sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LII

Carlos Pena Filho: 50 anos de memória

Encerrou-se no dia 16 de janeiro último a exposição Carlos Pena Filho: 50 anos de memória. Passaram pelo Santander Cultural cerca de 10.000 pessoas, para apreciar esculturas, pinturas, painéis fotográficos, livros e objetos pessoais do poeta morto precoce e tragicamente. A exposição, promovida pelo governo do estado e executada pela agência publicitária Atma Promo, abrigou eventos paralelos, como a realização de quatro mesas-redondas sobre a obra de Carlos Pena e a visitação de alunos de ensino médio, que dispuseram de apresentação teatral e musical curtas e simultâneas.

As mesas-redondas, todas com a nossa mediação, ocorreram no intervalo de tempo entre os dias 30 de novembro de 2010 e 12 de janeiro de 2011. Na primeira delas, com as palestras irreverentes e bem-humoradas de Ângelo Monteiro e Paulo Gustavo, discutiu-se o lirismo em Carlos Pena Filho como uma das tendências mais fortes e características de sua poesia. A segunda mesa, contando com Marcus Accioly, Irma Chaves e Homero Fonseca, ressaltou a poesia participante de Pena Filho no seu livro Nordesterro, como uma escrita que tematiza de preferência o mundo rural pernambucano em suas vertentes ideológicas e sociais.

No terceiro encontro, os expositores Carlos Newton Júnior e Marco Polo Guimarães dedicaram-se a analisar como a pintura influenciou a obra do poeta de Cinco aparições. Certa empatia com as artes plásticas aparece referencialmente em poemas e sonetos que escreveu, desdobrando-se na ocorrência de cores e paisagens de feitio local ou universal. Aparece ainda, de modo sintomático, na sua forte relação de amizade com pintores do Recife e de Olinda. Além do mais, a pintura já se fazia presente em sua própria casa, sabendo-se que ele foi casado com a artista plástica Tânia Carneiro Leão.

A conversa final teve a participação de Cida Pedrosa e Marcelo Pereira, enfocando o Guia prático da cidade do Recife. Cida Pedrosa recitou trechos do Guia prático, voltando-se mais para a boemia recifense a partir dos anos 1980. Já Marcelo Pereira estabeleceu elos entre a década de 1950 e os dias atuais em termos de configuração urbana e histórica da cidade. O fato é que conseguimos, apesar de todos os contratempos que envolvem hoje os eventos culturais, realizar satisfatoriamente e com afluência de público, a manutenção da memória viva de Carlos Pena Filho no cerne destes quatro encontros.

Diario de Pernambuco, 28 de janeiro de 2011

domingo, 16 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LI

POÉTICA DE MAURO MOTA


A aparição da poesia completa de Mauro Mota veio para suprir uma lacuna de mais de duas décadas na literatura brasileira. O poeta não se dispôs ele mesmo a reunir, enquanto vivo, os livros publicados e o material inédito que guardava. Talvez pela gama de atividades que exercia no cotidiano, como a escrita sistemática de prosa para livro e jornal. Os seus livros de poesia foram sendo editados num intervalo de tempo médio de dois-quatro anos, o que se mostra razoável e não revela descuido ou saturação. E nesta Obra poética – lançada no Recife em 2004 com o selo da Ensol, em convênio com a ABL – o leitor atento não perceberá mudanças substanciais numa poética que já tinha se consolidado desde As elegias em 1952, mesmo com o acréscimo do que se convencionou chamar, no volume, “versos de arquivo”.

Mauro Mota (1911-1984) costuma ser enquadrado na geração de 45, embora parte significativa de seus versos demonstre o contrário, pois na sua trajetória não há fixação numa forma poética ou fase literária específica. Tanto podia representar o poeta passadista do Recife – como também o foram em certa medida Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo – quanto o neomodernista comedido, convivendo sem grandes problemas com a irreverência de um Ascenso Ferreira. Além do mais, numa empatia ao “novo” ou ao supostamente “novo” em poesia, podia se render ao charme do micropoema ou do poemínimo, da escrita coloquial e do texto minimalista. Pelo seu lirismo irreprimível, não mantinha maiores aproximações com João Cabral, ainda que trabalhasse seus poemas levando em conta a aprendizagem e a prática de uma “alta e obstinada lição de rigor, de um rigor que se diria clássico, tamanho é o tributo que paga à austeridade expressiva e ao culto das boas tradições da língua”, como aponta Ivan Junqueira no prefácio à Obra poética.

Os poemas neomodernistas da primeira fase chegam impregnados do Regionalismo em voga no Recife, sobretudo nos anos 20/30 do século passado, sob a liderança de Gilberto Freyre. Nestes poemas, publicados em jornais interioranos, identifica-se um certo sabor provinciano, permeado de intenções e tonalidades agudamente localistas, com uma certa inclinação epigramática, aproximando Mauro Mota do poeta modernista Ronald de Carvalho. Tais poemas se caracterizam ainda pelo humor raro e explícito, algumas vezes ingênuo e piegas. Desta safra são os poemas de Jornal do município, do livro Itinerário, onde um poema condensado e sintético, “Jogo noturno”, se destaca:

          Ilumina-se o campo
          para o futebol na aldeia.
          Aparece a bola branca,
          feita de algodão e meia.
          Meninos poetas jogam
          com a bola da lua cheia.

A poesia que fala diretamente do Recife reflete a condição de pessoas, coisas, paisagens bucólicas e “imagens da água” dentro do urbano, onde se aflora também a imagem reversa de um Recife sombrio e melancólico, senão aburguesado pelas velhas e tradicionalistas famílias que aqui residiam em satisfeitos sobrados contrapostos a rotos e esfomeados mocambos. Ou a visão de um outro Recife cingido pelos saraus literários do Café Lafayette e movimentado pelo footing da rua Nova. O passadismo neste poeta significa um momento de extrema coerência entre sua vida e obra: há uma conexão simbiótica que incrementa, na obra, os elementos vivenciais que perfazem o poeta antigo e com o olhar voltado nostalgicamente para um mundo derrocado, morto e em franca desaparição de seus valores.

No poema-inventário, Guia prático da cidade do Recife, Carlos Pena Filho vai introduzindo os poetas de sua preferência, notadamente os que melhor cantaram o Recife: Manuel Bandeira, João Cabral e Joaquim Cardozo. No fragmento “A lua”, é marcante o traço humorístico, numa referência direta à fama de “comilão” de Ascenso Ferreira; em “Os subúrbios”, o referente é as “tecelãs”, tema caro a Mauro Mota. Aliás, Mauro não foge à poesia social – no seu caso, de vertente humanística – que se manifesta, por exemplo, em dois poemas de O Galo e o catavento (1962), “Cantiga de lavadeira” e “A rendeira”, e no poema “A tecelã”, editado pelo Gráfico Amador em 1956, e posteriormente incluído em Os epitáfios (1959). Em versos de “A tecelã”, a motivação central é a mulher trabalhadora que fabrica, com seu sangue e pele tecidos, estampas e roupas para consumo de outras pessoas, com exclusão dela própria:

          Muito embora nada tenhas,
          estás tecendo o que é teu.

          Teces tecendo a ti mesma
          na imensa maquinaria,
          como se entrasses inteira
          na boca do tear e desses
          a cor do rosto e dos olhos
          e o teu sangue à estamparia.

A partir de Canto ao meio (1964), os poemas de Mauro Mota vão sendo publicados como pequenas reuniões ou breves antologias. Uma das últimas publicações conhecidas, a Antologia em verso e prosa (1982). Quando ele se afasta dos sonetos de linhagem petrarquiana, passa a desenvolver o verso branco e o poema livre, instaurando quebras diversas – no ritmo e nas rimas, na métrica e nos efeitos sonoros de maior ressonância e aplicabilidade, como aliterações e assonâncias. Ao abandonar recursos expressionais de valia comprovada, para aventurar-se no mundo de quem reivindica, acima de tudo, o surto novidadeiro, o engajamento vanguardista e a maldição iconoclasta, Mauro Mota às vezes paga o preço por forçar a mão e a circunstância. E pode vir a ser penalizado também por associar sua performance poética individual, indesejadamente talvez, ao poema que não logrou se realizar artisticamente, ou seja, ao poema que foi concebido e construído como poesia, mas que guarda todas as características da prosa.

(Continente Multicultural, ano IV, nº 47, nov. 2004; aqui, com pequenas alterações.)

sábado, 15 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias L

POEMETO MUITO ANTIGO
À MANEIRA DE MANUEL BANDEIRA

Este poema que assim te dedico
não é luz de manhã ou desvelo carmim:
Tal poema,
                    escuta
se queres,
                 é apenas
resto de sombra,
                            cinza fria,
                                              negra lama enfim...


GRAFITO EM OLINDA

Casas no alto e rasteiras
janelas de olhos atentos.

Cidade entranhada a ladeiras
de margens solícitas violentas.

Rios. Siris. Caranguejos.
Coqueiros com curvas crescentes.

Flama, ouro, cadeia;
Aranha, tesoura e teia
                                    Maligna
de sons e chiados e riscos e dons.

(Poemas, Ed. Universitária da UFPE, 1999)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XLIX

GRAFITO EM RECIFE


Não te provoco - Sei que és violenta
e podes dispor de meu corpo
sem que eu o saiba ou espere.

Não te evoco,
e também
o louvar não te quero -
em meio a falácias e lutas
a viver o delírio dos loucos
e a sonhar num adolescer de destroços
não te rejeito ou refuto, não te renego ou expulso
de mim
ó cidade vadia, cidade maligna, obscura cidade!

Cidade ativa
desenfreada, divina
por onde amo e circulo.

(Poemas, Ed. Universitária da UFPE, 1999)

Notas Cotidianas e Literárias XLVIII


Poesia Digital, a poesia do século XXI, ganhou
uma obra esclarecedora


Jorge Luiz Antonio apresenta um panorama da poesia digital no Brasil e no mundo

Há muitas formas de se fazer poesia nos dias de hoje, mas a que mais fala a linguagem das novas tecnologias é a poesia digital. Em Poesia digital: teoria, história, antologias, Jorge Luiz Antonio traz um panorama da história da poesia digital, desde os seus primórdios, em 1959, até os nossos dias, com as mais avançadas e criativas inovações. O autor mostra como os recursos da informática, aparentemente frios e exatos, podem dar uma nova vida ao universo da poesia, ao levar seus produtores e apreciadores a outros caminhos artísticos dentro da chamada cultura digital.

Para o autor, Poesia digital: teoria, história, antologias é um livro que “estuda um tipo de poesia contemporânea em suas relações com as artes, o design e a tecnologia computacional, que é uma continuação e um desdobramento da poesia das vanguardas, da poesia concreta, visual e experimental”. Segundo o poeta português E.M. de Melo e Castro, a obra traz “claramente a intenção e a ação do autor de realizar uma discussão sobre as razões que podem ser invocadas para o estudo das transformações que o uso das tecnologias estão já a causar no próprio conceito de poesia”.

Poesia digital: teoria, história, antologias é um livro acompanhado de um DVD que reúne uma completa antologia de poemas digitais e seus antecessores, apresentando 501 poemas de 226 poetas e 110 textos teóricos de 73 autores, tanto brasileiros como estrangeiros, com cerca de 1500 páginas impressas e eletrônicas, dando um raro panorama do que já foi feito na área da experimentação poética, tanto no Brasil como no Exterior. O DVD mostra que “poesia, arte, design, ciência e tecnologia digital formam o quinteto transdisciplinar que uma parcela dos poetas contemporâneos escolheu para realizar a sua comunicação poética”, completa Jorge Luiz Antonio.

(Franklin Valverde, ONDA LATINA, São Paulo)

Poesia digital: teoria, história, antologias é uma co-edição da Navegar Editora (São Paulo), Luna Bisontes Prods (EUA), Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP) e Autor.

Sobre o autor: Jorge Luiz Antonio, professor universitário, pesquisador, bolsista FAPESP, pós-doutorando no IEL-UNICAMP, é autor de estudos sobre Cesário Verde e Augusto dos Anjos.

Poesia digital: teoria, história, antologias
de Jorge Luiz Antonio

Co-edição:
FAPESP / Navegar: www.navegareditora.com.br - navegar@navegareditora.com.br
Luna Bisonte Prods: www.johnmbennett.net - bennettjohnm@gmail.com
Autor: http://jlantonio.blog.uol.com.br - jlantonio@uol.com.br
80 páginas + DVD - R$ 30,00 sem despesas postais

Entrevista do autor a Paula Dume (Folha.com) em 7 out. 2010: http://tools.folha.com.br/print?site=emcimadahora&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Ffolha%2Flivrariadafolha%2F810650-poesia-digital-encarna-segunda-vida-da-poetica-segundo-academico.shtml

Notas Cotidianas e Literárias XLVII

RECIFE - PÁTIO DE SÃO PEDRO


Vagabundos na praça.
                                   Pessoas
entoando versículos e loas,
artifícios e ogivas antigos

mercenários mecenas milícias.

Esta cidade com seus teatros,
bares e praias, cinemas amontoados

Luzes incertas e avaras,
parco e raro um povo insofrido,

decadência obscura de pontes e rios,
caminhadas na noite, reencontros e festas

Docas da Avenida Rio Branco,
Compadre Teófilo, amigo e poeta!

Esta cidade com seus poetas
avessos direitos cisneiros.
Pátios afins com requintes de urbe
pós-moderno trans(n)adas futuro.
Mulheres de beleza fatal e morena.
Brinquedos esquivos perdidos espúrios.

(Poemas, Ed. Universitária da UFPE, 1999)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XLVI

POEMA PARCO E TARDIO
A CARLOS PENA FILHO

Estás a me vir nesse instante
Tua voz rara e altiva perpassa
como vento espraiado nas pontes
como água de rio a mover-se nas tardes

Estás a crescer nesse instante
muito além dos rumores urbanos
e pelos mais ermos recantos
através desse tempo e dos anos

Tua voz semovente em teu peito
com impulsão a cidade avançando

Tua voz semelhando um cortejo
pulsando com vida nas veias no sangue.

(Poemas, Ed. Universitária da UFPE, 1999)

Notas Cotidianas e Literárias XLV

Na revista dEsEnrEdoS (ano II - número 6 - teresina - piauí - julho/agosto/setembro de 2010, ISSN 2175-3903), o crítico e ensaísta André Seffrin fez um balanço das obras lançadas em 2009, no segundo semestre, nas várias modalidades literárias, sob o título O ano literário: 2009, segundo semestre. Publicamos a relação dos livros de ensaio literário, na qual temos a honra de figurar com o trabalho Musa fragmentada: a poética de Carlos Pena Filho. Confiram:

O ANO LITERÁRIO: 2009, SEGUNDO SEMESTRE

Por André Seffrin

(...)

No ensaio literário, os títulos de maior importância são inegavelmente O Ajudante de Mentiroso (ABL/Educam), de Lêdo Ivo, e A Clave do Poético (Companhia das Letras), de Benedito Nunes, obras de ensaístas extraordinários, seja pelo tempo de serviço, pela importância do legado e, obviamente, pelo alcance do recado para futuras gerações. E não ficamos aí: Ficções de Um Gabinete Ocidental: Ensaios de História e Literatura (Civilização Brasileira), de Marco Lucchesi, à Luz das Narrativas: Escritos Sobre Obras e Autores (Editora da Universidade Federal da Bahia), de Carlos Ribeiro, A Preparação do Escritor (Iluminuras), de Raimundo Carrero, O Percurso das Personagens de Clarice Lispector (Garamond), de Bernadete Grob-Lima, Do Traje ao Ultraje: Uma Análise da Indumentária e do Sistema de Objetos em Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso (Cesmac/Edufal), de Enaura Quixabeira Rosa e Silva, Passagem de Calabar: Uma Análise do Poema Dramático de Lêdo Ivo (ABL/Topbooks), de Leila Mícollis, A Crônica de Benjamin Costallat e a Aceleração da Vida Moderna (Casa 12), de Andréa Portolomeos, João do Rio e o Palco (Edusp), organização de Niobe Abreu Peixoto, Construções Identitárias na Obra de João Ubaldo Ribeiro (Hucitec), de Rita Olivieri-Godet, Carlos Nejar: Poeta da Condição Humana (Gramma), organização de João Ricardo Moderno, Mário Quintana: Cadernos de Literatura Brasileira (Instituto Moreira Salles), de Antonio Hohlfeldt e outros, Ismael Nery e Murilo Mendes: Reflexos (Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora), de Leila Maria Fonseca Barbosa e Marisa Timponi Pereira Rodrigues, Musa Fragmentada: A Poética de Carlos Pena Filho (Editora da Universidade Federal de Pernambuco), de Luiz Carlos Monteiro, Inteligência com Dor – Nelson Rodrigues Ensaísta (Arquipélago), de Luís Augusto Fischer, O Sermão do Viaduto de Álvaro Alves de Faria (Escrituras), de Aline Bernar, Contramargem II: Estudos de Literatura (Kelps/Universidade Católica de Goiás), de Gilberto Mendonça Teles, Palavra e Sombra: Ensaios de Crítica (Ateliê), de Arthur Nestrovski, O Poliedro da Crítica (Calibán) e O Núcleo e a Periferia de Machado de Assis (Amarilys), de Fábio Lucas, Machado de Assis e a Crítica Internacional (Unesp), organização de Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta, Machado de Assis: Presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), de Alberto Venancio Filho, Joaquim Serra/José Bonifácio, o Moço: Bibliografia dos Patronos (ABL), de Israel Souza Lima, Maranhão-Manhattan: Ensaios de Literatura Brasileira (7Letras), de Marília Librandi Rocha, Gérard de Nerval: A Escrita em Trânsito (Ateliê), de Marta Kawano, O Século de Borges (Autêntica), de Eneida Maria de Souza, e Medidas & Circunstâncias: Cervantes, Padre Vieira, Unamuno, Euclides e Outros (Ateliê), de Cláudio Aguiar, que circulou em 2009 com data de 2008. Sem esquecer as recentíssimas reedições de Exercícios de Leitura (Duas Cidades/Editora 34), de Gilda de Mello e Souza, e O Dorso do Tigre (Editora 34), de Benedito Nunes.

(...)

André Seffrin é crítico e ensaísta. Atuou em jornais e revistas (Jornal do Brasil, O Globo, Manchete, Última Hora, Jornal da Tarde, Gazeta Mercantil, EntreLivros etc.), escreveu dezenas de apresentações e prefácios para edições de autores brasileiros e organizou cerca de quinze livros, entre os quais Inácio, O enfeitiçado e Baltazar de Lúcio Cardoso (Civilização Brasileira, 2002), Contos e novelas reunidos de Samuel Rawet (Civilização Brasileira, 2004), Melhores poemas de Alberto da Costa e Silva (Global, 2007) e Poesia completa e prosa de Manuel Bandeira (Nova Aguilar, 2009).

domingo, 9 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XLIV

ESCRITOR MERGULHADO NO OFÍCIO

Escrever, escrever, escrever: eis a sua fixação e o seu objetivo. Cogita o escritor que não produz de modo contumaz ficção, mas não exclui a possibilidade de desarquivar o que já pensou e ensaiou nesse ramo da prosa em outras e raras ocasiões. Escreve, sim, em maior ocorrência poemas caracterizados pela estranheza causada nos leitores possíveis que creem no seu talento e no seu exercício diário com a palavra.

Recusa-se a escrever poesia em instantes diversos de sua vida, embora nunca haja conseguido deixar de escrevê-la totalmente. Atitude que não representa nenhuma vantagem para o duende da vida prática, que resulta desvirtuado e tateante feito cego em tiroteio. Entretanto, ao escrever mais poesia e crítica do que prosa ficcional, isso não diminui em nada a sua condição de escritor. Sabe que é apenas um a mais entre tantos autores e autoras existentes mundo afora. Aliás, seu ofício diário inclui a leitura desbragada e reflexiva e a escrita em bem menor voracidade.

Não empresta importância ao desempenho ambíguo que conduz à fama rápida e a vendagens em massa, majorado em reconhecimento efêmero e posterior desaparecimento. Não descarta o mergulho nas águas escuras, rasas e superficiais do anonimato. Nem teme também lançar-se nas ondas profundas, serenas e propiciadoras da solidão necessária para ler e escrever. E assim vem fazendo desde menino ainda e na juventude recente, e continuará a fazê-lo na atual e futura maturidade.

Acredita ser altamente recomendável praticar a busca de um sentido ético para a vida no mundo, que tem como consequência direta um lastro histórico e vivencial permeado de renúncias e intervenções. Detesta a covardia, a malícia, a traição e a inveja quais sentimentos reprováveis, espúrios e destrutivos. Dos seus tempos de estudante do ensino médio e universitário, quando militante no Movimento Estudantil, recorda a forte propensão para o debate e a conversa de grupo, a convivência com o diálogo da conciliação ou o manuseio das sementes da divergência. A política profissional em dias posteriores reaquece o fogo da experiência pública in loco na extensão verde litorânea e canavieira. Estende seus elos aos longes de um sertão mágico, violento e ancestral, que há muito vem se desvestindo de raízes, costumes e leis próprias. Compreende a tempo que tais políticas localistas reavivam seus dons e falácias de musas microrregionais ambíguas, impiedosas e inglórias.

A sua preferência nos encontros e embates inclina-se em maior proporção ao ouvir do que ao falar. Mas não nega, à sua maneira discreta ou exaltada, sempre que os eventos e as circunstâncias permitam ou exijam, a manifestação da própria fala. E destila, com o devido cuidado, mesmo que a rapidez o constranja, para apreciação dos outros circunstantes, seu discurso individual de signos e sons bem ou mal articulados em oralidade e escrita no espaço-tempo multidimensional. Referenda que debater ou discutir coisas é das atitudes humanas mais antigas e civilizadas, ainda que descambe, em numerosos casos e oportunidades, para uma agressividade indesejada. Intenta manter certa cota de serenidade nas conversas coletivas, o que demonstra que ninguém deve pensar a priori nos diálogos e embates de origens e intencionalidades diversificadas como atrito ou confusão.

No âmbito da prosa, rabisca textos de variada tendência. A crônica, o diário, a carta. O esboço biográfico, o recorte autobiográfico e o texto de historiografia, além da opinião jornalística. Contudo, vincula-se principalmente à análise e à crítica literária, sem renegar o ensaio de configuração literária heterodoxa em suas diferenciadas modalidades culturais. Pela literatura não se arrepende de ter deixado uma carreira técnica promissora para navegar nas águas incertas do ensino e do serviço público.

Em algum tempo de sua vida, trata de elaborar uma dissertação de mestrado fugindo um pouco ao viés acadêmico consolidado. Durante uma década e meia sua militância na crítica literária em suplementos, revistas e jornais, encontra-o sempre às voltas com livros alheios, a fim de contribuir, de algum modo, para o esclarecimento de determinada obra ou conjunto de obras de uma época. Produz boa quantidade de textos ajustados a uma interpretação literária e contextualizada das obras que chegam a suas mãos, sem apropriar-se da essência do trabalho estético dos autores lidos e estudados em termos de imitação ou rapina.

Mesmo que sua atividade crítica tenha sido acusada de fria, cerebral e dissecadora dos corpos e elementos apodrecidos e empobrecedores da escrita, continua a privilegiar a impessoalidade como uma virtude tão vã e banal quanto o uso egocêntrico em primeira pessoa ou o precário coletivo em terceira. Não se mostra hipócrita ao extremo de não pretender fazer aflorar minimamente que seja seu esforço literário nos meandros estético-formais de linguagem, palavra e signo.

Observa que quem assim não age, quem não aperfeiçoa o que realiza, trabalha contra si mesmo e deve cuidar de esboçar apenas relatórios, gráficos e projetos. Não se associa radicalmente a formas tecnicistas que gozam de uma grande reputação entre os remanescentes de estruturalistas, formalistas, lógicos, construtores, matemáticos, racionalistas, arquitetos e concretistas. Também não cede à hipnose das formas excessivamente impressionistas que, de outro lado, levam a uma opção pela crítica unilateralmente devedora do gosto pessoal, se bem que realizada com mestria e competência em seus moldes europeus e nos momentos elevados dos derivativos brasileiros.

Para o bem ou para o mal, dispondo de pouca ou relativa divulgação, considera-se um escritor. Mesmo falando no escuro ou pregando no deserto, não abre mão da sua condição de amante zeloso e aficionado dos livros e da produção cultural, intelectual e artística que ensejam. E por isso rejeita todo o amadorismo em literatura, a começar pelos erros crassos, abusivos e imperdoáveis de quem não tem intimidade com a escrita. Termina por concluir que o escritor é alguém que pode, voluntariamente ou não, despertar o olhar enviesado e traiçoeiro da inveja. A sua ligação e fidelidade à literatura logra incomodar aqueles que não se dedicam com exclusividade a essa tão exigente senhora.

No redemoinho da criação e da vida literária, defende que o escritor jamais deve adquirir ares de importância que efetivamente não tenha. Imagina que o que determinado grupo de leitores pensa de um autor só raramente vem à tona. Para depois constatar que tal confraria de leitores não identificados fica abstraída de todo o processo criativo, preferindo conferir à distância relances da vida daquele a quem admira e a desfrutar a sua obra já acabada e impressa, sem estabelecer relações de proximidade com o seu autor. Alguns leitores apostam no que ele faz e como o faz, isto é, com a possível honestidade intelectual e aquele sentido ético exigido para que alguém adentre o campo minado, altamente elastecido e ramificado da literatura. E assim tem como metas presentes e futuras trabalhar a escrita com entusiasmo e dedicação, consciência social e estética, além de humildade nas atitudes e ações individuais.

(Recife, janeiro de 2011)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XLIII


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Notas Cotidianas e Literárias XLII

OS AMANTES DESCOBREM SEU ÓCIO



OS AMANTES DESCOBREM SEU ÓCIO

Os amantes descobrem seu ócio
entre orgasmo, prazer, alegria.

Só muitos poetas não vemos
descobrir neste tempo a poesia.


A VOZ LUNAR

A voz lunar que desperta
a compulsão dos desejos.
E a um olhar mais ousado
a boca que avidamente soletra
o arfar delirante da carne,
as delícias comuns de um beijo.


DOIS MOMENTOS DA MESMA NUDEZ

1.

Tua nudez
quando
refletida em si mesma
navega:

Uma luz permeada
com rumor na paisagem
que cega.

2.

Sopro de vida enterrada
nessa sequência de lápides
tua nudez solitária
feito um arquivo de nadas.


MANHÃ

Estendo a ti meu silêncio
nessa manhã que desperta.

Revelas a mim tua crescente
nudez acesa, agreste.


A SESTA

Fantasias eróticas alternam-se
entre o tédio e a abundância

quais labirintos vorazes acesos
de sensualidade e apetência

ou etéreas visões e desejos
da carne em afrodisíaca dormência.


O VIAJAR INCANSÁVEL

O viajar incansável
pelo teu rosto e cabelos.
A perfeição de teu corpo
inviolado, sem máscaras
o teu perfume insondável
e eriçados teus pelos.

Tuas coxas que giram em arco
Bipartido
               palpável
                             não-lapso.

Tuas formas, desvelo, entremeios
quando estás concentrada nas águas
e após este teu banho-volúpia
quando és tão somente tu mesma –

Triangular
                  absorta
                               bivalve

e entrevista em janeiro –
ó visão merecida
ó mirada selvagem
ó visagem dos deuses –
Maravilha de te ter por inteiro.


POEMA (DESVENDADO O MISTÉRIO)

Desvendado o mistério
esvoaçantes teus olhos
a florescer no espaço
no desenlace da tarde:

Abelha rútila
a sugar
o mel dos lábios.

Amante súbita
a singrar
o fel das perdas.


SONETO DESMEMBRADO DA FORMA DE ORIGEM

Há um constante fluir no vazio
cotidiano e presente,
                                 um estio
de verão que só a custo elabora
sua própria paisagem.
                                   Dessa forma,
sob o sol lágrimas já não se retêm
do horizonte,
                      e pelo mar mais além
não há condensação nem vapor.
                                                   Nesta tarde
ouve-se apenas o som sem alarde
das brisas
                  a espalhar seu rumor pelas ondas
na praia
               enquanto nossas vidas se redimem sem pressa
no cristal de um abraço
ansiado
              e o nosso amor então se desdobra
na ardência de um beijo
desde sempre esperado
              e o desejo enfim se consuma
no esplendor de dois corpos
em impulsão e orgasmo.


GESTUAL

Voo em ti
volúpia jasmim
loucura sem fim
sedimentada
nestes teus olhos
de bela infante
multiplicada
neste teu corpo
de nave vagante
reunida às estrelas
antecedida à contemplação.

2

Canto para ti
me envolvo de ti

nestes cubos cinzentos
pelas ruas compactas

nestas ondas maciças
de embalos selvagens

neste mar impulsivo
que revolve tuas águas

3

As longas coxas morenas
descuidadas repousam
no espaço da cama
entre úmidos lençóis
desfolhados orgasmos
a saliva de bocas
os suores e abraços

Ácido o vento
gema e alento
clara e evento
manha odor movimento

Ponte pênsil
pênis duro
peso denso

os peitos expostos
nos descobertos mamilos

os pentelhos içados
e o esperma intenso
que freme que jorra e que vibra

na caverna no bosque a safira
na umidade crispada do sexo
penetrado há bem pouco tempo.

E agora o sinal dessa mão que elabora
os acontecimentos ardentes:
o elastecimento da carne
a tenacidade do nervo
que endurece
novamente.


UMA NOITE NÃO É O BASTANTE

Para que nos amemos sem tréguas
devemos nos conceder sem demora
do tempo que ainda nos resta
todas as noites, segundos e horas.

(Poemas inéditos)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XLI

DA GENIALIDADE ROMÂNTICA


Entre os românticos o gênio
ardente se manifestava
na afirmação da poesia
em coletiva irmandade

e não eram ironias diretas
à distorcida eloquência
ou arremedos discretos
da elegância tacanha

que provocavam às vezes
inclinações desviantes
do borbulhar tresloucado
em malfadados rompantes.

O que o gênio espantava
eram contendas vulgares
e um apego vão e avaro
do que não fosse poesia

(mesmo na solidão se aliava
à causa da gente oprimida
na busca de liberdade e alegria

e nas lutas do povo escolhia
as armas do verbo inflamado
e o discurso da palavra incendida).

O gênio que assim se prezava
preferia a vida boêmia
amava o obscuro da noite

mas não tolerava tiranias
e nem aprovava o açoite
dos indefesos e fracos

e suas brigas raras se davam
no meio dos que o conheciam
somente em favor da poesia.

(Inédito, 2010)

Notas Cotidianas e Literárias XL

A ESTREIA DE ADMALDO MATOS NO ROMANCE


Imagine-se uma cidade de interior onde ocorre a morte inesperada e violenta de uma mulher bonita e de família tradicional, desejada pelos homens e invejada pelas outras mulheres. Tudo passa a girar em torno do episódio, da tragicidade rara que surpreende e envolve habitantes, mobilizando conversas e comentários. O crime se constitui em objeto narrativo deflagrador do romance de estreia de Admaldo Matos de Assis, A muralha e o cavalo (Recife, Bagaço, 2010). Próxima à capital, a cidade oscila no intermédio entre o rural e o urbano e enseja a ambientação na qual os personagens transitam, com seus perfis humanos de caracteres diferenciados.

É aí que entra o aspirante a detetive João Bosco, escrivão de polícia, exercendo a função de delegado interino. Passa a investigar o provável assassinato de Ritinha por envenenamento, sem descartar inteiramente a hipótese de suicídio. E para isso recorre aos recursos possíveis e imagináveis à mão e ao raciocínio de quem se encontra impregnado de ficção policial. Pressionado pela incerteza de sua nomeação, o interino pretende dar o melhor de si. A sua jornada investigativa ultrapassa a cidadezinha e chega à capital Recife. Seu desempenho no caso divide a opinião pública. Ao fim, Bosco, sustentado na ética pessoal e na clareza de propósitos, fracassa. Perde tudo: o emprego, a namorada, o apoio de amigos, restando apenas os parentes próximos. Desiste do suicídio após a morte do pai e reergue-se para a vida.

Este “sucesso” em forma de crime da década de 1950, acontecido ou não, é o elemento motivador da parte I de A muralha e o cavalo, “Morte e mistério”. O leitor, preso nas malhas da surpresa elucidativa sempre adiada, provavelmente relutará em abandonar o livro, que poderia resolver-se, sem prejuízo do restante das páginas, nessa parte inicial. Na parte II, “Vida sem mistério”, o tom oscila entre o ensaístico, o descritivo e o memorialístico, além de ser promovida a atualização e explicitadas as transformações operadas na cidade ao largo do tempo, que tudo leva a crer ser Gravatá, onde o escritor nasceu. A parte III, “Desenlaces”, na qual um João Bosco idoso descobre, por acaso, o assassino de Ritinha, serve como arremate da primeira, mas já sem o impacto desta. Seja como for, Admaldo Matos mostra, com seu romance, a que veio. Trabalha com conhecimento de causa, a partir de enredo e narrativa que funcionam satisfatoriamente, além de estilo seguro e amadurecido. O que é motivo bastante para a recomendação urgente da leitura do seu romance.

Diario de Pernambuco, 27 de dezembro de 2010