mudo do bando
libera o homem sem um arranhão.

In: O cangaço na poesia brasileira: (uma antologia). Seleção e prefácio de Carlos Newton Júnior. São Paulo: Escrituras Editora, 2009.