sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias IX

EDSON RÉGIS E AS CONDIÇÕES AMBIENTES

O poeta pernambucano Edson Régis de Carvalho, nascido em Timbaúba a 29 de abril de 1923, teve uma morte trágica, violenta, inesperada. O episódio, que envolveu também a morte de um militar, o almirante Nelson Fernandes, configurou-se num atentado a bomba no Recife, no aeroporto dos Guararapes (atual Gilberto Freyre), no dia 25 de julho de 1966. Na ocasião, Edson Régis, na qualidade de secretário de Estado, representava o governador Paulo Guerra na recepção ao marechal Costa e Silva, então virtual candidato a presidente da República, e a quem, de resto, destinava-se a bomba. A autoria da ação não foi ainda totalmente esclarecida.
As principais atividades literárias de Edson Régis estenderam-se à editoração da revista Região e de suplementos literários de jornais de Pernambuco e da Paraíba, além da participação ativa junto à geração de 45. Ele assumiu os preceitos e atitudes dessa geração, levando-os às últimas consequências, permanecendo fiel e ligado a ela enquanto viveu. E assumiu também, na condição de epígono que era, o intenso maneirismo formal, o desértico e acurado senso neoparnasiano de ordem e disciplina em poesia, o espírito corporativista e os eventuais sucessos de uma geração de escritores brasileiros que foi uma das mais combatidas e detratadas.
De dimensão reduzida, a obra desse poeta resume-se a apenas dois livros: “O deserto e os números” (publicado a primeira vez em 1949, no Rio de Janeiro, pelas Edições Orfeu, que editou praticamente todos os poetas da geração de 45) e “As condições ambientes”, que ele não logrou publicar em vida. Em 1971, ambos os livros foram reunidos num único, publicado pela Editora Universitária da UFPE, ostentando uma dupla titulação. Dos seus escritos que não constam deste livro, sabe-se do poema “Lisboa”, que circulava no Recife nas redações dos jornais, nos bares frequentados por intelectuais e através da recitação de amigos.
O poema “As condições ambientes”, contido no livro de título homônimo, é representativo de tematizações e formas poéticas ocorrentes ao longo da escrita de Edson Régis, instaurando, logo na primeira das sete partições que o compõem, a noção de espacialidade urbana que permeia muito do que ele escreveu. Palavras como praça, cidade e mundo, estabelecem relações espaciais visíveis e que se alternam, em sentido crescente e/ou decrescente, a exemplo de praça-mundo (a praça contida no mundo), cidades-passeios públicos (cidades contendo passeios públicos), até retornar novamente à mais abrangente mundo, que por sua vez contém as mesmas praças, cidades e passeios públicos. E o homem-poeta que se situa neste contexto espacializado, que se reafirma como o espaço habitado ou visitado por ele, sente, canta, silencia ou luta em torno às condições ambientes: “Em cada praça do mundo/ Há um poeta sentindo/ As condições ambientes.// Se em algumas cidades/ Ele canta e o seu canto/ É ouvido pelos seus amigos,// Em outras ele está mudo/ Como estão as estátuas/ Nos passeios públicos.// Há uma grande luta/ Travada no mundo/ Que nos reservaram”.
Na parte II do poema, ele apoia-se em um efeito estilístico como a anáfora (largamente empregada por um poeta que fez escola nos anos 30, Augusto Frederico Schmidt, mas ainda hoje corrente e muito aplicada), cujo processo consiste, no caso específico deste poema, na repetição do primeiro verso de cada estrofe, “Sair pela noite”, e do verbo “Considerando”, que inicia o verso final de cada uma das cinco estrofes, como nesta estrofe escolhida: “Sair pela noite/ Como simples humano,/ Vítima de todos os acontecimentos,/ Considerando a morte e o poema definitivo”. Aqui a presença da morte é reforçada pelos “fantasmas de guerra”, mais precisamente do segundo pós-guerra, que o poeta acompanhou e testemunhou. Mas é na parte III que ele não abre mão da sua condição de poeta e da geração a que pertenceu, apegado definitivamente à sua poesia e às formas que a animaram, sem concessões nem constrangimentos, num trecho que guarda semelhanças nítidas com versos do “Cântico negro” do poeta português José Régio: “E porque amo esta poesia, não irei pelos rios/ Que eu não saiba a fonte.
Na IV partição, o “tom profético”, aproximado ao de um Deolindo Tavares, aflora-se com a inserção de um devir – quando ele intenta, de modo delirante e premonitório, a antecipação de acontecimentos que se imaginam iminentes, premonição e delírio que têm muito de especulação e fantasia, mas que também não raro revelam-se e veiculam-se competentemente através da sensibilidade misteriosa que caracteriza os poetas. É feita ainda uma referência ao gênesis que, nos dias tidos como primeiros, caracterizava-se pela harmonia e pelo silêncio, até o surgimento de uma noite que persistiu em alongar-se, como se derivada da escuridão de um poço insondável. O poema finaliza com dois sonetos, um setissilábico (VI) e o outro decassilábico (VII). No primeiro, os movimentos da lua aparecem literalmente nos meses de maio a dezembro, entre a tradição floral e a chegada do ano novo, embora, como o próprio poeta anuncia, num intervalo de tempo que “Não foi mistério nem sonho”. O segundo soneto, de veio platônico e contemplativo, metaforiza a mulher pelo lado da dúvida e da incerteza, a partir de uma visada indecisa e de um desconforto peregrino ou estático entre os caminhos do partir ou do ficar.
O humanismo como visão de mundo com que às vezes se distingue Edson Régis, sem se pensar no seu pendor ideológico de ideário conservador, sinaliza para uma linguagem que se propõe a afixar e situar o homem no âmbito restritivo e limitado da cultura literária. E isto implica numa linguagem e num humanismo peculiares que estão em muito dissociados da vida. Tal humanismo deveria acentuar, de modo incisivo, por outro lado, a ausência de uma perspectiva otimizada e dinâmica da vida, fragmentada nos nossos dias entre a grande parcela de escravos e excluídos e a parcela mínima dos que comandam e usufruem das benesses que inicialmente se destinariam, se não a todos, a pelo menos uma maioria social. Neste sentido, em certos instantes sua dicção faz-se ambígua e confusa, anódina e esterilizada, pela utilização de metáforas e significados que expressam apenas um vago compromisso com uma liberdade indefinida e inominada.
Do lado da comunicação poética, a poesia de Edson Régis sustenta-se quase sempre no seu atentar para a prática de uma linguagem que privilegia a ocorrência vocabular das palavras mais correntes e cotidianas. Ele exprime-se com frequência no seu signo verbal de um modo que um possível leitor, que não precisaria ser necessariamente um iniciado, o entenda.
(In: Suplemento Cultura/CEPE, ano XI, jul. 1997; aqui, com pequenas alterações.)


UM POEMA DE ALMIR CASTRO BARROS

Na produção poética de Almir Castro Barros, mostra-e significativo um poema curto, que leva o título “A um poeta”, constante em Ritmo dos nus (1992):

Os fracos
Num país de ferocidades
Se emprestam de cigarras
Para açoitar pobres cantos
Deveriam conhecer o solitário
Caminho de tímidos lazarentos
E passageiros do cadafalso
Que esquecem a morte
Pela altura de seus voos.

Sendo um poema de nove versos apenas, que se removem no intervalo de duas a dez sílabas, seu característico principal é a economia verbal empreendida (aliás, como a maioria dos poemas de Almir até agora). E isto desemboca numa condensação e rigor que demonstram visivelmente uma preferência especial pela amarração rítmica. Essa amarração rítmica consiste no movimento silábico que se realiza passo a passo, na sequência em que aparecem vogais, consoantes, fonemas e vocábulos em cada verso ou na combinação destes. Podem ser constatados efeitos fonéticos e aliterativos na disposição de rimas extremamente flexíveis e aparentemente casuais, em vocábulos como “fracos”, “ferocidades”, “cigarras”, “solitário” e “cadafalso”.
Em termos de conteúdos, os “fracos” de que fala o poeta diferem fundamentalmente dos “tímidos lazarentos” e dos “passageiros do cadafalso”. Ao fazer o contraponto com “país de ferocidades”, gerando uma antítese brusca e inesperada, esses “fracos” travestem-se de “cigarras”, onde o som estridente e retumbante que alardeiam, insinua-se por trás da metáfora entrevista, e completa-se no açoite a “pobres cantos”. O que o poema sugere ainda, de um modo até certo ponto literal, é o desconhecimento que os “fracos” teriam do “caminho” por onde transitam aqueles “tímidos lazarentos” e “passageiros do cadafalso”.
Desconhecimento, ignorância ou indiferença que reforçam as ideias de anulação e marginalidade, neste caso representadas pelo anonimato e pelo estrangulamento da voz solitária do poeta. Mas, é exatamente essa obscuridade que torna a poesia paradoxalmente luminosa, incitando-a a abrir seus caminhos nos espaços ermos, escuros e desertos do cenário urbano desumanizado, ou na paisagem ecológica desolada de um mundo rural em conflito ideológico permanente e acirrado nos nossos dias.
Se neste poema os estigmas da opressão indiscriminada e da exclusão social servem de carapaça aos poetas, estes talvez não pretendam render-se à sanha dominadora de outros homens, ou às circunstâncias um tanto inesquiváveis e imprevisíveis da vida, que exigem uma adaptação cotidiana e continuada da morte. É de admitir que a morte se faça esquecida, distanciada ou ausente apenas nos raros momentos em que o poeta se predispõe a trocar a crueza do real pelo sonho, ou a subir àquelas alturas do voo que somente a poesia logra permitir.


PARACHOQUES

A literatura às vezes é vaga, entedia
mesmo a quem luta com ela todo dia.


COTIDIANAS

Completados os seus oito anos, o menino pode fazer a primeira comunhão. No dia programado, chega à igreja com grande atraso. Teme ser castigado por isso, o que para ele é quase uma certeza. Seus pais não perdoam a desobediência e o desvio, nem nas datas de festas e eventos religiosos. Não há trégua possível na educação que lhe é imposta. Mas não reclama, não esperneia, não se importa, aceita o erro cometido como coisa corriqueira. Aliás, isto se repetiria muitas e muitas vezes na sua vida e na escola, embora não fosse mau aluno. Disfarçava-se de bom moço para fazer as maiores presepadas.
Com outros meninos, resolve um dia fugir da cidade. Imprudentemente, sem razão aparente ou motivo plausível. Sabia de antemão que iria receber um castigo duríssimo pela ousadia. Encontrado, apanhou até dizer basta, um basta que seus pais pareciam desconhecer. De outra feita, azucrinou um burrico, açoitando-o até que o animal perdeu a paciência e legou como prêmio ao garoto uma queda memorável e violenta, arranhões e escoriações. O primo, dono do jumento, apenas ria de longe como se aprovando.
Tempo de jogar pião e soltar papagaio, dividir o sucesso da bola Pelé no cheiro do plástico que deixava marcas acintosamente vermelhas em qualquer lugar do corpo onde batesse. Tempo de fabricar carros de lata e compensado, com rodas de madeira compradas na feira do Sábado. Tempo de sessões domingueiras de matinê impagáveis de filmes de faroeste. Ali se trocavam revistas em quadrinhos que os meninos da época chamavam gibis ou guris.
O sentimento de exílio da infância, no prazer da redescoberta de um sol que esbanjava seus raios espalhados e intensos pelas manhãs inesquecíveis, oscilando entre o luminoso e o obscuro. Em toda a arquitetura dos versos do poeta adulto perpassam essas lembranças cinzentas e solares. Feito uma experiência insistentemente lírica, que ele teima em desentranhar dos inícios de sua memória rural e das suas vivências urbanas posteriores.


RELEITURAS

Elegbara – Alberto Mussa. As dez narrativas de Elegbara (2005) do carioca Alberto Mussa têm como medida explícita para o seu entendimento e leitura, o estranhamento e a surpresa. Elas poderiam ser caracterizadas como contos, quando se percebe que a brevidade e a condensação permanecem em primeiro plano. As afirmações sobre fatos, personagens ou situações históricas chegam sempre acompanhadas de seu oposto: a negação, a dúvida e, conforme já tinha observado Antonio Houaiss, a ambiguidade. Os personagens deste livro são imprevisíveis: um degredado judeu da expedição de Cabral que vomita quando lhe é oferecida a hóstia, a mulher vedada, de quem ninguém podia ver o rosto porque buscava a verdade, Elegbara, o detentor do poder (e que significa Exu), Zumbi e Ganga Zumba que vivem em constante embate, Dom Sebastião em Alcácer Quibir ou um capitão-do-mato que se apaixona por uma escrava e é condenado à morte. O flash biográfico se dilui nos enredos histórico-antropológicos, estabelecendo um choque dialético inusitado entre sujeito e objeto, entre mitologia e história. E isso logra deixar o leitor perplexo, mesmo aquele bem-informado. O autor intenta anular as fronteiras entre realidade e ficção, e aí está a grande provocação do livro, embora não devam ser levados demasiadamente a sério todos os eventos e personagens da obra, imaginando-os como absolutamente reais. De modo oposto, renegá-los totalmente seria destruir o caráter de verossimilhança que toda obra ficcional deve trazer em alguma proporção. Resta ao leitor se embrenhar nas páginas de Elegbara e desfrutar do prazer de uma leitura insigne e diferenciada, onde vale mais o que está dito e escrito do que as possíveis especulações acerca do que pode ou não ter acontecido.


UMA ARANHA, SUA TESSITURA

Aquela aranha
instalada em seu reino
tecia seus fios de cinza

suas garras
afiadas, frágeis embora
sustentavam a teia em avanço
no cimo da erva-cidreira.

Nenhum movimento visível
se alguém a espreitava.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias VIII

ZÉ LIMEIRA, POETA DO ABSURDO

Entre os poucos livros de autor nordestino que alcançaram sucesso de público, certamente está incluído Zé Limeira, poeta do absurdo. Seu autor, o escritor e jornalista Orlando Tejo, paraibano de Campina Grande, nasceu em 1935, porém há bastante tempo vive no Recife. O livro tem como curiosidade flagrante e recorrente, em três textos, o longo relato de sua publicação. Tejo conta como os originais andaram por tantas e numerosas mãos, aponta o envolvimento de um leque considerável de pessoas e instituições, descreve o seu percurso pelos caminhos mais tortuosos e incríveis, até finalmente romper o ineditismo em 1973.
São motivos de sobra para as sucessivas edições do livro o perfil biográfico de Zé Limeira, com sua figura de matuto exótico e inconfundível, além do tom ferino, desdenhoso, irreverente e não raro pornográfico dos versos que sua musa popular lhe ditava. José Limeira (1886-1954), que nasceu e morreu em Teixeira, estado da Paraíba, era um bardo sertanejo despachado e andarilho (consta que nunca se utilizava de automóvel, ônibus ou similares, preferindo andar sempre a pé), que causava sensação por onde passava, naqueles sertões ermos e sempre carentes de novidades, à época sem energia elétrica nas zonas rurais, e portanto, sem aparelhos de TV para tornar menos tediosa a vida dos sertanejos.
Orlando Tejo o retrata de um modo burlesco e característico: “Trajava mescla rústica de um azul vivíssimo a contrastar com o vermelho aceso da flanela que lhe envolvia o pescoço, onde se via um tosco anelão de pedra azul pendurado. Exageradas lentes pretas guarneciam os olhos de carvão líquido ao tempo em que sombreavam o rosto anguloso, dando realce à perfeição dos dentes. Quinze anéis grotescos reluziam nos dedos possantes e ágeis, enquanto dezenas de fitas multicores esvoaçavam nas clavículas da viola festiva, feito bandeirolas ao vento. Não se separava de sua rede-matulão e da bengala de aroeira que mais lembrava uma estaca.” Para o cantador teixeirense, segundo depoimentos de seus apologistas e admiradores, não havia amarras que o contivessem. Nas apresentações que realizava, não diferenciava ambientes rústicos ou sofisticados, tanto fazendo estar a improvisar e cantar os seus versos “destrambelhados” na casa do mais humilde sertanejo, em lugares públicos quaisquer ou na residência oficial de um governador.
Zé Limeira transformou-se em lenda viva, levando com que muita gente chegasse a questionar a sua existência real, especulando se ele não seria apenas uma criação poética e ficcional de Tejo. Houve gente que chegou mesmo a acreditar que Limeira fosse o próprio Tejo, transmutado em alter ego deste. Se estas perquirições ultrapassavam as raias da objetividade pela inclinação especulativa sem suporte concreto, não foram poucos os que caíram nas suas malhas, a exemplo de Ascenso Ferreira. Este engodo foi desfeito posteriormente, quando ficou comprovado que o poeta existia verdadeiramente.
Alguns cantadores o viam como excêntrico, e por isso mesmo era posto um tanto à margem. Em dias recentes, cantadores criaram um mote provocativo, no qual estava implícito o modo desdenhoso como encaravam a poesia limeiriana: “Eu querendo também faço/ igualzinho a Zé Limeira”. Este mote, que não chega a estabelecer um gênero propriamente dito, revela que a “desorientação”, de algum modo proposital, promovida por Limeira em cantorias, incomodava sensivelmente a outros cantadores, fossem eles parceiros do poeta teixeirense ou não. Isto porque cantadores que se batiam com ele irritavam-se com a sua falta de disciplina quanto às normas estabelecidas e consagradas da cantoria. Frequentemente Limeira não respeitava num desafio a deixa do outro cantador na forma de verso isolado ou mote de dois versos, nem o assunto geral da cantoria. E também ao insistir em cantar tendo o disparate como guia, que os cantadores desprezavam, não o considerando como parte da cantoria autêntica, embora eles mesmos cultivassem um lado jocoso, cômico e satírico de improvisar versos.
Zé Limeira, pelo seu próprio senso humorístico e comportamento atípico, cantava apenas o que desejava cantar, sem importar-se com críticas e achaques, nem com o que os outros pensavam. A sua contribuição como poeta popular, veicula-se mais pela deformação intencional e caricata que imprimia às palavras e à linguagem regional. Ao intentar cantar exatamente como falava, tendia fortemente para um lado da chamada poesia matuta. E de outra parte, inclinava-se para as próprias invenções vocabulares e semânticas inusitadas que lembravam raízes da linguagem erudita (“filosomia”, “grodofobia”, “pilogamia”, por exemplo), em consonância com a sonoridade da linguagem oral, numa provocação deliberada a fim de criar o efeito, o chiste e o factóide. A poesia matuta, que já virou uma modalidade do gênero popular, aliada ao disparate e acrescida de uma espécie de “surrealismo brejeiro”, delineiam parte das coordenadas gerais já encontradas ou ainda embutidas na poesia de Zé Limeira.


UM POEMA DE VINÍCIUS DE MORAES

Marcus Vinícius de Melo Moraes (1913-1980), poeta, compositor e boêmio carioca, começou escrevendo poesia mística e religiosa para depois assumir as facetas de poeta lírico-amoroso e politizado. Indiferente às inovações promovidas pela Semana de 22, Vinícius dedicou-se a formas consideradas antigas como a balada e o soneto, tendo escrito versos impecáveis a partir dessas estruturas poéticas. O soneto em decassílabos “Soneto de quarta-feira de cinzas”, é daqueles em que o poeta exercita um lirismo de alta rotação, permeado de antíteses e paradoxos (“Por não te possuir, tendo-te minha”), e caracterizado por uma sonoridade que se manifesta ininterrupta e em cascata, a cada verso construído. Exprime o modo relacional entre o efêmero e o que se eterniza, o que se introduz no cotidiano e o que toma ares de cosmicidade e infinitude. O branco se sobrepõe ao branco, o tudo se confronta ao nada, a “simples aventura” abre um fosso na inconstância e na inconsequência amorosa:

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.


PARACHOQUES

Não é justo se fazer uma separação radical
entre o trabalho que usa a mente e o manual.


COTIDIANAS

A TV Globo entra no ar com a décima versão do Big Brother Brasil. O apresentador Pedro Bial, jornalista e escritor, procura encetar uma versão algo intelectual ao programa. Mas esbarra nas diretrizes e intencionalidades globais e no nível cultural visivelmente sofrível dos participantes, chamados também de confinados. E o propósito do programa obviamente não é esse. O reality show estimula o ócio com luxo e lucro, a vida boa e aparentemente despreocupada que tem como modelo os ricos e a distribuição de prêmios caros como automóveis, viagens de helicóptero e eletrodomésticos. Nada disso, contudo, é conseguido de graça, pois há provas estafantes, de enorme sacrifício, humilhantes até. Aqueles que se candidatam imaginam apenas superficialmente e de longe o que os espera. No geral, a turma atravessa o tempo de reclusão vigiada fazendo exercícios físicos, dormindo, tomando banho de piscina, comendo ou jogando conversa fora. Muitos brothers não têm coragem nem de lavar o prato em que comem. Festas temáticas semanais são regadas a muito álcool, bate-papo, cerco sensual e dança. Toda semana é formado um paredão com o sacrifício de um deles, às vezes mais de um têm a cabeça cortada. Em certos instantes e ocasiões o clima é de insídia, traição, conspiração e espionagem. O efeito competitivo está sempre e invariavelmente presente no ar. Afinal, todos brigam por 1 milhão e meio de reais. Não é pouca coisa, num país em que parcela significativa da população vive pobremente e intenta ainda aplicar a máxima de se levar vantagem no que e onde se puder. Um alto merchandising de importação completa este breve quadro.


RELEITURAS

O estrangeiro (L’Étranger) – Albert Camus. Primeiro romance de Camus (1913-1960), saiu em 1942 na França. Em tradução para o português de Valerie Rumjaneck, narra a história de Mersault, pequeno empregado de escritório que leva uma vida sem maiores novidades, até que comete um crime. É certo que a sua maneira de encarar a vida e o mundo foge ao senso comum, pelas questões que propõe e pelas respostas que emite, em tom demasiado sincero e provocativo. Mesmo no dia da morte da própria mãe, desconcerta aqueles com quem chega a trocar algumas palavras. Posteriormente acusam-no de frio e indiferente, por não demonstrar nenhuma emoção visível durante o velório e o funeral. Marie, a mulher que se faz sua, não escapa à perplexidade e ao espanto de saber que, para ele, o amor não teria grande importância. O absurdo da narrativa atinge o clímax quando ele se recusa a defender-se do assassinato de um árabe numa praia argelina, por um motivo inusitado e, para muitos, incompreensível. No julgamento, Mersault alega que o impulso para puxar o gatilho deveu-se ao fato de o sol estar muito quente. O personagem central tinha um “coração cego” e um ateísmo militante que, contudo, não o impediam de detectar a luz em todos os momentos dos dias e noites vividos. A sociedade francesa, sustentada na lei e nos valores religiosos, exigia a sua condenação, cuja sentença ao ser pronunciada fez com que ele desviasse o olhar de todos os que o observavam no tribunal: “Não olhei para o lado de Marie. Aliás, não tive tempo, pois o presidente me disse, de um modo estranho, que me cortariam a cabeça, numa praça pública, em nome do povo francês”. Sem abrir mão, em nenhum instante, de suas convicções, que envolviam por dentro a capacidade individual de não aceitar este mundo como ele é ou se mostra, enquanto espera solitariamente seus algozes, será capaz de estabelecer o seguinte monólogo final: “Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”. Camus propõe um enigma entre o claro e o subliminar, para a gênese do “estrangeiro”: se Mersault, permanentemente inadaptado, revoltado e mergulhado em questões existenciais, ou se o árabe inominado, morto talvez por ser um estranho e um invasor no país de França.


DUAS VARIANTES DO RISO FEMININO

O sorriso da pequena princesa
se aflora em luz livremente;
numa mescla de fel e tristeza
o sorriso da velha leoa
qual conflito ou parábola à toa
só se mostra aqui raramente.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias VII

EDMUND WILSON

Mesmo sendo os Estados Unidos um país de tradição literária recente e derivativa com relação às grandes literaturas do Ocidente, não deixa de ter entre seus escritores personagens de alta relevância artística e forte expressividade cultural. O escritor e crítico literário Edmundo Wilson é um destes nomes definitivamente circunscritos na história da literatura mundial, com uma obra que contabiliza 50 livros subdivididos em diários, romances, contos, peças teatrais, crítica literária e social e poemas. Wilson sabia conduzir-se competentemente em meio a essa multiplicidade de interesses literários. Um de seus raros livros de poesia, de 1929, tem título ironicamente sugestivo (Poets, farewell!) e quase homônimo ao do Drummond final (Farwell). Um de seus romances mais conhecidos, Memória do condado de Hecate, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, rendeu-lhe dinheiro, mas lhe valeu um processo judicial pelas confissões sexuais cruamente expostas e ainda inadmissíveis nos anos de 1940.
Por aqui foram traduzidos outros livros de Wilson, várias décadas após a publicação original nos Estados Unidos ou na Inglaterra, a exemplo de Raízes da criação literária (1965), O castelo de Axel (1967), Rumo à estação Finlândia (1986), Os anos 20 (1987)) e dois mais aproximados aos nossos dias, Manuscritos do Mar Morto e Onze ensaios, este último organizado pelo jornalista Paulo Francis. Sobre sua vida e sua obra, tem-se o breve ensaio crítico Edmund Wilson (1970), de Warner Berthoff e a mais que extensa biografia Edmund Wilson: uma biografia (1997), de Jeffrey Meyers.
Nascido em Red Bank, estado de Nova Jersey, a 8 de maio de 1895, Edmund Wilson Jr. teve atuação mais fecunda no jornalismo e na crítica literária. Empreendia julgamentos que nada tinham de arbitrários, concessivos ou parcializados. A admiração pelos clássicos greco-latinos não os eximia do julgamento certeiro, isento, racional. Wilson não escondia qualidades e nem deixava de apontar defeitos nos autores avaliados. Identificava-se aos refluxos éticos e humanistas do século 18, com sua logicidade e racionalismo reforçados também pela influência paterna.
Com os amigos, podia repentinamente ensaiar rompimentos impiedosos, geralmente sem nenhuma chance de reconciliação posterior. A polêmica Wilson-Nabokov, sustentada após a tradução feita por Nabokov do poema Eugene Onegin, de Pushkin, criticada por Wilson, esfriou uma relação de amizade e correspondência que durara 31 anos. Por outro lado Hemingway, em carta a Wilson, confessou em 1923: “A sua é a única opinião crítica em todos os Estados Unidos pela qual eu tenho respeito”. Não era raro que alguma de suas criticadas passasse a ser mulher legítima (Mary McCarty) ou amante temporária (Edna Millay).
O seu desprezo pelo mundo acadêmico não impedia que chegassem convites constantes para ministrar cursos e palestras ou participar de seminários, aceitando-os quando necessitava urgentemente de dinheiro, embora estabelecesse longos intervalos nessas suas aparições acadêmicas. Entre as décadas de 1940-1950, no auge da fama e reconhecimento público como a maior personalidade literária dos Estados Unidos, porém cansado do assédio promovido por estranhos, sua irreverência veio à tona num cartão que mandou imprimir, onde avisava sobre os pedidos que não poderia atender: “Edmund Wilson sente muito, mas para ele é impossível:/ Ler manuscritos,/ Escrever artigos sobre livros a pedido,/ Escrever prefácios e introduções,/ Fazer declarações para serem usadas publicitariamente,/ Fazer qualquer tipo de trabalho de copidesque,/ Ser juiz de concursos literários,/ Dar entrevistas,/ Dar qualquer curso educacional,/ Dar conferências,/ Dar palestras ou fazer discursos,/ Contribuir ou fazer parte de qualquer simpósio ou de panelinhas de qualquer gênero,/ Contribuir com manuscritos para leilões de caridade,/ Dar exemplares de seus livros para bibliotecas,/ Autografar livros para estranhos,/ Permitir que seu nome seja usado no cabeçalho de qualquer papel timbrado,/ Dar informações a seu respeito,/ Dar autógrafos,/ Dar opiniões sobre literatura ou qualquer outro assunto”. Embora tenha escrito isso, ele não se guiava completamente por esses preceitos, notadamente com referência a seus companheiros de copo e de profissão. Às vezes fazia exatamente o contrário, elevando-os às alturas com sua autoridade de crítico ou intercedendo em favor deles junto a editores de jornais e revistas, para a obtenção de empregos ou divulgação de trabalhos.
Wilson é um crítico que se lê com avidez e fascínio, independentemente de sua não filiação às novidades criticas que foi presenciando em meio século de militância critica, sem adotá-las cegamente, ou assimilando-as à sua maneira, ou ainda adequando-as a seu padrão de crítico humanista e caracteristicamente pessoal, que intercalava argutamente o ensaio biográfico com análises e intrusões psicológicas e temáticas das obras interpretadas. Na crítica social, foi acusado de fornecer um retrato excessivamente benevolente de Lênin, no livro Rumo à estação Finlândia, no qual busca as origens do marxismo-leninismo em suas raízes revolucionárias remotas, em historiadores e críticos como Michelet, Renan, Taine e Anatole France. Em O castelo de Axel, no ensaio “T. S. Eliot”, fez o confronto literário Eliot Pound, com absoluta vantagem para o primeiro como poeta e crítico, talvez uma das melhores passagens da sua crítica.
Contudo, conforme escreveu Russel Jacoby em Os últimos intelectuais (1990), o prestígio crítico de Wilson vinha sendo posto à prova pela academia desde, pelo menos, o primeiro pós-guerra: “Quando um professor lhe solicitou uma bibliografia completa de seus escritos publicados, Wilson compreendeu que sua época e sua geração haviam terminado, ele havia se tornado um objeto de estudo, alguém para se admirar”.
Emund Wilson manteve sua atividades de crítico, leitor infatigável e escritor centrado nas suas próprias vivências até a morte, em 12 de junho de 1972. Nos últimos dias, dedicou-se mais à escrita íntima dos diários, que compartimentam cinco décadas sucessivas a partir de 1919. O escritor Leon Edel, encarregado por Wilson para publicar suas obras póstumas, afirmou que os cadernos do crítico consistiam em 2125 páginas manuscritas de 41 cadernos grossos e encadernados. Talvez a sua maior vingança contra um mundo complexo de relacionamentos conturbados, depois de morto, tenha sido encetar a última palavra, expondo avassaladoramente amigos, parentes, mulheres e inimigos na vastidão de seus diários.


UM POEMA DE WLADÍMIR MAIAKÓVSKI

Wladímir Maiakóvski (1893-1930), foi o poeta que melhor escreveu sobre a paisagem urbana da Rússia nas primeiras décadas do século 20. Seus poemas encontraram um modo adequado de veiculação e expressão no mundo concreto das ruas, praças, cafés, auditórios, cabarés, teatros e fábricas. Os versos urbanos de Maiakóvski não se resumem a apenas descrever ou nomear os objetos do ambiente e da realidade cotidiana. A relação linear e estática mantida entre o homem e que o rodeia é subvertida através de novas configurações imagéticas e metafóricas. Tais objetos adquirem vida e movimento inusitados, aproximam-se e associam-se às vivências humanas, passando a fazer parte, nos termos que a poética logra permitir, do mundo dos seres vivos. Nos momentos de maior fragmentação, aspereza ou dissonância, essa poesia ainda mantém sua beleza e integridade, como quando no caso da utilização dos palíndromos, contrastes e inversões. No poema “De rua em rua”, de 1913, em tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman, alguns destes efeitos podem ser percebidos:

Ru-
as.
As
ru-
gas dos
dogues
dos
anos
sona-
dos.
Nos cavalos de ferro
das janelas das casas que correm
saltaram os primeiros cubos.
Cisnes de pescoços-campanários,
torcei-vos nos fios do telégrafo!
No céu se grava o guache das girafas,
desaviva a ferrugem dos penachos.
Brilhante como truta
o filho]
da leiva sem lavra.
O mágico
puxa
da goela do bonde os trilhos,
oculto pelo mostrador da torre.
Estamos ganhos.
Banhos.
Duchas.
Elevador.
A dor que leva o corpete da alma.
Ao corpo queimam os dedos.
Grites ou não grites
“Eu não queria!” –
ao corte
queimam
os medos.
O vento farpado
arranca
da chaminé
um farrapo de lã esfumaçada.
O lampião calvo
despe voluptuosamente
da rua
uma meia preta.


PARACHOQUES

A paixão é uma dor diluída e efêmera,
remoída ocultada no jorro das veias.


COTIDIANAS

Está chegando a época da grande orgia coletiva que é o carnaval. Poucos conseguem fugir à sua sedução, à sensação de descontração, relaxamento e pique de viver que ele parece proporcionar. Blocos e troças levam ao delírio foliões de todas as idades, que não pensam em mais nada a não ser brincar o carnaval. Em Pernambuco, berço do Galo da Madrugada, antigos sucessos de frevo que passam o ano sem tocar, ou tocam muito pouco, reaquecem quem pula e dança. Maracatus, caboclinhos e papangus definem também uma parcela da festa, principalmente em cidades onde essa tradição é forte, sendo transplantados eventualmente a outros lugares. Escolas de samba desfilam até em São Paulo, cidade austera e avessa à alegria e ao jeito malandro e ladino do povo carioca. A Bahia torna-se a campeã de estilos musicais de repercussão e interesse exclusivo dos baianos. Com a incrível quantidade de álcool que se consome, nos quatro cantos do Brasil, a folia às vezes descamba para a violência, o desregramento e a perda total dos sentidos da realidade. Consome-se também muita droga, que já é bastante consumida cotidianamente, porém com maior acirramento no período carnavalesco. Em outros tempos, era liberado o lança-perfume, mas somente na época da folia. Não há nenhuma festa tão popular como o carnaval, chegando a obscurecer a grande maioria das atividades corriqueiras. Até mesmo os fanáticos pelo futebol desligam-se, ou utilizam o feriado para sair fazendo propaganda gratuita de seus times. As situações mais absurdas podem acontecer no carnaval: alguém pode, por exemplo, trocar a mulher de casa pela cadela de estimação; cafajestes e brutamontes enrustidos podem subitamente se afeminarem; moças que gostavam de rapazes podem se assumir atraídas por garotas. Pode-se perder a roupa, a carteira, o ônibus, o carro e o caminho de casa, não importa: é carnaval. Evoé, Baco!


RELEITURAS

A vida é fêmea – Homero Fonseca. Neste livro de 2000, que perfaz a estreia do autor na ficção, chama logo atenção o título afirmativo, centrado no presente e irônico, pelo óbvio que indica (todos nasceram e nascem de fêmeas). Traduz o presente diferenciado que caracteriza a transitação feminina no mundo urbano, a desenvoltura que cada vez mais as mulheres externam. O tipo de narrativa sugere que os contos podem ser lidos de modo independente uns dos outros, a depender da escolha do leitor. E podem ser lidos também numa sequência normal, linear e lógica de leitura. Quando juntos em bloco, sugerem certa unidade temática que os amarra entre si. Mostram-se também monotemáticos, cujos desfechos (ou a falta deles, que incomoda e desconcerta o leitor) vão se acumulando até formar um todo que espelha a complexidade narrativa que os norteia e identifica em algo maior. Pode-se pensar em “romance disfarçado” ou “novela dissimulada” num corpo de narrativas breves. Todo o exterior é captado pelos diálogos entre mulheres e homens, embutidos em meio ao desenrolar da prosa. Tais diálogos se transformam posteriormente no Grande Diálogo que une os textos, estabelecendo seu sentido narrativo comum e acumulado. São unidos ainda pelo fio temático que contempla a condição feminina a se afirmar num mundo hostil, machista e preconceituoso. O narrador flagra, sem piedade, o homem e a mulher do jeito que eles são: entre o glamour e as fraquezas e fragilidades inerentes a eles, entre a aparência imperativa e segura que externam e a precariedade dos defeitos e misérias aflorantes. Os personagens têm nomes eventuais, ocasionais e soltos em cada narrativa breve, que às vezes se entrecruzam em textos anteriores ou posteriores. O narrador está ocultado e dirige-se principalmente a um “Você”, eliminando toda possibilidade de figuração dos textos em primeira pessoa O ficcionista se distancia de sua criatura mulher, ao mesmo tempo em que expõe, analisa, disseca e desvenda as intimidades de sua personagem, que é uma e todas as mulheres, que é a mulher na busca de emancipação sexual e profissional. No cenário essencialmente urbano do livro, as relações entre homens e mulheres se elastecem, fazendo crescer as possibilidades dos encontros agendados ou fugazes e dos espetáculos noturnos que as cidades oferecem. Na urbe proliferam os objetos externos da civilização e da cultura, da ostentação e do consumismo em lugares como casas, bares, aeroportos, cinemas. A mulher assume facetas diversificadas e ramificações sensuais de sua persona, a depender do parceiro com o qual se envolve – desde o taxista que estuda Belas Artes ao cientista famosos e agressivo; do triângulo amoroso formado com dois amigos próximos ao marido que, ao reconhecer que faz o papel de “Amélia” na relação, rompe o casamento; do executivo que a assedia no local de trabalho ao conde aventureiro e imaginário na Londres de fins do século XVIII. O mundo urbano objetivo e veloz da vida contemporânea explicita e recupera o intimismo franco, liberado e sensual da mulher (ou das diversas mulheres) que atravessam a narrativa (ou as narrativas). É nos meandros desse mundo ramificado, despersonalizado e competitivo que se realiza a eficácia e o alcance do texto de A vida é fêmea.


O ESPELHO

O reflexo no vidro.
A paixão
refreada,

a partida
perdida
num duelo com a vida.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias VI

ATUALIDADE DE JOAQUIM NABUCO

Mesmo levando-se em conta os cem anos passados desde a morte de Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo a 17 de janeiro de 1910, verifica-se que o corpo básico de suas idéias e a força de sua atuação política e intelectual continuam vivos e instigantes. Isto pode ser referendado tanto pelas diversas obras que deixou escritas, nas quais privilegiou a abordagem de temas históricos, políticos e literários, quanto pela ação libertadora que exerceu em favor da Abolição da escravatura.
O campo de ação intelectual de Joaquim Nabuco caracteriza-se, desse modo, por uma escrita fortemente empenhada e com destinação política e histórica definida. Neste sentido, O Abolicionismo aparece como um de seus livros que alia um considerável esforço teórico e uma orientação prática inequívoca, porque claramente dirigido à propagação das suas idéias abolicionistas no Brasil.
A intervenção de Nabuco no espaço histórico-social das transições ocorrentes na época imperial envolvia ainda, de um modo mais incisivo e ampliado, a realização de numerosos discursos. Feitos quase sempre de improviso, tais discursos apresentavam-se ora como retórica política de campanha para deputado por Pernambuco, em comícios e ajuntamentos populares, ora já na condição de eleito, como oratória de luta parlamentar pela erradicação do regime escravagista. E aqui deve ser destacado também o seu papel de incentivador e organizador de sociedades abolicionistas, reunindo militantes e simpatizantes em torno daquela causa, inclusive com o funcionamento, por algum tempo, de uma dessas sociedades em sua própria residência.
Ao voltar-se para uma causa que não era exatamente a mesma de seus pares de aristocracia e origem, ele não permitiu que eventuais incoerências ou possíveis vacilações e instabilidades inibissem seus passos. Determinou para si mesmo uma práxis ética, destemida e consequente de atuação. E alcançou este estágio definidor em sua vida política, quando passou a assumir o confronto e a oposição direta aos representantes do sistema de trabalho escravo.
Em outra instância, logo após a Abolição, enfrentou com dignidade ímpar o fim do regime monárquico, mantendo-se fiel ao Imperador D. Pedro II e aos antigos companheiros monarquistas e liberais do regime deposto. Recolheu-se durante dez anos para dedicar-se aos livros que planejara escrever, a exemplo de Um estadista do Império, biografia de seu pai, o senador Nabuco de Araújo, e Minha formação, relato de suas próprias memórias e vivências pessoais. Este isolamento político não impediria, contudo, que no segundo decênio da República, e em nome de certo sentimento nacionalista, ele servisse ao país na condição de embaixador em Washington.
O fato relevante é que a história recente do Brasil não pode prescindir do testemunho e das reflexões estruturadas por Joaquim Nabuco em livros, artigos ou discursos, em especial nas últimas décadas do século 19. Essa revalidação do seu pensamento sustenta-se, nos nossos dias, principalmente no interesse histórico despertado pelo seu combate sem tréguas à exploração da raça negra. E pela resistência veiculada por ele, no seu tempo, a forças políticas e econômicas demasiado fraudulentas e discriminatórias, identificadas cotidianamente por práticas sociais de exclusão e dominação desenfreadas. No cerne de seu pensamento e concepção de mundo em raízes humanistas, Joaquim Nabuco desde sempre repudiou e combateu tais forças regressivas, que ainda hoje intentam retardar e atingir bastante de perto o desenvolvimento material e intelectual da sociedade brasileira.


BALMACEDA, GOLPE E SUICÍDIO NO CHILE

O livro Balmaceda de Joaquim Nabuco foi publicado em 4ª edição em São Paulo, em 2008, organizado por José Almino de Alencar. Resultante de um conjunto de textos escritos para jornal, onde Nabuco analisava a obra de Julio Bañados Espinosa sobre a saga presidencial e guerreira do estadista chileno José Manuel Balmaceda (1840-1891), tais artigos foram transformados em livro em 1895, no Rio de Janeiro. O trabalho de Nabuco aparece como um misto de biografia concentrada numa época particular e definidora do destino político de Balmaceda e de ensaio histórico que planejava abrir espaço para o parlamentarismo de fins do século 19, de vertente inglesa. Acossado pelos seus próprios ministros conservadores e de orientação parlamentarista, o presidente assiste à rebelião da marinha na costa de Valparaíso, o que o faz encetar um golpe de Estado e declarar a guerra em janeiro de 1891 no Chile. Estes atos o levarão à derrota e ao asilo numa legação argentina. Balmaceda mostrava-se um homem com uma visada no futuro científico e tecnológico americano, ao mesmo tempo em que agia com mão-de-ferro na defesa do presidencialismo. No capítulo “A tragédia”, Nabuco traça com imparcialidade o fim de Balmaceda, que se suicidou a 19 de setembro de 1891, motivado pela perda da guerra e do mandato.
(In: Continente, Ano VIII – Nº 94 – Outubro/2008; aqui, com pequenas alterações.)


UM POEMA DE BERTOLT BRECHT

O poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956) é mais conhecido por seu teatro do que pela poesia que fez. Em ambos, a ênfase maior é dada à vertente política. Contudo, existe o Brecht satírico, o que canta seus amores e as coisas simples do cotidiano, além do que escreveu poemas infantis. Com tradução de Paulo César de Souza, na virada do século foi publicada parte significativa de sua poesia no Brasil, sob o título Poemas (1913-1956). No livro Poemas de Svendborg, no bloco das Sátiras alemãs, encontra-se o poema “A queima de livros”. Mostra a indignação de “um poeta perseguido” que foi excluído da lista de livros a serem queimados. A sua poesia foi solenemente ignorada pelo regime, o que levou o poeta ao descontrole e à desrazão. A ironia está na carta em tom patético que escreveu aos donos do poder, pedindo para ser queimado. Para ele, mais valia ser execrado em inquisição pública do que ser esquecido, mesmo pelos inimigos. E assim para o poeta constituía demérito ser reconhecido popularmente e pelos seus pares, mas não ser considerado “verdadeiro” ou importante pelos seus oponentes. Leia-se o poema:

Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!


PARACHOQUES

Quem aprecia a fofoca, a calúnia e os jogos de maledicência
encontra farto material em sua própria e medíocre vivência.


COTIDIANAS

Um amigo de infância perdeu subitamente a filha numa idade impossível, há coisa de dois meses. Ela estava entrando na casa dos 20 anos. Fui conversar com ele, pouco antes do funeral, e um sentimento inevitável, misto de angústia e impotência, me deixou abalado e sem ação. Não dava obviamente para sentir a dor que o amigo estava passando. A imaginação, nestes casos, torna-se abismo indefinível entremeado de vazio e solidão. A solidariedade, constatei na ocasião, falha quase que totalmente. No silêncio e na mudez é que se pode, mesmo que superficialmente, absorver o que existe de desarrazoado num evento deste porte, de dimensão trágica inexplicável.


RELEITURAS

O velho e o mar (The old man and the sea) – Ernest Hemingway. O clássico de Hemingway (1899-1961) tem mais de 50 edições no Brasil. Fez com que o autor ganhasse mais notoriedade ainda do que já tinha, ao angariar os prêmios Pulitzer (1953) e Nobel (1954). A história do pescador Santiago, traduzida por Fernando de Castro Ferro, não traz apenas um tema edificante, mas expõe a vida de um homem em contato e conjunção com a natureza através do mar, seu grande companheiro, dos peixes, ventos estrelas, brisa, sol e pássaros. Santiago conversa com todos eles a partir de seu próprio monólogo interior e das reflexões aprendidas na solidão oceânica. Após 84 dias sem nada conseguir nas pescarias diárias, defronta-se com um peixe espadarte maior do que o seu barco. A luta entre ambos prolonga-se ao limite extremo, até que Santiago consegue, num esforço inaudito, matá-lo e amarrá-lo na lateral de seu barco. Outra luta começa, agora com os tubarões, que estão ávidos pela carne do peixe. Ao fim, Santiago chega ao porto de sua aldeia com os restos do peixe em forma de carcaça. Todos os atos do pescador são pensados, medidos e avaliados pelo acúmulo da experiência. Para se distrair um pouco, ele pensa nos grandes nomes e times de beisebol norte-americanos. E no único companheiro de pescaria que teve, o menino a quem ensinou todos os segredos da pesca. Santiago irmana-se ao mundo que o cerca, e que lhe ensinou também uma espécie de persistência que pouco se abala e a capacidade de resistir aos mais fortes desafios e entraves propostos no seu cotidiano incomum. Enredo que prima pela economia de personagens, o romance desvela o que pode existir de riqueza interna na vida simples e despojada de um homem que, apesar de precisar da carne dos peixes para viver, ponderava os seus atos e considerava-os como irmãos, companheiros e amigos.


O MORTO DEFINITIVO

A falta que o morto faz
só poderá ser sentida
quando ele morre de fato,

quando se percebe enfim
que demitiu-se da vida
e que já não está mais ali;

e se parente ou adversário,
se amigo-aderente ou afim,
ao fim quase nunca se sabe
quem é que pranteia o seu fim.

E quem se dispôs a encontrá-lo
pelo seu remover-se diário
decerto não tardará a deduzir
que a angústia por isso gerada,

o desespero ou a descrença no sim
não põe panos quentes em nada
e resume-se no irreversível
fato de que ele já não está mais aqui:

Apenas a sua face inerte e gelada
é o mais vívido sinal do seu fim.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias V

A POESIA LÍRICO-HERMÉTICA DE EDMIR DOMINGUES

A transitação literária do poeta Edmir Domingues representa um modelo discreto e arredio de isolamento do ambiente cultural tanto de sua cidade, o Recife, onde nasceu a 8 de junho de 1927, como de outros recantos do país. Esse distanciamento já vem, contudo, tornado-se uma atitude comum a muitos poetas, que se afastam da turbulência de rodas, movimentos e grupos literários por motivos os mais variados. Não é de se estranhar que um poeta de linhagem clássica, com inclinações para o lírico e o hermético, assim se decidisse a proceder, talvez com o intuito de melhor trabalhar e criar.
De outro modo, o recolhimento a uma suposta torre de marfim deriva de motivações às vezes indesejadas pelo poeta. O fechamento e a exclusividade de certos círculos e circuitos literários, a omissão e o silêncio da crítica são elementos definidores neste processo. Nenhum poeta pode avançar no reconhecimento de sua obra sem a devida apreciação de seus pares ou da crítica do tempo. Para o poeta que se aceita e se sente razoavelmente seguro de seu trabalho, são bem-vindos tanto a crítica como o elogio. Mas existem aqueles que reivindicam o elogio somente, e se mostram atingidos em suas veleidades pessoais por alguma observação crítica mais sincera e pertinente.
No caso de Edmir Domingues, nem uma coisa nem outra. O silêncio em torno de sua poesia é quase que absoluto. A ausência de fortuna crítica e a participação infrequente em antologias são fenômenos que desmerecem tais esboços críticos e historiográficos, tanto com relação ao sistema literário brasileiro, como no relativo à intelectualidade local. Na tentativa de minimizar um pouco este descaso, ele mesmo dedicou-se a analisar e tornar mais clara a compreensão de alguns poemas seus. Do lado das exceções, na antologia Presença poética do Recife, organizada por Edilberto Coutinho, pode ser encontrado um dos poemas mais conhecidos de Domingues, “Cidade submersa”. José Paulo Cavalcanti Filho contribuiu também com textos para o não-esquecimento total do poeta, no Jornal do Commercio, inclusive em 2001 fazendo uma homenagem póstuma na qual testemunhava sobre os pressentimentos de morte do poeta: “Sempre que encontrava um amigo, Edmir se despedia como se soubesse que nunca voltaria a vê-lo, e aproveitava para recriminar seu insensato coração – que, segundo ele, não aguentaria muito tempo mais”.
Da geração de Edmir Domingues fazem parte poetas como Carlos Pena Filho, José Laurênio de Melo e Ariano Suassuna. José Laurênio chegou a publicar o livro de poemas Palhano (1950), e há pouco tempo foi contemplado com uma coletânea de poemas publicada postumamente. Nos últimos tempos de vida dedicava-se com afinco à tradução. Suassuna editou em 1999 o livro Poemas, sendo desnecessário falar do sucesso alcançado por ele na dramaturgia e no romance. Ariano sempre procurou inserir nos seus livros e publicar por outros meios, de modo paulatino porém persistente, a poesia que vem escrevendo desde a década de 1940.
Numa premonição que já tivera Carlos Pena, ao lançar o Livro geral em 1959, pouco antes de sua morte, o poeta de “Cidade submersa” também teve o cuidado, pouco antes de morrer em 1 de abril de 2001, de publicar o mais significativo de sua obra. O volume Universo fechado ou O construtor de catedrais (1996), traz uma reunião dos livros anteriormente publicados, além de uma série de poemas inéditos intitulada Outros poemas de várias idades. Aliás, para uma nova publicação, podem ser sugeridas modificações e acréscimos como um índice completo e sem falhas, a cronologia sistemática do poeta e o que porventura ficou de inédito com a família ou amigos. Conhecendo-se que são raros os poetas brasileiros que encontram uma Casa editora que os abrigue e publique sistematicamente, o que teria pelo menos o mérito de estimular a produção individual do poeta e a sua divulgação, com Edmir Domingues não foi diferente. Dividiu-se em algumas editoras do Recife e do Rio de Janeiro. Na ordem de aparição dos livros, são elas, entre extintas e em atividade, Editorial Sagitário, José Olympio, Cepe, Tradição Cultural, Tempo Brasileiro e Edições Bagaço.
O livro de estreia, A rua do vento norte (1952), constitui-se apenas de sonetos, sendo o poeta um mestre nessa forma poética fixa e secular, tão combatida quanto ainda hoje praticada. Apesar da utilização de decassílabos, tais sonetos não são obrigatoriamente rimados, havendo entre eles sonetos brancos com a visibilidade das rimas toantes ou caracterizados pela ausência completa de rimas. No “Soneto Nº I” já se verifica esta ocorrência: “E de espaço e de tempo enfim libertos/ seremos quase pássaros no voo/ inconscientemente sexo e vida/ burlados preconceitos e limite.// Que a verdade foi vinho e foi desmaio/ entre a noite de fumo e de agonia,/ sempre antecipação porque sabíamos/composta em nosso sangue a madrugada.// Sejamos ébrios quando o mundo acabe,/ e bêbedos nos barcos estejamos/ de tímidos e leves quase pássaros.// Que os anjos no verão rindo e cantando/ e nós não voltaremos nem que seja/ para enterrar os corpos logo podres”.
Mais à frente, em Corcel de espuma (1960), os sonetos intercalam-se a poemas de escansão e estrofes variadas. Demonstrando ainda um forte apelo classicizante, foram construídos no bojo de temáticas definidas antecipadamente pelo autor, presentes na maioria dos próprios títulos. Como anunciado no soneto inicial, “esses que são de mim corcéis de espuma/ de quem só sabe azul no contemplá-los”, a tônica a ser desenvolvida envolverá uma imagética fragmentada no voo impossível de “ventos abatidos”, na inútil contemplação de fabulosos céus e no movimento desarrazoado de “mares de procura e desconforto”.
A partir de Cidade submersa e outros poemas (1972 e 1973), há uma frequente tentativa dele em investir em outros metros, e em livrar-se, ao menos temporariamente, das formas fixas, buscando dar maior liberdade à criação. Mas, da leitura geral dos poemas, verifica-se que a sua habilidade poética resolve-se de modo mais satisfatório nos sonetos do que nos poemas de configuração livre, que exigem de um poeta uma grande dosagem de invenção e despojamento.
Contendo três partes, O domador de palavras (1987), mostra a iniciação do autor nas sextinas, entre as quais se destaca a “Sextina da vida breve”. Aqui ele empreende a indagação metafísica da vida e da morte, além de questionar as reais possibilidades e a eficácia da filosofia e da ciência ante a perplexidade da civilização e o desamparo irremediável dos homens: “O que vida será? O que será morte?/ Que haverá que eu não saiba muito em breve?/ A ciência dos homens, por mais lida,/ não decifrou sentidos nesta vida./ Toda a filosofia que se leve/ do mundo vão, nada terá de forte”. Os vocábulos finais de cada verso, palavras-chave da sextina, irão repetir-se nas demais estrofes e assumir também outras variações semânticas.
A opção profissional pelo Direito pouco aparece no texto domingueano. O que significa, de certo modo, uma separação nítida entre a prosaica vida cotidiana e o prazer e a angústia solitária de cometer versos. No entanto, tal separação não se perfaz em ruptura radical, como se comprova nestes versos de “Canção do que fala”, da coletânea Outros poemas de várias idades: “Não importa a Sentença./ Feita do inescrutável,/ imune a todo oráculo.// Ela será, apenas/ a fala da Fortuna”.
O exercício constante e recorrente de formas como o soneto e a sextina, tidas como de difícil consecução em poesia – quando não em elaboração gratuita e espúria –, tende a elevar o poeta à condição do criador que mais permanece. Faz-se importante lembrar que o poeta Geraldino Brasil escreveu, sob influência de Edmir Domingues, algumas sextinas que mereceriam figurar em qualquer antologia que se preze. Mas estes são tempos em que não se sabe quais os critérios que os antologistas estão adotando na escolha de poetas para a feitura de suas coletâneas, que primam sobretudo pela pressa, pelo registro irrefletido ou pelo oportunismo editorial mais deslavado.
No percurso da poesia domingueana, denota-se uma alta influência de Manuel Bandeira, tanto em certas injunções temáticas como no desempenho formal de numerosos poemas, e ainda em mais de uma dedicatória e referência direta em versos ao autor de Libertinagem. O que não permite conferir a Edmir a estatura de epígono apenas, mas o leva a pertencer a essa confraria de poetas líricos e cultores da melhor tradição da poesia ocidental.
Emir Domingues situa-se dentro de uma vertente significativa e cada vez mais rara de poetas que revelam um especial cuidado no trabalho com a forma poética. Pode-se afirmar que na sua poesia o sentido da forma é definidor e inseparável de uma concepção poética que envolve também um tratamento conscientemente radical e eficaz na demarcação de seu estilo e no arranjo fonético de seus versos e poemas. O lirismo daí resultante não se perfaz unilateralmente na repetição demasiado previsível e simplória de determinados modelos e nem se sustenta numa pretensão falseada e maneirosa de intentar ser novo.


UM POEMA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Um dos textos em que João Cabral melhor objetiva e exerce aquela “atenção visual” que programou para si mesmo, é certamente o poema “Pregão turístico do Recife”, do livro Paisagens com figuras, de 1956. Esse poema pressupõe uma dicção afirmativa, referendada pelos verbos ser e poder, que lhe dão sustentáculo. Tomando-se parâmetros lógicos, estaria aqui afastada a categoria do possível. E quanto à categoria do não, ocorrente ao longo de grande parte da poesia de Cabral, funciona como fechamento do poema, fazendo a sua aparição nos dois últimos versos, que se delineiam encadeados e inseparáveis, e além disso, diretamente dependentes dos dois anteriores. O desfecho do poema se dá com uma lição expressiva de contundência e denúncia da morte/vida que apodrece os habitantes das margens do rio. É nesse instante que o poeta deixa de lado a dicção mais centrada nos elementos materiais da paisagem para ir ao encontro do “sujeito motivador” do poema, o homem nordestino. Dedicado ao escritor mineiro Otto Lara Resende, confira-se o poema na sua totalidade:

Aqui o mar é uma montanha
regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos do sul.

Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.

Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura.

E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua marcha quase nula,

e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,

podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.


PARACHOQUES

Para manter o espírito leve, calmo e altivo
é preciso domar o ritual das urgências do dia.


COTIDIANAS

Inacreditável a quantidade de crimes de estupro de que sem notícia todos os dias. Tais crimes sempre existiram, mas permaneciam em surdina, e suas estatísticas não eram tão assustadoras. Não só na cidade grande, no interior também, em especial nas zonas rurais e praieiras. Em certos casos, a vingança é certa, independentemente da condição social e financeira de quem foi estuprado. Se paga o estupro com a morte por pauladas, facadas, tiros ou esquartejamento. Através do linchamento coletivo, que é mais raro, ou de retaliação particular. Há casos que primam pela crueldade, como deixar o órgão do estuprador em sua própria boca ou enfiada uma estaca no seu ânus. Pior ainda, se ele não tiver como resistir ao assédio de outros presos, se trancafiado num presídio. Poucos escapam às sevícias. O estupro atinge principalmente crianças e adolescentes, pelo pouco que guardam de defesa. Mas atinge também gente jovem, madura e idosa, além de meninos. Estupradores podem assumir disfarçadamente a feição desnaturada e doentia de pais, tios, primos, irmãos, padrastos, avós, vizinhos, conhecidos e desconhecidos.


RELEITURAS

Rabo de foguete (Os anos de exílio) – Ferreira Gullar. Esta seção inicia-se com a revisitação de um livro que revelou, no final dos anos 1990, a experiência da clandestinidade no Rio de Janeiro e o exílio vividos por Gullar na década de 1970, por suas ligações ao PCB. A peregrinação do poeta se estende por várias capitais do mundo como Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires. Faz um curso de Marxismo na Rússia e assiste à deposição de Allende no Chile. Desespera-se com a doença recorrente de um filho, vive um amor forte e depara-se com paixões fugazes, alegra-se na companhia solidária de outros exilados, procura simplesmente viver e resistir. Encontra espaço para relatar situações engraçadas, ainda que no ambiente austero das diretrizes partidárias. De espírito questionador, Gullar mostra como jamais aceita verdades prontas e embaladas, causando às vezes pequenos e passageiros constrangimentos para os que estavam sendo treinados para a luta revolucionária em Moscou. Sabe-se, ao fim, que embora Gullar não estivesse imune às perseguições, foi confundido num processo judicial com um líder camponês maranhense homônimo seu. Sem este equívoco, não existiria o Poema sujo, nem ele teria vivenciado situações que somente o fizeram crescer como poeta e cumprir um ciclo de experiências necessárias à literatura memorialística e política de um período histórico de violência e repressão que ainda não foi devidamente encerrado, esclarecido e resolvido.


ESTAÇÃO DE METRÔ

Banal e antiga a canção
que se refaz no presente.

Final de linha,
suor e fila

Espera calor multidão
com nenhum sorriso nos dentes.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias IV

LITERATURA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

Na fronteira estética que delimita o gosto popular e o erudito, encontram-se como produtos específicos ofertados pela indústria cultural, a informação e o entretenimento. Para deleite pessoal exclusivo ou êxtase coletivo e geral, tais objetos da comunicação social e humana estão colocados à disposição e à vista de todos. Eles se encarnam, entre outros, em livros, e-books, revistas, jornais, filmes, discos, programas televisivos e sites da Internet.
O consumidor a quem esta produção é destinada, não logra isentar-se totalmente das injunções e intervenções desse sistema, tendo a seu favor apenas a perplexidade individual que o acomete. E são bem menores as suas atitudes de recusa que de aceitação de um ou outro destes produtos, restando a ele apenas o eventual consolo de uma possibilidade remota de escolha.
Da linguagem falada à escrita, do virtual-imaginário ao visual materializado e concreto, a interligação efetivada entre produtos e consumidores verifica-se a todo instante. E isto acontece num ritmo intenso e acelerado, num ritual globalizado e praticamente impossível de ser digerido na sua totalidade e freqüência.
Mesmo que todos estes objetos da cultura contemporânea interessem bastante de perto aos analistas de plantão, o produto que aqui passa a nos exigir a atenção é justamente o livro. E aqui caberia também a constatação inicial de que são escritos, publicados, vendidos, criticados e resenhados cada vez mais livros e em quantidades sempre crescentes.
Neste boom do mercado editorial, fazem-se presentes, além da figura central do escritor, a figura subterrânea do resenhista, disseminado e espalhado nas redações de jornais e revistas, nos gabinetes de editoras ou nos departamentos de letras das universidades. Os resenhadores de livros existem às dezenas de milhares no planeta, notadamente nos países do chamado Primeiro Mundo. O seu trabalho vertiginoso e ostensivo orienta-se na tentativa de acompanhar a imensa produção despejada diariamente pelo mercado livreiro. Assim é que a figura do crítico tradicional e mandatário torna-se a cada dia mais rara, distando cerca de seis décadas o tempo em que o crítico pernambucano Álvaro Lins foi visto por Carlos Drummond de Andrade como “O Imperador da Crítica”.
No entanto, certos princípios da crítica clássica continuam em voga: a isenção e a honestidade em proclamar julgamentos de obras, e a capacidade de reconhecer e separar uma obra autêntica daquela que não teria nenhuma validade do ponto de vista da qualidade literária. O fato é que a cultura, e mais especificamente a literatura, estão submersas numa imensa variedade de formas, gêneros, discursos e estilos, levando a interpretações e análises as mais diversificadas. Nos meios acadêmicos, por exemplo, certos segmentos da crítica universitária expulsam o homem e a vida de suas digressões e operações excludentes, extremamente particularizadas e tecnicistas, tendo muitas vezes como resultado um trabalho malogrado. Por outro lado, fora dos muros da academia, a dispersão verificada na dissipação de conceitos e na desconstrução de discursos, com exceção óbvias, apresenta-se como a moeda corrente.
Deve-se dizer que moldes inadequados para a análise literária geralmente não esclarecem e nem servem de guia ao leitor numa viagem que o levará a simpatizar ou não com o livro analisado. Mas seja como for, na sua interação inesquivável com o leitor e o autor, através da análise e da indicação de livros, críticos e resenhistas têm a função de decifrar o que está por trás do que se escreveu ou se escreve ao longo dos dias sobre a memória dos séculos, sobre o movimento incessante da vida e do universo, e mais ainda, sobre o esboço histórico, filosófico, científico e poético-ficcional da sociedade humana.


LIVROS EM ALTA NA BRAVO!

A revista Bravo! de novembro/2009 dedicou um quinto de sua páginas (30-49) à literatura. A principal razão para isso foi um excelente perfil do escritor Rubem Fonseca, um recluso assumido. Mas agora, com essa matéria – feita conjuntamente pelo editor João Gabriel de Lima e pelos jornalistas Tiago Petrik e Malu Porto –, muitos leitores brasileiros puderam e podem matar a curiosidade sobre o ficcionista. Um liberal em política, em suas atividades profissionais Fonseca foi policial e executivo de grandes empresas, até deixar tudo para ser apenas escritor. São mostradas suas preferências literárias e pessoais, suas relações de amizade com o general Golbery e, do outro lado da moeda, suas relações controversas com a censura, tendo sofrido perseguições e processos judiciais. O perfil presta-se tanto à leitura informativa e esclarecedora do homem e do escritor Rubem Fonseca, como à pesquisa geral. Quem tem interesse pela cultura e não encontra uma seção de livros numa revista cultural, certamente não voltará a folheá-la nem comprá-la. Não é este o caso da Bravo! na sua orientação editorial mais recente. Longa vida para Bravo!.


SCHILLER

O poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller tinha 36 anos quando publicou, em 1795, vinte e sete cartas que deram origem ao livro A Educação Estética do Homem. Na Carta II, afirmou: “A utilidade é o grande ídolo do tempo; quer ser servida por todas as forças e cultuada por todos os talentos. Nesta balança grosseira, o mérito espiritual da arte nada pesa, e ela, roubada de todo estímulo, desaparece do ruidoso mercado do século”. A utilidade schilleriana vem englobando, através do tempo, não só as expressões artísticas, mas principalmente as manifestações avançadas da tecnologia e do trabalho (atente-se, hoje, para a febre da informática e as múltiplas inserções mercadológicas do lazer e do trabalho informal). A única forma artística que não se enquadrou como utilitária foi a chamada poesia erudita. De outra parte, muitos artesãos e poetas populares conseguem viabilizar e viver da sua produção artística.


PARACHOQUES

Se um inimigo intenta solenemente nos ignorar,
é porque está deveras preocupado conosco.


RECIFE - PÁTIO DE SÃO PEDRO

Vagabundos na praça.
Pessoas
entoando versículos e loas,
artifícios e ogivas antigos

mercenários mecenas milícias.

Esta cidade com seus teatros,
bares e praias, cinemas amontoados

Luzes incertas e avaras,
parco e raro um povo insofrido,
decadência obscura de pontes e rios,
caminhadas na noite, reencontros e festas

Docas da Avenida Rio Branco,
Compadre Teófilo, amigo e poeta!

Esta cidade com seus poetas
avessos direitos cisneiros.
Pátios afins com requintes de urbe
pós-moderno trans(n)adas futuro.
Mulheres de beleza fatal e morena.
Brinquedos esquivos perdidos espúrios.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias III

ANDRÔMEDA LENDÁRIA E REAL

Algo ainda deve restar da menina-adolescente que pedalava alegremente pelas ruas da cidade sertaneja. A bicicleta, o céu e o seu sorriso intensamente azuis. Os seus cabelos transformados em belos e misteriosos fios cósmicos naquela manhã que ficou para sempre demarcada no tempo. Somente o adolescente-menino absorveu aquela energia que se desprendia da sua presença que ofuscava tudo ao redor.
Ambos poderiam encontrar-se e ser encontrados no colégio diário à tarde, mas jamais seriam os mesmos. A iniciação amorosa que se ensejava na ambiência provinciana provocaria descontentamentos e estragos e irremediáveis. O menino, que na sua modéstia pouco se importava com as ambições desmedidas e terrenas de seus pares, desejava-a, contudo, somente para si, numa exclusividade que não permitia interferências.
Algo ainda deve existir daquele corpo em plena maturação de pele, pelos, poros, unhas, veias e vértebras. Feito a fruição corporal que externava os gestos de extrema naturalidade e expulsava o artificialismo que não se exprimisse em palavras de incontida comoção. A preparação estética da beleza que começava na menina e chegou a seu termo tempos depois na mulher adulta.
Corpo em movimento e desejo, prazer do encontro orgástico. Comunhão selvagem e mutação radical da sensualidade pela entrega. Encontro que jamais teve continuidade na sucessão dos acontecimentos vitais. O Ser sem a Outridade, perplexo nos meandros da solidão e nos confins da ausência. O adolescente-menino que se relacionou prodigiosamente com outras mulheres, desfrutando de casos, paixões e amores obscuros e múltiplos.
Algo ainda deve ser redimido no menino que mudou de atividades como quem mudava de roupa. O menino estudante, bolsista, estagiário, professor, militante, assessor, funcionário, revisor, crítico, ensaísta, consultor e julgador de obras aleatórias. E que, ao fim e ao cabo, era apenas poeta. A menina que esteve sempre no topo das atividades brancas, plásticas, socialites, estereotipadas e casamenteiras. A menina-cinderela privilegiada por uma inigualável exuberância de formas dadas pela Natureza.
O menino que se metamorfoseou no poeta atento a um mundo hostil e traiçoeiro. Mundo que não via o seu esmero na arte da escrita poética, o seu zelo e a sua necessidade de produzir e semear poesia. E que veio propiciando seu possível legado a esse mesmo mundo, com sua contribuição individual única e irrepetível. Que não se deixou engessar pelas fronteiras e entraves cotidianos, rendendo-se à liberação do corpo em viagem noturna e onírica.
Algo ainda deve estar vivo e latente na imagem real matutina de mais de três décadas passadas. A esfinge lendária manifesta em corpo e presença, no sorriso azulado que não descartava o encanto fácil, a ironia quebradiça e a sedução enganosa para os incautos. Nada disso pode ter estagnado numa cronologia cruel e devastadora dos dias e das noites escuras e impenetráveis do tempo.


PARACHOQUES

É melhor mudar de posição quando o desconforto
na cama reflete a inquietação da alma e do corpo.


PRIMEIRO POEMA DA PERDA

O que já perdemos
leva-o
o vento,
e o que ansiamos
ainda
traz-nos
o pensamento;
o que já dissemos
pelos dias
esparsos,
nos confins
do espaço
e nesse hoje, no agora
soltemo-lo
às cinzas
do tempo,
neste ermo das horas.


SEGUNDO POEMA DA PERDA

Por qualquer tarde arisca
feito o amor já perdido
Tu fazes da tua vida
o fel, o Nada, o Não, a Notícia


TERCEIRO POEMA DA PERDA

Perdi por meu muito esperar.

Perdi por este meu relutar
e ao fim nada tive a ganhar:

Minhas primícias perdidas,
estas nutridas querelas,
minhas tão íntimas sequelas
e tudo o mais que se vê no passar.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias II

SOB UM CÉU DE DOMINGO

Este é o título de uma novela do escritor pernambucano Paulo Caldas, publicada em 2009 pelas Edições Bagaço. Tendo incursionado pelo ensaio e pela narrativa infanto-juvenil, mais recentemente Caldas vem trabalhando a ficção que contempla a novela e o romance. Sob um céu de domingo é uma narrativa desconcertante, de personagens fortes que se removem na ambientação movediça que caracteriza países da América do Sul em estado de golpe ou sitiados.
A personagem central, cujo nome só se sabe ao fim da narrativa, estabelece um diálogo e uma relação amorosa com outra personagem, Camila. Deliberadamente oculta, Camila em nenhum instante se manifesta. Mas persiste a dúvida, em todo o texto, se a personagem redonda e definidora é feminina ou masculina, quando enfim descobre-se o seu nome: Adelaide. Quando Adelaide e sua mãe são exiladas, percorrem um roteiro que inclui a saída pela Ilha de Trinidad e o Brasil como ponto de chegada.
Em São Paulo, são esmiuçadas vivências de uma família pequeno-burguesa, com seus costumes arraigados e seus desvios subliminares e latentes. Os mortos descem dos retratos e mostram seu desempenho fantasmagórico e sua voz inaudível. Alguns dos vivos parecem estar mortos em vida. A casa dos Cordeiro Farias é controlada com mão de ferro por Adelaide, a matriarca que não se importa com os filhos, irmãos e com a neta Adelaide.
Uma figura marcante no livro é Gabriel, obsessionado pela morte dos outros e a própria: “Deitava-se no chão, junto ao aparador, à meia-noite, rodeado de velas acesas; maquiava as faces de pó de arroz, passava lápis de sobrancelhas enegrecendo em volta das pálpebras e vestia uma mortalha branca. Exigia que os empregados cantassem réquiens, carpissem seu féretro e rezassem o terço até a última conta do rosário. Como a morte não acontecia se levantava irritado a insultar os santos, anjos, arcanjos, serafins, querubins; blasfemava aos gritos e gargalhadas para em seguida, ofegante, se recolher ao quarto e dormir”.
Paulo Caldas reveza momentos de um estilo rebuscado (para nomear e descrever a paisagem exterior ou as disposições internas de lugares e objetos) com outra faceta mais acessível e derivada do popular (através de ditos e chistes, de palavras articuladas no estágio bruto da linguagem oral). Montagens e colagens de títulos de livros de outros autores, fragmentos de letras de música, versos soltos e recortados são introduzidos aleatoriamente em frases e parágrafos. Aliás, este recurso também aparece em parte em seu livro de 2007, A lua em sagitário.
A intencionalidade do autor fica clara no percurso de um texto que não mais se quer experimental, mas revela sua inteireza na análise dos sentimentos humanos e na apresentação de situações do embate político ditadura vs. democracia que configura o continente americano. O introspectivo aqui, paradoxalmente, cede lugar ao diálogo franco e à exposição de motivos tradicionais e familiares. Aflora-se, assim, o conjunto arbitrário das posturas, atitudes e hábitos arraigados proporcionados pelas dominações seculares que, ao fim, são questionadas e combatidas pela revolta que impulsiona certos personagens.


UM POEMA DE RODRIGO PETRONIO

Rodrigo Petronio nasceu em São Paulo, em 1975. Poeta, ensaísta e filósofo, é na poesia que ele vem buscando um sentido, uma origem e uma essência vitais para o humano tanto em suas mais recônditas vivências, como naquelas de sabor inquietantemente terreno. O poema “Antítese” faz parte do seu livro Venho de um país selvagem (Topbooks, 2009). Rodrigo Petronio exercita, neste poema, a angústia da escrita que se situa no “hiato que vai da ideia à fala”. A capacidade de criar e sonhar limita-se com o transcendente e entra em confronto com o assustadoramente vulgar e cotidiano. E que, apesar de tudo, pode ensejar a realização do poema a partir de um duplo que está dentro e fora do poeta e do próprio poema feito negativa e afirmação, vazio e cosmicidade. O desequilíbrio do Ser na desarmonia do mundo revela-se pela atomização da alma:

O poema me espera, fora de mim,
Para que eu me realize nele.
A sua falta de essência me completa,
E o que sobra nele me extravasa:
Transbordo em seu sinal de menos:
Sua ausência de ser é minha casa.
Sustenho seu corpo, sem mistério.
Adentro seu espaço, sem pegadas.
Encontro-o quando perco o centro.
Menor que a parte, ele não me abarca.
Maior que o todo, ele é meu avesso.
Não é o mundo o que ele me revela.
Não é a mim mesmo que nele procuro.
Não é a poesia o que ele desperta.
Mas o hiato que vai da ideia à fala
Onde o coração bate mais livre.
Mergulhado na matéria mais precária,
Pulsa em nós ao ritmo da estrela
Tanto mais imortal em quanto vive,
Eternidade da luz que se apaga.
Isento da palavra que o aprisiona,
Alheio ao conceito que o mutila,
Imerso em cada coisa que o transcende,
Mergulhado no mundo sem limite:
Vou ao poema, retorno ao nada:
A voz me liberta de minha alma
E assim eu sou o Outro que me habita.


PARACHOQUES

Bons ou maus presságios não eliminam efeitos
nefastos ou positivos de um acontecimento em si.


CAOS

Caos total.
Caos totem.
Caos
também
trivial.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias I

AOS VISITANTES DESTE BLOG

Começo essa primeira postagem de 2010 por agradecer a todas as pessoas que acessaram “O Mundo Circundante” nos seus dois meses de existência. A visita de cada internauta é fundamental para a continuidade do trabalho. Como já disse em outra oportunidade, quem escreve deseja ser lido. E que outros que escrevem também sejam lidos, pois um escritor não está nunca sozinho nesta empreitada. Um escritor não funciona sem uma comunidade de escritores que o precederam, que caminham juntos com ele, vivos ou mortos, dos quais absorve toques, registros, influências.
Aos amigos, conterrâneos, formadores de opinião, jornalistas, intelectuais, escritores, às numerosas pessoas que conheço apenas de contato virtual, expresso a minha mais profunda gratidão pelos acessos que vão se somando progressivamente. Sou grato em especial a todos aqueles que fizeram comentários, críticas e sugestões, tanto na conversa pessoal e presencial, como através de telefone ou e-mail. Feito uma resposta ansiada que se aguarda, a interação é estímulo e incentivo.
O blog é, também, extensão e complemento das atividades literárias e intelectuais desenvolvidas na edição de meus próprios livros e na publicação seletiva de artigos e ensaios em revistas, sites e jornais. E, mais importante ainda, no diálogo direto com pessoas que comungam a literatura e a arte. Sem esquecer o contato educativo com eventuais e periódicos alunos, na tarefa pedagógica e formativa.
Estou disposto a dar continuidade ao blog, na medida em que ele cumprir a função de transmitir cultura, poesia, crítica, crônica de fatos cotidianos, além do que for surgindo nos instantes de criação. O blog, aqui, não se presta à alimentação de nenhuma vaidade pessoal. Significa, apenas, a partilha da experiência com o trabalho literário, artístico e cultural.


010110

Lua cheia, prenúncio de chuva, calor violento. Tédio em família. Leve ressaca da noite da virada do ano. A TV anuncia pesadas enchentes e desmoronamentos em vários lugares do país.
Boêmios retardatários procuram bares que não vão abrir. Um breve balanço, impensável em profundidade, é feito por todos. Fica somente aquele desejo renitente como algo repetido que não se realizou.
Alguns guardam seus mortos, na memória ou no ato do enterramento. Outros não perdem, estejam onde estiverem, a primeira missa do ano.
A melancolia é parcialmente substituída pelos contatos familiares e de amizade. É difícil negar o prodígio da fala ao outro, mesmo a desconhecidos.
A cidade deserta como um leito vazio de quarto abandonado. Pessoas recolhidas em suas casas, maquinando a perspectiva dos novos dias. Soluções irremediavelmente adiadas para novos e antigos problemas.


UM POEMA DE CIDA PEDROSA

Cida Pedrosa é poetisa de Bodocó (PE), mas radicou-se no Recife há um bom tempo. Sua poesia reflete, em termos éticos, a condição da mulher brasileira e a busca incessante por cidadania. Sem, no entanto, escamotear um necessário sentido estético para as estruturas vérsicas em constante mutação e inovação. Seu livro mais recente, As filhas de Lilith, traz ilustrações de Tereza Costa Rego e design de Jaíne Cintra, para o acompanhamento de versos fortes, transparentes e arrojados. Todos os poemas têm como títulos nomes de mulheres, de A a Z. A mulher é vista em situações cotidianas e inusitadas, na rua e no quarto, na solidão e no seio da família, no salão de beleza e nas nuances da vida pública. O poema “cecília” (em caixa baixa mesmo), expõe o afã da mulher que lava rotineiramente uma calçada pela manhã, pondo nisso toda a sua concentração. Enquanto varre e enxuga, pensa pequenos sonhos e exorciza a agonia noturna. Como se pudesse consumar solitariamente a limpeza, enerva-se e se apressa quando olhos indiscretos a observam:

ela lava a calçada
como quem lava o mundo

do balde a cachoeira
molha pés dançarinos
alojador de sapatos
andante de procissões

na tirania da água
o barquinho de papel
escorre pelo sonho da menina
e o burburinho assusta o velho da janela

cecília lava a calçada
e a espuma em pedra
é breve morada em seus pés

portas se abrem
olhos espiam
a vassoura se apressa
e varre a agonia
vivida durante a noite


PARACHOQUE DE CAMINHÃO

Quando o bruto e o delicado se confrontam,
respingam faíscas de violeta e trovão.


PASSAGEM

1.

Detenho-me no mundo
o surto de um tempo
e o tempo de um eco
e na duração desse susto
um tempo suficiente
para aqui me sentir
o que vejo o que vivo

2.

Detenho-me no mundo
o surto de um tempo
e o tempo de um eco
e a duração desse susto
num tempo suficiente
para aqui me sentir
o que vejo o que vivo