quinta-feira, 23 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCVII

PROFUNDAMENTE

                                            Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente

                                  *

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó 
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão  todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

In: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

domingo, 12 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCVI

A CONFERÊNCIA DO EXISTENCIALISMO


            “Sucesso cultural sem precedentes. Empurrões, socos, cadeiras quebradas, mulheres desmaiadas. A bilheteria do saguão para a venda de ingressos fica irremediavelmente abalada, destruída, reduzida a escombros: ninguém consegue comprar coisa alguma. Beigbeder e Calmy se mostram sucessivamente contentes, preocupados, enlouquecidos, apavorados, constrangidos, arrasados, impotentes diante desse ímpeto catastrófico. Gaston Gallimard comparece, assim como Armand Salacrou e Adrienne Monnier. A multidão compacta, nervosa e exasperada pelo calor causticante de outubro, esperneia sem dó nem piedade, impedindo a entrada de qualquer pessoa. Só uma vez, entretanto, tem um pouco de consideração, quando surge o casal de artistas Jean-Louis Barrault e Madeleine Renaud: então, única exceção, os socos e ferimentos cedem lugar à deferência mundana. Sartre chega sozinho, de metrô, lá de Saint-Germain-des-Près. Quando dobra a esquina e enxerga a multidão tão densa e ameaçadora que se comprime diante do prédio das Centrais onde deve falar, diz consigo mesmo, curioso: “Ora, só podem ser comunistas se manifestando contra mim!” e até pensa em dar meia-volta. Segue em frente, porém, mais por consciência profissional que pela vontade real de enfrentar a maré humana que julga hostil e entra, sem convicção, no auditório. Mais de duzentos, trezentos ouvintes acotovelados; quantos conhecem o rosto dele? E logo Sartre, a última pessoa capaz de dizer: “Sou eu, Sartre, abram caminho, por favor, com licença”? Portanto, não diz nada e se deixa levar, para frente e para trás, da direita para a esquerda, ao ritmo de cotoveladas, batidas de cadeira e de bengala, e vai indo, arrastado por fluxos benéficos, aos poucos, brutalmente, até a parte da frente da platéia: o percurso, da porta da entrada ao estrado onde deve falar, dura mais de quinze minutos. Com mais de uma hora de atraso, numa sala superabafada, apinhada de gente superexaltada, o conferencista começa a falar.
            Claro, sem consultar anotações e, na medida em que a promiscuidade dos ouvintes permite, de mãos no bolso. De saída, defende o existencialismo das críticas comunistas: “filosofia contemplativa, de luxo, burguesa”; das críticas católicas: “sublinhar a ignomínia humana, mostrar o lado hediondo, viscoso, de tudo”. Depois apresenta, sucinto, o seu propósito: esclarecer o sentido dado a “humanismo”, tentativa de definição do “existencialismo”: “uma doutrina que torna a vida humana possível”. O conferencista, em seguida, com astúcia, se espanta com a moda da palavra “existencialismo” que “hoje”, explica, ”adquiriu tamanha amplitude de extensão que não significa mais absolutamente nada... Trata-se, na realidade, da doutrina menos escandalosa e mais austera, estritamente destinada a especialistas e filósofos”. Tendo assim delimitado as fronteiras, vedado a entrada do território a intrusos, críticos e ladrões de conceitos, e reassumindo seu lugar favorito – a filosofia –, inicia um verdadeiro curso filosófico, tão especializado e austero quanto prometeu, apesar da heterogeneidade da platéia, do mundanismo da afluência, ignorando solenemente a correnteza da maré, as cadeiras quebradas e os desmaios. Mantém-se na linha que se propôs no momento em que aceitou a conferência, confirma o pacto com o rigor de seu propósito e não cede uma só polegada. Os Schweitzer apreciariam esta retidão de conduta, esta desenvoltura com o sucesso, este espírito de conivência que não lhe deixa, nesta noite, cair em nenhum cabotinismo?
            Os ouvintes comprimidos, entusiasmados, asfixiados, agüentam, pois, análises concisas e exatas das teorias de Jaspers, Gabriel Marcel, Heidegger, Kierkegaard, Kant e Auguste Comte; e também uma avalanche de referências a Voltaire, Diderot, Dostoiévski, Zola, Stendhal, Cocteau e Picasso. É uma apresentação bem-argumentada e interessante, magnífica e séria, que define conceitos já preparados no “Esclarecimento” que redigiu para o jornal Action e as críticas comunistas em dezembro do ano anterior; o conceito de “indivíduo”, de “responsabilidade”, “angústia”, “compromisso”, “isolamento”, e retoma certas fórmulas de impacto: “O existencialismo qualifica o homem pela ação que empreende”; “Diz que a única esperança que lhe resta é a ação e que a única coisa que lhe permite viver é o ato”; “Um homem se compromete com a vida, traça seus limites e, fora deles, não há nada”; “Estamos sozinhos, sem justificativas. É o que eu diria ao declarar que o homem está condenado a ser livre.” Acaba desistindo de certos conceitos incômodos ou mal-empregados, como “desespero” e “História”. Depois, feito mecânico ou garagista que termina de consertar um motor, afasta-se lentamente do objeto que acaba de desmontar e montar de novo, com toda a naturalidade de alguém que fez seu trabalho sem ser importunado em sua concentração cotidiana, e se felicita que o existencialismo seja “um otimismo e uma doutrina de ação”. De passagem, consegue realizar a façanha de inventar a definição do “humanismo existencialista” e, acima de tudo, de apresentar uma categoria de indivíduo com o qual todo mundo pode, então, se identificar: “o europeu de 1945”. Indivíduo que Sartre coloca no centro do mundo, com o poder de compreender “qualquer projeto, até de um chinês, de um índio ou de um negro”. Sujeitinho mágico, esse europeu de 1945 não vai demorar a ficar rico. O conferencista-mecânico se afasta, portanto, de sua máquina. A fase inicialmente prevista, que deveria, de saída, comportar uma discussão com os detratores presentes na sala, está cancelada por falta de lugar e de tempo. O conferencista vai embora.
            Na manhã seguinte, por volta do meio-dia, Marc Beigbeder encontra-se com ele no café de Flore. A fim de pedir-lhe, para começar, desculpas pela lamentável desorganização da memorável noitada. E em seguida expor-lhe as dificuldades que doravante terá de enfrentar: havia prometido, lógico, uma remuneração pela conferência, mas o clube agora vai desembolsar uma quantia bastante vultosa, sem nenhuma reserva financeira: aluguel do auditório, anúncios nos jornais, prejuízos materiais, enfim, pois o diretor das Centrais fez uma relação das cadeiras quebradas... Beigbeder não tem tempo de acabar a lista das dívidas futuras: “Ora, quanto ao meu pagamento, claro que você não precisa se preocupar!”, sugere Sartre. “Aliás, pelo visto, foi um êxito!”, exclama, mostrando os artigos dos jornais matutinos, que estava lendo diante de sua xícara de café com croissants.”

In: Sartre: uma biografia. Annie Cohen-Solal; trad. Milton Persson. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008, pp. 296-298.

sábado, 11 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCV

REVISTA BRAVO!

No número mais recente (166,  junho/2011), a revista Bravo! publicou um artigo assinado por Paulo Nogueira, sobre polêmicas entre escritores, intitulado "Palavras publicadas, palavrões impublicáveis". Romancistas, poetas e críticos literários participam com frequência constante de embates venenosos e virulentos, às vezes com desfechos danosos, violentos. Do artigo citado (pp.82-85), retiramos o trecho da polêmica Vargas Llosa vs. García Márquez, dando os devidos créditos à Bravo!:

VARGAS LLOSA X GARCÍA MÁRQUEZ

"Um segredo que durou mais de 30 anos foi a razão pela qual Mario Vargas Llosa esmurrou Gabriel García Márquez no dia 14 de fevereiro de 1976. Também nessa rixa a antipatia começou como empatia - tanto que o colombiano convidou o peruano para ser padrinho do seu filho Gabriel. Ambos partlharam o expatriamento em Barcelona, onde foram bons vizinhos. Até que, no dia fatídico, Llosa  infligiu ao ex-cupincha um olho negro digno de um panda (há uma foto de García Márquez estropiado, feita por Rodrigo Moya).
É certo que havia potenciais melindres. Ao longo da vida, Gabo observou uma marmórea otodoxia esquerdista, apoiando impavidamente o ditador Fidel Castro, com quem desenvolveu um afetuoso relacionamento. Justificava-se alegando que a estima transcendia ideologias: "Poucas pessoas sabem que Castro é um leitor voraz, que ama e conhece a melhor literatura universal". Reinaldo Arenas e Cabrera Infante, autores cubanos expulsos da ilha por divergência de pensamento ou comportamento, que o digam. Márquez nunca condenou a aplicação da pena de morte na ilha - sentença a que sempre se opôs em outras paragens. Recorda uma cutucada de Albert Camus em Jean-Paul Sartre (uma desavença que fica para  a próxima): "Certos intelectuais progressistas são fundamentalmente benevolentes e humanos, e amam as pessoas miseráveis muito mais do que as amariam na prosperidade". Contudo, não foram as discrepâncias políticas que ditaram a pancadaria na Cidade do México. Nem o despeito literário: mais cedo ou mais tarde, ambos embolsariam o Nobel. Para decifrar o mistério, convém seguir o clichê policial: "Cherchez la femme" (procure a mulher).
O arranca-rabo ocorreu em um cinema mexicano, durante a estreia de um filme então badalado e hoje misericordiosamente esquecido. Quando acabou, Gabo  avistou o amigo e se encaminhou para ele de braços escancarados. Foi recebido com uma patada no olho esquerdo. Com o sangue a jorrar-lhe, Márquez ainda conseguiu ouvir o agressou espumar: "Como se atreve, depois do que você fez a Patrícia em Barcelona?" A turma do deixa-disso entrou em cena, enquanto alguém trazia um bife cru para o olho intumescido.
Quando Gabo fez 80 anos, uma biografia esclareceu o mistério. Com a sua pinta de cantor de tango, Llosa jamais escamoteou um fraquinho pelas damas. Numa viiagem aérea, apaixonou-se por uma aeromoça sueca, abandonou a mulher e tocou para Estocolmo. Furiosa, Patrícia correu para a casa de Gabo, que a consolou. Ninguém sabe a forma que o consolo assumiu. Contudo, Márquez sugeriu o divórcio. Outras fontes atribuem a Gabo a pior traição que se pode cometer contra um amigo. Eventualmente, Llosa voltou para o lar com o rabo entre as pernas, e Patrícia lhe contou o conselho de García Márquez (e talvez do efusivo consolo). Daí o murro."

domingo, 5 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCIV

VOCAÇÃO DEVORADA PELA TV

A indústria televisiva tem desviado vocações literárias ao mesmo tempo em que produz monstros de audiência. Alguns autores que iniciaram suas carreiras escrevendo literatura em modalidades como o romance, o conto, a poesia ou a peça teatral, foram seduzidos pela TV e passaram a se dedicar com mais ênfase ao texto para telenovela. Podem ser aqui lembrados Dias Gomes, que deixou peças de teatro memoráveis; Manoel Carlos, que chegou a publicar poemas pelo “Círculo do Livro”; ou Aguinaldo Silva, que continua militando nos dois campos, e contabiliza cerca de uma dezena e meia de livros publicados. Seu romance mais recente, 98 Tiros de Audiência, com subtítulo “Intriga e Mistério nos Bastidores das Telenovelas”, acaba de ser lançado e retoma a temática policial em que ele é especialista, com uma vasta experiência de repórter em jornais cariocas. Ninguém mais adequado para a função do que o pernambucano, uma vez que conheceu de perto e a fundo, a partir da década de 1960, a contravenção do jogo do bicho, o roubo desenfreado de automóveis associado ao avanço do tráfico de drogas, a corrupção policial indiscriminada e o mundo glamouroso, competitivo e banalizado das celebridades. O grupo seleto de escritores do qual poderia fazer parte Aguinaldo Silva é composto de ficcionistas do porte de João Antônio, José Louzeiro e Rubem Fonseca, que se esmeraram, cada um à sua maneira, na narrativa de cunho policial ou em episódios da malandragem do Rio.

Um dos livros de Aguinaldo Silva que causaram mais estranhamento foi Primeira Carta aos Andróginos (1975), um misto de romance e ensaio, com numerosas transfigurações e referências à mitologia grega e a personagens bíblicos, estrutura formal que se aproxima em muitos momentos à poesia, um questionamento subjetivo mas não velado do homossexualismo e das dificuldades sociais que o assumi-lo traz num país onde a cultura ainda é bastante machista e arraigada. Em República dos Assassinos (1976), ele conta a trajetória do policial-bandido Mateus Romeiro, um dos “homens de ouro” da polícia carioca, preparado para executar suas vítimas sem pestanejar, e que atinge o êxtase sexual no momento de sacrificá-las. O protagonista acaba enveredando pelo crime através do “Esquadrão da Morte” – organização criada pela própria polícia para matar bandidos –, ao enviar carros roubados para o Paraguai e investir o dinheiro ganho trazendo na volta cocaína. O personagem que faz o repórter Aguinaldo Ribeiro (uma junção de Aguinaldo Silva com o também repórter policial à época Octávio Ribeiro), envolve-se com o policial-bandido, a ponto de ajudá-lo a cobrar dívidas de gente poderosa na contravenção e de demonstrar por ele um grau de intimidade que ultrapassa os liames mais corriqueiros da amizade.

O último livro editado, O Homem que Comprou O Rio (1986), demonstra ainda a força do escritor Aguinaldo, com a escolha do contraventor Giovanni Improta para personagem central, promovendo a agilidade de uma narrativa impecável onde cada fato, personagem secundário ou situação relatada ocupa seu devido tempo e lugar. Esta distribuição, inter-relação e movimentação exata no espaço e no tempo dos personagens e eventos faz com que o romance atinja o seu estágio de eficácia e eficiência, cumprindo obviamente com sua função literária e estética específica. Este romance guarda algumas semelhanças de concepção de personagens e situações com 98 Tiros de Audiência. Primeiro, o modo como os detetives Paulinho Reitz e Luis Trajano atuam, se comportam e se relacionam com as mulheres, com outros policiais e outras pessoas. Ambos sempre são afastados de casos que envolvam pessoas importantes porque, em termos éticos mostram-se incorruptíveis. A Paulinho Reitz não importa se o maior implicado nas mortes de Orlando e Misael, de O Homem que Comprou O Rio, é um bicheiro que domina a Baixada Fluminense e que seja afilhado do governador Valmiro dos Santos.

Em 98 Tiros de Audiência vem à tona praticamente tudo o que se passa nos bastidores de uma novela global. A grande luta de atores, autores e diretores para manter o pico de audiência a qualquer preço, que às vezes teima em despencar. A humilhação de quem persegue a fama e encontra, em contrapartida, a fúria de executivos preocupados apenas com o número de telespectadores e conseqüentes investidores na publicidade. Talvez por isso se sinta mais forte a presença do autor de novelas do que propriamente do escritor ou do roteirista de cinema. O estilo romanesco segue o da trama folhetinesca, que guarda sempre a surpresa para o dia seguinte ou o próximo capítulo, levando qualquer leitor a querer saltar páginas e descobrir o que virá pela frente. Neste livro, ironicamente, o assassino da estrela Aurora Constanti é o alter ego de Aguinaldo Silva, o autor Everardo Lopez. Ele fica num beco sem saída ao ter de repetir a performance de 98 pontos no dia da morte de Aurora Constanti, mulher belíssima, porém bêbada e cocainômana, que investe tudo numa boa confusão e é odiada pelos colegas de trabalho, pelo diretor Quase-Quase e por Mister Zee, o Todo-Poderoso. Os capítulos aparecem em seqüências de blocos, à maneira de monólogos e depoimentos dos envolvidos com a diva Aurora Constanti, recurso já utilizado em República dos Assassinos para o julgamento de Mateus Romeiro. Mas, o que surpreende agora, em relação à escrita de Aguinaldo Silva, é aquela perda de vigor do escritor para deixar reinar o novelista. Nada se passa no âmbito da vida pessoal ou privada com discrição ou autenticidade, ao contrário, tudo resvala para o superficial, o bombástico, o sensacional, o deslavadamente público. Este é, sem dúvida, o preço que um escritor pode vir a pagar para ter seu público medido em milhões de pessoas.

In: Continente Multicultural, nº 73, jan. 2007.

Notas Cotidianas e Literárias XCIII

O SÃO FRANCISCO
                                                      Castro Alves

Longe, bem longe, dos cantões bravios,
Abrindo em alas os barrancos fundos;
Dourando o colo aos perenais estios,
Que o sol atira nos modernos mundos;
Por entre a grita dos ferais gentios,
Que acampam sob os palmeirais profundos;
Do São Francisco a soberana vaga
Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,
Ele vagia na vertente ainda,
— Linfa amorosa — co'a nitente espuma
Orlava o seio da Mineira linda;
Ao meio-dia, quando o solo fuma
Ao bafo morto de u’a calma infinda,
Viram-no aos beijos, delamber demente
As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo
O deleite da indígena lasciva...
Vem — à busca talvez de desafogo
Bater à porta da Baiana altiva.
Nas verdes canas o gemente rogo
Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...
E talvez por magia... à luz da lua
Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas
Por isso descem lentas, peregrinas...
Adormeces ao pé das palmas curvas
Ao músico chorar das casuarinas!
Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —
De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,
As largas ipueiras alagando,
E das aves o coro alvissareiro
Vai nas balças teu hino modilhando!
Como pontes aéreas — do coqueiro
Os cipós escarlates se atirando,
De grinaldas em flor tecendo a arcada
São arcos triunfais de tua estrada!...


In: Poesias completas. Prefácio Manuel Bandeira. Rio de Janeiro. Ediouro, s.d.

sábado, 4 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCII

UM POEMA DE ANTÓNIO PATRÍCIO
(PORTO, 1878 - MACAU, 1930)



PARA ALÉM


É para além de tudo o que alcançamos
que se adivinha enfim esse horizonte,
onde dormem os sonhos que beijamos
e a nossa sede tem a única fonte.

Há para além do céu ainda mais céu
se houver ânsia no olhar que o reflectir:
o céu mais vago e fundo é só um véu
que a alma rasga p'ra poder seguir...

É para além do amor que me adormece
nesta loucura doce de te olhar
que o coração pressente o que é amar.

Além da vida há vida, além é o norte:
e quando mortos, ainda a nossa prece
levantará as mãos além da morte...

In: Patrício, António. Serão inquieto e poemas reunidos. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000.

Notas Cotidianas e Literárias XCI

MEMÓRIA, DISCURSO E AMIZADES
DE CYL GALLINDO

O relato da convivência entre escritores não é uma tarefa fácil de ser traduzida em palavras, pelo que envolve de exposição do outro. Pode levar a julgamentos equivocados, que se geram a partir de interpretações confusas, falseadas ou desviantes. Entretanto, quando o relacionamento foi estabelecido em bases sólidas de amizade, franqueza e lealdade, o escritor dispõe de uma cota relativa de liberdade para falar sobre aqueles ou aquelas que mais o marcaram. O ciclo das amizades desdobra-se e é elastecido e referendado por outros testemunhos de época, de amigos comuns ao autor e ao escritor ou escritores lembrados.

Cyl Gallindo teve o privilégio de privar da amizade do poeta pernambucano Manuel Bandeira, do final dos anos 50 até a morte do autor de Estrela da manhã, em 1968. Na condição de estudante em terras cariocas, conheceu Bandeira numa circunstância inusitada: fora escalado pelo presidente da Casa do Estudante do Brasil Alfredo Viana, juntamente com dois colegas, para fazerem a abordagem do poeta em sua casa. A finalidade da visita era coletar a assinatura de Bandeira para um documento referente a uma homenagem à atriz Cacilda Becker. Terminado o encontro, Cyl é requisitado pelo poeta a voltar novamente a sua casa. Fica-se sabendo que Bandeira reivindicou, de início, a companhia do jovem Gallindo principalmente por causa do sotaque pernambucano, e depois para acompanhá-lo às quintas-feiras à Academia Brasileira de Letras. Mesmo vivendo no Rio de Janeiro, tinha amigos no Recife, como Gilberto Freyre e o casal Ascenso Ferreira/Stella Griz, servindo de articulador de novas amizades para Gallindo. O viés polêmico do ensaio fica por conta da aposição de um busto de Bandeira no Recife, que Gallindo descreve com detalhes num artigo publicado à época.

Outra amizade retratada é aquela encetada com o escritor e folclorista angolano Óscar Ribas, vindo a lume o que os uniu e identificou. Ribas acabou por exercer forte influência sobre Gallindo relativamente ao papel da raça negra na sociedade brasileira: “Foi lendo Óscar Ribas, a escrever, cantar, gemer, sorrir e chorar nas páginas dos seus livros e cartas datadas desde 1965, que alcancei a verdadeira dimensão da minha afinidade e consaguinidade com a raça negra”. Quem o conhecia mais de perto era o escritor Luis da Câmara Cascudo, que por sua vez tornou-se também amigo de Gallindo. Oscar Ribas faleceu em 2004, aos 94 anos, ainda lúcido e trabalhando com literatura. O texto de Gallindo apareceu em Portugal, em livro organizado por outro angolano, o escritor e jornalista Gabriel Baguet Jr.

A cidade onde Gallindo nasceu, Buíque, no Agreste pernambucano, guarda a peculiaridade de o escritor Graciliano Ramos ter vivido nela parte da sua infância. O alagoano que mudou a história da literatura brasileira com sua forma seca, enxuta e rigorosa de trabalhar as palavras, absorveu toda uma vivência rural que alguns lugares nordestinos lhe legaram. Entre eles, Palmeira dos Índios e Quebrangulo, esta última sua cidade de origem, além de Buíque, onde Sebastião Ramos, o pai de Graciliano, adquiriu uma fazenda e para lá se transferiu com toda a família. O autor volta às raízes, por ocasião da inauguração da Biblioteca Municipal Graciliano Ramos. Chama a atenção para o fato de Infância e outros livros fundamentais de Graciliano, provavelmente terem sido locados em solo buiquense. Segundo conta, instigou o holandês August Willemsen, tradutor também de Euclides da Cunha, a verter Infância para o neerlandês, o que terminou acontecendo, ao constatar a exposição do volume em livrarias holandesas, onde esteve recentemente.

Em 1994, Gallindo escreveu o prefácio para a 2ª edição do livro Canudos e outros temas, publicado pelo Senado Federal, contendo textos de Euclides da Cunha. O texto é contundente, e tem como característica principal certa atualização do pensamento euclidiano, permanecendo também nas outras edições. Faz uma defesa veemente do Nordeste brasileiro, do seu povo e da sua cultura, das formas desabonadoras como a região tem sido encarada por sucessivos governos. O histórico da publicação é apresentado em depoimentos de várias personalidades de pesquisadores e escritores, brasileiros e internacionais.

A edição da Panorâmica do conto em Pernambuco, organizada por ele e Antônio Campos, que também participam com textos de apresentação e contos, resultou da parceria entre o Instituto Maximiano Campos, de Pernambuco e a Escrituras Editora, de São Paulo. Lançado durante a Fliporto 2007, em Porto de Galinhas, o volume contém, substancialmente, 896 páginas e contempla 114 autores. Dentre os antologiados encontram-se escritores consagrados como os poetas Ascenso Ferreira, Joaquim Cardozo e Mauro Mota, os ficcionistas Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Hermilo Borba Filho, José Condé, Maximiano Campos, Osman Lins, Gilberto Freyre, Luis Jardim, Nelson Rodrigues. Esta apresentação é republicada oportunamente, pois o livro será relançado durante a próxima Fliporto, em novembro deste ano, em edição reformulada e com biografias atualizadas. São apresentados os critérios que nortearam a organização da antologia, os processos de seleção e escolha, os percalços enfrentados e os percursos utilizados para a execução do livro.

O memorialismo autobiográfico deriva-se aqui de situações coloquiais e vivências cotidianas. Em certos instantes, um simples encontro pode vir a transformar-se em motivações de reflexão e análise sobre assuntos variados. De um modo geral, afloram numerosas conversas sobre a vida e o que vai pelo mundo, sem pretensões de eruditismo literário ou filosófico, notadamente nos encontros com Bandeira. Os textos se inter-relacionam através das figuras que os compõem, que aparecem às vezes em mais de um deles, sem que o leitor espere. E ainda nos que não se referem propriamente às amizades do autor, o tom é discursivo, em primeira pessoa, privilegiando mais o coloquial do que a densidade reflexiva, a exemplo de “Em defesa da língua portuguesa”, conferência pronunciada em 2000 na Academia Recifense de Letras, marcando posição contra a descaracterização do vernáculo, sua invasão por termos de outras línguas, que sugerem um espírito de neocolonização nem sempre questionado ou refreado. Ao lado dos recortes da memória, do coloquialismo e das recordações gratas, convivem em sintonia o discurso de ocasião e os textos de prefácio. Todos, ao fim, permeados de informações preciosas e posicionamentos definidos, compostos por eventos da vida literária, de algo da história da literatura e da preservação da língua portuguesa como objetos demarcados e inesquiváveis.

In: Gallindo, Cyl. A intimidade da palavra . Recife: Bagaço, 2010.  

Notas Cotidianas e Literárias XC