sábado, 26 de fevereiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXIV

UMA PÁTRIA CHAMADA CARNAVAL

                              Paulo Fernando Craveiro

Vamos colocar em vossas mãos a paisagem musical do Recife. É um mundo estranho e vibrante. Ninguém sabe onde principia a tristeza nessa pátria.
Esse mundo está dividido não em países nem em cidades, mas em danças. Elas fazem parte de uma federação de sentimentos.
Cabocolinho, maracatu e frevo são divisões de uma alma mais geral: o Carnnaval do Recife.
Os cabocolinhos são índios de Carnaval, geralmente unidos em agrupamentos. Ao som de guizos atados em suas fantasias, pulam monotonamente. A cadência é certa como pingo d'água caindo. Auditivamente cansativa, apesar do ritmo ter uma velocidade nervosa. Usam arcos que não atiram flechas. Promovem estalidos de madeira, pois a vareta que liga a corda à curvatura do arco possui apenas a função de emitir ruído sem melodia, seco como tapa no rosto.
O maracatu é uma espécie de religião. Sua pureza consiste em ser cantado por negros somente. O grupo carnavalesco que dá vida ao maracatu está alicerçado ritmicamente em insttrumentos de percussão, com tambores, chocalhos e gonguês. A coreografia é pobre e espontânea. Ao que entoa as loas respondem os outros negros. Sua influência vem dos séquitos africanos, quando os escravos levavam os reis para para a homenagem da coroação.
O frevo é a explosão coletiva. Violento como um susto. A multidão dançante parece ferver. Todas as vontades de libertação ficam à flor da pele. E o corpo individual e coletivo começa a vibrar; os pés em brasa e a alma voando. A coreografia de frevo nasce em cada dançarino, às vezes numa improvisação sobre o calçamento. É também formada de uma variação incomum de passes, que é o "passo" no seu conjunto de requebros e maneiras de pisar.
Vamos colocar em vossas mãos a paisagem musical do Recife. É um mundo estranho e vibrante. Ninguém sabe onde principia a alegria e termina a tristeza nessa pátria.

(Antologia do carnaval do Recife, org. Mário Souto Maior e Leonardo Dantas Silva. Recife, Massangana, 1991.)

Notas Cotidianas e Literárias LXIII

A PEDRA QUE ENTRANHA A ALMA

Na história da poesia brasileira, João Cabral de Melo Neto ocupa um lugar destacado, sendo raro o poeta contemporâneo que, como ele, tenha realizado obra de tão acentuada coerência e nitidez poética. E isto pode ser conferido nos níveis interno e externo dessa obra, pela manifestação de uma fatura estilística e diccional diferenciada e infreqüente em tantos outros poetas. Ou talvez mesmo inexistente em muitos deles, ao passo que no pernambucano tal fatura desenvolve-se de um modo seriado, gradativo e sempre enriquecido pelo elastecimento e dinamização das categorias poéticas que comporta.

Mesmo levando-se em conta o fato de que a poesia cabralina é de ressonância bem maior no Brasil, ela certamente ultrapassa os limites regionais e fronteiriços do país, disseminando-se em praticamente todos os países onde se fala a língua portuguesa, ou ainda em outros nos quais foi traduzida.

Das leituras com fins estritamente analíticos, ou mesmo daquelas que visam apenas a absorção “desinteressada” da própria poesia de João Cabral, constata-se que essa poesia encontra-se centrada preferencialmente em Pernambuco, num assentamento que se estende aos quatro cantos de cidades e lugares diversos do estado, embora não se deva esquecer o quanto nela participa da Andaluzia e de Sevilha, na Espanha.

E ainda nos livros da última fase – que vai de Museu de tudo (1975) a Sevilha andando (1990) –, este fenômeno do mapeamento espanhol e do canto sensivelmente voltados a Pernambuco, continua sendo uma das peculiaridades da poesia cabralina.

Nesta delimitação radical e intencionalmente geográfica, emerge-se logo a idéia de uma certa espacialidade, sempre buscada por ele e tornada, ao longo da obra, marca irredutível e legitimada em seus poemas.

A malha espacial daí resultante, sem se pensar agora no “Pernambuco espanhol” de Cabral, presentifica-se fortemente na sua poesia urbana, com o acompanhamento da expansão e ramificação da cidade do Recife. Daí é que se inaugura a elaboração de um canto dirigido dialeticamente à cidade e seus habitantes. Um canto socialmente fragmentado entre, num primeiro momento, as contradições materiais e de bem-estar elementares destes mesmos habitantes, alguns talvez de maior privilégio, instalados em casas, sobrados ou edifícios, com as condições mínimas de sobrevivência garantidas e acessíveis, em contraposição ao abandono dos excluídos do mangue.

E também, de outro ângulo, essa malha espacial presentifica-se numa visada que absorve, de modo bastante lúcido e integrado, as paisagens de microrregiões pernambucanas, do canavial ao agreste, do litoral ao sertão; visada que revela uma postura ética e socialmente empenhada do poeta, com uma atenção desdobrada e conseqüente, voltada para o que pulsa, apesar da contundência da reflexão encetada, mais de vida que de morte na gente de Pernambuco.

João Cabral aposta e encaminha toda a sua esperança na grandeza da gente pernambucana em campos éticos e sociais definidores de sua transitação histórica. Nos seus poemas, ele retrata a sua gente com um respeito profundo por ela, na qualidade de uma gente que mantém uma forte ligação com a natureza tropical indomada de uma terra ignota, e às vezes tida como simplória e alheada da dinâmica da vida exterior a esse espaço geográfico recortado “em prancha longa e estreita/ no Brasil nordestino”, como no poema “Descrição de Pernambuco como um trampolim”, do livro A escola das facas, que se irá analisar neste ensaio.

O poeta, paradoxalmente em vida um diplomata de carreira, ultrapassa esta particularidade para muitos desconcertante, e alia-se, assim, à sua gente que, quando não descaradamente ignorada, omitida simplesmente dos planejamentos sucessivos e falaciosos tramados e prospectados nos gabinetes políticos e empresariais, quais gabinetes mais oficiosos e ociosos que propriamente representativos, e ainda nem sempre ciosos de sua imensa nocividade e do grau de malefício que emprestam e causam cotidianamente ao país. No esteio destas considerações, A escola das facas (1980), reafirma-se como um livro no qual a tematização de um Pernambuco insistentemente mapeado e redescoberto por João Cabral, prossegue, desenvolve-se e sedimenta-se numa escala altamente recorrente. Isto pode ser ilustrado com uma estrofe do mesmo “Descrição de Pernambuco como um trampolim”:

     E há outros trampolins,
     mas de expressão interna:
     jogam dentro do dentro
     de quem aqui se deixa.
     Os mangues, por exemplo,
     lesma, sem moles, seitas,
     lançam dentro de nós
     nossa culpa mais negra;
     e o trampolim que quando
     mais o Sertão se seca,
     nos joga retirantes,
     a pé, sem pára-quedas.

Em A escola das facas, o desvio temático da área localista enseja-se em algumas poucas exceções, como no poema-prefácio “O que se diz ao editor a propósito de poemas”. Mas, se visto de um prisma de maior abertura, identifica-se ainda neste poema, como traços já não mais tão raros em João Cabral, a personalização e a auto-ironia rebarbativas, associadas à sua presença renitente de “incurável pernambucano”:

     Eis mais um livro (fio que o último)
     de um incurável pernambucano;
     se programam ainda publicá-lo,
     digam-me, que com pouco o embalsamo.

Mas não apenas isto, como quando ele instaura mais uma vez a sua voz de desafio e disciplina frente ao poema, ao falar de poesia em poema:

     Poema nenhum se autonomiza
     no primeiro ditar-se, esboçado,
     nem no construí-lo, nem no passar-se
     a limpo de dactilografá-lo”.

Nas páginas deste livro, a par de um memorialismo visivelmente diferenciado na poesia brasileira, é feito o mapeamento “regressivo” dos relevos e confins de uma infância dissidente do núcleo familiar, onde o futuro poeta apreende e devolve em poesia nuances de paisagens e vivências sociais de sua gente e da região nordestina. Mas é já no primeiro poema, “Menino de engenho”, que se pode ver como João Cabral relata e informa sobre seus primeiros contatos com a “cana” pernambucana, e sua semelhança ao “gume afiado da foice” dos canavieiros:

     A cana cortada é uma foice.
     Cortada num ângulo agudo,
     ganha o gume afiado da foice
     que a corta em foice, um dar-se mútuo.

     Menino, o gume de uma cana
     cortou-me ao quase de cegar-me,
     e uma cicatriz, que não guardo,
     soube dentro de mim guardar-se.

     A cicatriz não tenho mais;
     o inoculado, tenho ainda;
     nunca soube é se o inoculado
     (então) é vírus ou vacina”.

No entender de Luiz Costa Lima, em Dispersa demanda (1981), essa experiência do menino, repartido entre “a atração pela literatura crua do romanceiro e o receio da reprimenda”, representa a compulsão fundadora da poética cabralina. Neste sentido, os versos do poema “Descoberta da literatura”, desvelam o aprendizado da poesia a partir do romanceiro popular nordestino, com a leitura de folhetos de cordel pelo menino-poeta aos trabalhadores no engenho da família, e com o menino sempre alerta a uma possível repreensão dos parentes pela sua disponibilidade em comunicar-se com

     cassacos do eito e de tudo,
     se [estava] dando ao desplante
     de ler letra analfabeta
     de corumba, no caçanje
     próprio dos cegos de feira,
     muitas vezes meliantes.

Ensaiando-se a perspectiva de um retorno destes versos finais do poema aos versos imediatamente anteriores – a disposição não-estrófica identifica-se em estrofe usual apenas pelas maiúsculas que iniciam cada uma das cinco subdivisões implícitas, sendo como é este poema um bloco compacto e de versos soldados entre si –, o olhar e o pensamento podem agora captar os indícios não mais embutidos ou velados da escrita do cordel desenvolvidos no poeta, somados ao próprio relato de sua aparição “mirabolante” na maneira mágica e maravilhosa como “tais coisas contadas” refluíam sobre aqueles ouvintes e sobre o próprio menino-poeta:

     Embora as coisas contadas
     e todo o mirabolante,
     em nada ou pouco variassem
     nos crimes, no amor, nos lances,
     e soassem como sabidas
     de outros folhetos migrantes,
     a tensão era tão densa,
     subia tão alarmante,
     que o leitor que lia aquilo
     como puro alto-falante,
     e, sem querer, imantara
     todos ali, circunstantes,
     receava que confundissem
     o de perto com o distante,
     o ali com o espaço mágico,
     seu franzino com o gigante,
     e que o acabassem tomando
     pelo autor imaginante
     ou tivesse que afrontar
     as brabezas do brigante.

Tais indícios e traços apenas reforçam a influência, ao mesmo que particularizada e regional do cordel, também extensiva ao romanceiro ibérico tradicional, ambas a operar, em maior ou menor grau, fatual e sensivelmente sobre a poesia cabralina. A escola das facas representa um ponto de inflexão na poesia cabralina, onde a mudança de foco e perspectiva se dá a partir do novo despojamento do poeta, ao passar de uma dicção impessoal e terceirizada, para o descobrir-se em “sujeito lírico enquanto ser histórico”, como na expressão de Antonio Carlos Secchin, em João Cabral: a poesia do menos (1985). Apesar da evidente dificuldade em escrever sobre si mesmo, João Cabral consegue, neste livro, o seu intento, utilizando-se ainda de processos característicos formais e expressivos peculiares à sua poesia anterior. Verifica-se agora um desatamento do nó diccional, que viabiliza novas e outras interpretações. Pode-se falar então, sem receio de cair em exagero, com Silviano Santiago, em Vale quanto pesa (1981), de uma espécie de “desdogmatização”, na qual “as fronteiras rigorosas de significado perdem a nitidez, diluem-se, contaminando áreas que antes não teriam sido afins”, pela forma como até então a poesia de Cabral vinha sendo conduzida. Como exemplos desta “desdogmatização”, constituídos pelo ludismo tremendamente irônico e pela abertura dos acontecimentos de uma infância impronunciada e ausente de seus poemas anteriores, tem-se poemas do feitio de “Tio e sobrinho”, onde a conversa interessantíssima do tio incita a curiosidade do menino; “Cento-e-sete”, que descreve o dilema de um agregado sem nome da casa recifense do poeta, esclerosado e a imaginar formigas andando em seu corpo; “A imaginação do pouco”, a descarnar o relativo interesse da meia dúzia de histórias de dormir de Siá Floripes. Poemas que se complementam em outros poemas alusivos à sensualidade feminina da cana-de-açúcar e das frutas pernambucanas. Mas, mesmo no memorialismo do poeta já maduro em busca do menino que deixou em Pernambuco, não são feitas demasiadas concessões à nova orientação assumida. Suas experiências com a memória podem remontar, por exemplo, ao dia em que nasceu, como no poema “Autobiografia de um só dia”, que instaura uma espécie de nonsense e contrafação, na forma como sempre se apresentaram manifestações de feição intimista e seu tanto proustianas em diários, romances e poemas na literatura brasileira. Ao contrário do poeta pernambucano e seu primo Manuel Bandeira, João Cabral não repudia a faca ou “as facas” do pernambucano: elege-as instrumento de luta e denúncia, de motivação ética e de crítica social, alojadas que se encontravam nos desvãos de suas memórias e vivências mais remotas e conseqüentes. Metáforas da faca foram trabalhadas exaustivamente no longo poema Uma faca só lâmina (1955). Este poema explicita a contundência de um real que continua a concentrar-se na região nordestina, com suas circunstâncias de vida delimitadas negativamente pela morte, a corrosão e a violência. A faca aparece, por esta via da metáfora, em Uma faca só lâmina, como objeto pontual de intervenção e corte na poesia brasileira dos anos 50, pela carga de violência que o poema sugere, a oscilar perigosamente entre a contenção e a explosão, e pela insatisfação que o poeta externa com relação às possibilidades expressivas na poesia feita ao tempo. O poema prende-se essencialmente a uma praxis do tempo presente, do tempo em que se executa a poesia – um tempo diferenciado do tempo da memória com que foram construídos, cerca de vinte anos depois, os poemas de A escola das facas. Os poemas que se associam ao eixo temático central do livro, formam uma pequena árvores de interações e possibilidades, que se ramifica e estende-se, direta ou indiretamente, a quase toda A escola das facas. Pertencem ao grupo mais restrito, o poema “A escola das facas”, que se inter-relaciona diretamente a “A voz do canavial” e a “A voz do coqueiral”. Em outro ramo do mesmo grupo, situam-se “As facas pernambucanas” e “Duelo à pernambucana”. A irregularidade na disposição dos poemas do livro anterior, Museu de tudo (1975), não pressupõe necessariamente perda de qualidade e rigor na fatura poética, ao antecipar o memorialismo algo enviesado e desreprimido de A escola das facas. É relevante também o fato de que, em oposição à descontração temática de Museu de tudo e à alteração estrutural de A escola das facas, o poeta decidiu-se a elaborar, ele mesmo, no próximo livro, o que achava de melhor e mais acabado em sua produção anterior, agrupando tais poemas num volume a que intitulou Poesia crítica (1981). A dimensão metalingüística, além de bastante evidenciada em Museu de tudo, está presente também em A escola das facas, numa prática que vem desde os primeiros livros, e que ocorrerá num livro posterior como Agrestes (1985), notadamente no bloco “Linguagens alheias”. A transposição poética é feita no modo como ele vê, sente e relaciona-se com outros artistas ou figuras humanas que instigaram a sua sensibilidade. É sabido que as formas de Cabral percorrem um roteiro criativo que tende à utilização inusitada e extremada das possibilidades da língua, com raras e ocasionais quedas de qualidade neste percurso. Ele trabalha um universo de rimas sempre toantes, talvez pela maior dificuldade de construção exigida, ou ainda pelo distanciamento radical da poesia “inspirada” e de teor sentimentalista. Em termos de métrica, os números tradicionais da poesia clássica são substituídos pelo intervalo métrico oito-nove sílabas. Num trecho de poema de Agrestes, dedicado ao poeta paulista Augusto de Campos, seu leitor “ideal” porque a contrapelo e de poesia antípoda, João Cabral esclarece sobre as formas de sua poesia, de um modo que chega a atingir como que um intento didático:

     Você aqui reencontrará
     as mesmas coisas e loisas
     que me fazem escrever
     tanto e de tão poucas coisas:
     o não-verso de oito sílabas
     (em linha vizinha à prosa)
     que raro tem oito sílabas,
     pois metrifica à sua volta;
     a perdida rima toante
     que apaga o verso e não soa,
     que o faz andar pé no chão
     pelos aceiros da prosa.

Faz-se inegável o fato de João Cabral ter construído uma poética que prima pela extrema clareza e visibilidade solar, com raras incursões noturnas, e com uma formulação mais gestaltiana que freudiana. E nessa investida é que reside, paradoxalmente, a dilatação estética do seu universo de conformação regional, que passa a realizar-se com o alcance de uma poesia de longa vida e de marca inconfundível. Poesia que se entremostra, nos seus instantes mais fortes e extremados, como um gume de faca pernambucana ou de Pasmado frente aos reflexos de um sol nordestino e tropical, ora inquietantemente luminoso em sua extensão e fluência marinha, ora impiedoso e relutante na sua refração andaluza e sertaneja.

(Suplemento Cultural da CEPE, ano XIII, nov. 1999.)

Notas Cotidianas e Literárias LXII

DUAS VARIANTES DO RISO FEMININO

O sorriso da pequena princesa
se aflora em luz livremente;
numa mescla de fel e tristeza
o sorriso da velha leoa
qual conflito ou parábola à toa
só se mostra aqui raramente.

(Inédito, s.d.)

Notas Cotidianas e Literárias LXI

NEM TANTO AO MAR NEM TANTO À TERRA

A amiga observou que os óculos dele saíram tronchos na fotografia batida recentemente defronte à parede azulejada de um shopping da cidade. Reparando bem, não só as lunetas escuras cobrindo as grossas lentes da miopia antiga. Mas também o cerrado das sobrancelhas, o colarinho esportivo, o cordão kitsch de aço e os botões abertos, tudo parecia estar fora de lugar. Ele mesmo, sua vida e arremedos de poesia, a superficialidade de seus pensares e pesares, sua transitação e mobilidade cotidianas. Como se fizesse e não fizesse parte desse mundo. “Você não corrigiu o penteado, a postura, a agressividade permanente do olhar”, disse ela. Eu havia bebido um pouco, por isso o relaxamento. “Deve-se sempre atentar e ter cuidado em posar para fotos”, insistiu. Não ligo para isso, acho besteira. “Uma imagem pode ficar na mão de alguém que não se conhece, e aparecer depois, do nada, sem que se saiba de onde veio”, completou. Não tenho medo da posteridade, penso no futuro como o agora. “Jamais imaginei que você se revelasse tão prático, sendo o poeta que é”, arrematou. Nem tanto ao mar nem tanto à terra.

(Recife, fev. 2011)

Notas Cotidianas e Literárias LX

UM FRAGMENTO DE WALTER BENJAMIN


ARTIGOS DE FANTASIA

Incomparável linguagem da caveira: total ausência de expressão - o negro de suas órbitas oculares - unida à expressão mais selvagem - as arcadas dentárias arreganhadas.
Alguém que se crê abandonado lê e dói-lhe que a página que quer virar já está cortada, que nem sequer ela precisa mais dele.
Os presentes precisam corresponder tão profundamente ao presenteado que ele se assuste.
Quando um amigo apreciado, culto e elegante me enviou seu novo livro, surpreendi-me, na iminência de abri-lo, endireitando minha gravata.
Quem observa as formas de trato, mas rejeita a mentira, é como alguém que se veste na moda, mas não usa camisa sobre o corpo.
Se a fumaça na boquilha dos cigarros e a tinta na caneta tivessem fluxo igualmente fácil, eu estaria na Arcádia de minha arte de escritor.
Ser feliz significa poder tomar consciência de si mesmo sem susto.

(In: Rua de mão única, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Brasiliense, 2000)

Notas Cotidianas e Literárias LIX

SONETO PRINCIPALMENTE DO CARNAVAL
                                    
                                                 Carlos Pena Filho

Do fogo à cinza fui por três escadas
e chegando aos limites dos desertos,
entre furnas e leões marquei incertos
encontros com mulheres mascaradas.

De pirata da Espanha disfarçado
adormeci panteras e medusas.
Mas, quando me lembrei das andaluzas,
pulei do azul sentei-me no encarnado.

Respirei as ciganas inconstantes
e as profundas ausências do passado,
porém, retido fui pelos infantes

que me trouxeram vidros do estrangeiro
e me deixaram só, dependurado
nos cabelos azuis de fevereiro.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LVIII

MARIANA ARRAES E A VIDA DAS ÁRVORES

Nas grandes urbes de cimento armado, pode causar estranheza a fala que privilegia a permanência do verde e da vida das árvores. A dicção assim aflorante passa a sugerir uma espécie de fragmentação discursiva, repartida entre a práxis da atitude ecológica e os eventos da linguagem poética. A primeira se ramifica na urgência restauradora do verde, que agora ninguém se atreve a ignorar. A segunda privilegia os ventos da poesia, a poesia sem outra finalidade que não ela própria, sem se pensar nem mesmo nas suas possíveis ressonâncias mundo afora.

Inclui-se nessa segunda categoria o livro de Mariana Arraes, A vida das árvores. Publicado no Recife pela editora Carpe Diem, no outono de 2010, traz prefácio de Lourival Holanda. A poesia assume aqui o seu discurso mais corajoso, aquele que padece da sua própria originalidade, talvez por renunciar aos temas de maior absorção e suposto valor midiático. Entretanto, a apariçãode uma poesia constituída de leveza e do sublime, além de acessível sem facilidades, mostra-se altamente benéfica para quem tiver oportunidade de conferi-la.

O mundo natural se estratifica em coisas e essências sutis, provocando o tempo todo surpresas e espantos, às vezes não visíveis a olhos cegos pelo excesso das vigílias. É como se a simplicidade profunda e essencial do olhar não dispensasse a observação da crosta e da casca externas de árvores, fontes, pássaros e flores que povoam casas, parques, praças e jardins. Para melhor compreensão do que nelas, árvores, flores e fontes, se incorpora como cerne e miolo, como o que se esconde das visadas mais superficiais, opacas e indiferentes.

A vida das árvores contém alguns poemas que revelam a experiência pessoal e familiar da autora em outros países. Contudo, as temáticas de base são preservadas com vigor e naturalidade. Um exemplo eficaz é o poema ´Alegria do ciclo`: 'Hoje, no parque,/ Ao se destacarem das árvores,/ Folhas amarelas voaram o voo mágico do desprendimento,/ Deixando fluir o ciclo da vida// De mim, desprendeu-se/ O peso do passado,/ Minha alma revelou-se/ Por entre as árvores,/ E percebi nas flores o sorriso das fadas'. Entre outras coisas, tais versos traduzem a fruição da infância, a busca de harmonia e comunhão com a natureza e os seres, o ludismo que envolve a descoberta da vida simples em ocasiões e instantes específicos que talvez somente a poetisa tenha captado.
 
Diario de Pernambuco, 12 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LVII

CONVITE PARA O LANÇAMENTO DO LIVRO
MONTEZ MAGNO

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domingo, 6 de fevereiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LVI

ÂNGELO MONTEIRO ENTRE O MITO E A MIRAGEM

Existe na literatura de todas as épocas uma linhagem rara de poetas, a daqueles que também são filósofos. São poucos os nomes brasileiros que se abrigam sob as duas matrizes, mas podem ser lembrados na atualidade o carioca Antônio Cícero, o paulista Rubens Rodrigues Torres Filho, o último Bruno Tolentino e, em Pernambuco, Ângelo Monteiro. Uma propensão metafísica e transcendente para questionar o estrato lógico-racional do mundo é retomada por eles, mesmo que em alguns não fique explicitada essa intencionalidade. Neste passo, em sua produção literária, além do desenvolvimento da poesia das coisas cotidianas, ensejam trabalhar em paralelo categorias e áreas de um sentido poético que revele a busca da verdade e do saber.

A obra poética publicada de Ângelo Monteiro, de 1969 para cá, aparece num volume substancial intitulado Todas as coisas têm língua, numa seleção feita por ele mesmo, processando o corte de poemas em vários livros. A sua poesia diferenciada corre a contrapelo dos seus pares da geração 65, pelo grau de estranheza e autonomia estilística que sugere. Ela faz-se inseparável dos questionamentos definidores do homem como o nascimento e a morte, a presença e a ausência, a solidão e a vida coletiva, a obsessão pelos elementos circundantes a uma natureza que ainda teima em resistir.

Nesta coletânea, alcança momentos da mais alta poesia associados a um texto ou outro que por vezes se encontra deslocado do andamento e do ritmo próprios à matéria poética. Alguns poemas, do início ou mais recentes, podem resvalar, em sua feitura, na parcialidade de uma prosa indesejada, pelo não achamento da palavra exata ou do verso preciso exigidos pela própria especificidade estético-formal do objeto acabado. Aliás, deve-se registrar que o livro O ignorado se apresenta como um expressivo poema em prosa, que adquire as características do ensaio e perfaz um roteiro filosófico que passa pelos clássicos Aristóteles e Platão e por um contemporâneo como Nietzsche. Em O rapto das noites ou o sol como medida, o autor fornece pistas que levam a poetas-filósofos de sua predileção, ao homenagear William Blake e Frederico Hölderlin.

Poeta dilacerado entre o sagrado e o profano, o mito e a miragem, o passado remoto e a contemporaneidade, Ângelo Monteiro empreende uma visão extremada e alerta das coisas e acontecimentos, permeada por um futuro incerto. Visão que descarta o malogro funcional do nosso tempo, que por sua vez tende a privilegiar as cartas carcomidas da política, os foros da concorrência e da indiferença pelo Outro e as estatísticas comparativas e vazias. O perfil dos “manequins” – os conformistas, os usurários e os de inclinação burguesa e consumista irrefreável – é retratado impiedosamente no poema “A fila”, de As armadilhas da luz. Com seu destino de “satélites sem glória”, demonstram uma grande empatia ao culto do banal, das atitudes ultra-reacionárias e da mesmice, como nesta estrofe:

          Eles estão na fila, através das idades,
          incensando o best-seller e o último modelo.
          A lista telefônica é a sua identidade
          e a crônica social seu derradeiro apelo.

Há ocasiões em que o filósofo e o poeta são destituídos pelo cristão, pelo cultor sublimado de um Ente Supremo. Um forte teor de religiosidade emerge em instantes de beatitude e submissão ao Senhor da Espera, traduzidos em hinos e expectações, ou inscritos e realizados numa literatura de salmos, exortações, sermões, cantos ou litanias. A natureza, na poesia de Ângelo Monteiro, não é simples oposição à cultura, mas instância filosófica fundadora da interação do homem com o mundo e a vida, com variantes poemáticas servindo à contemplação neorromântica e à comunhão do poeta com nuvens e árvores, ventos e rios, mares e céu. Em Recitação da espera ele referenda a defesa do verde, a metapoesia e a condição solitária do Ser. A dicção é grave, solene, descentrada embora daquele real cotidiano repetitivo e massificado. Outros poetas são identificados, em influência direta ou indireta, nas presenças de Alberto da Cunha Melo e Carlos Pena Filho, por exemplo. O inquisidor expõe e contextualiza literalmente uma poesia da indagação e da interrogação exaustiva. Intenta desvendar as mais profundas aspirações humanas, assim como deixa entrever a fluência de um passado em que não se lamentava a perda e inacessibilidade do paraíso.

A poesia de Todas as coisas têm língua pode causar certo estranhamento no leitor desavisado – pela sua originalidade e exclusividade, sem epigonismos e nem imitações gritantes de outros poetas e pelo seu conteúdo hermético e quase sempre de difícil acesso. O preço a ser pago pelo poeta será, talvez, o distanciamento e a incompreensão de um ou outro leitor, habituado ou não à leitura de poesia. Isto não significa, contudo, que haja uma inclinação apenas erudita da parte de Ângelo Monteiro, pois ele enseja chegar ao leitor mediano em momentos diversos e não tão raros, onde desenvolve trechos ou poemas inteiros ao gosto popular. As inquietações irremissíveis dos nossos dias não levam o poeta a abandonar a crença na beleza, na harmonia e no mistério das coisas, a fé na redenção do homem e a permanente busca do seu lugar no mundo.

(Continente, ano VIII, nº 92, ago. 2008)

Notas Cotidianas e Literárias LV

A LESMA


A Lesma é o reverso do Sonho
e vai mutilada sem brilho
ao encontro escamoso das ostras
                   sem força
e de borco
como concha exilada dos mares
vadia
bem trôpega
pegajosa de moscas
               é a vontade a negar-se
               é a ação jamais vista ou vivida

A Lesma flutua através das sarjetas
pelos velhos esgotos
pelos bares sem tempo
agonicamente estorcendo-se

Um sangue sem cor e sem nexo deforma reveste seu rosto

(Vigílias, Fundarpe, 1990)

Notas Cotidianas e Literárias LIV

UM CUMPRIMENTO COM ELOGIOS


Renato Suttana, escritor e professor universitário na Federal de Goiás, no Centro-oeste, com vários livros de poesia e ensaio publicados, enviou-me um e-mail em 3 de fevereiro último, em forma de carta breve, no qual expõe a descoberta de "O Mundo Circundante" e estabelece preferências quanto ao conteúdo literário do blog. Solicitei autorização a Suttana para publicar sua mensagem, que compartilho agora com os leitores que acessam "O Mundo Circundante". Na ocasião, aproveito também para indicar o site de Renato, cujo endereço é http://www.arquivors,com/.  Intitulado "Um cumprimento com elogios", eis o que escreveu Suttana:

Prezado escritor Luiz Carlos Monteiro:


Foi com uma alegria boa e um grande prazer que descobri na Internet o seu site, nomeado (muito apropriadamente) "O Mundo Circundante". Apreciei os seus poemas, crônicas e ensaios, mas confesso (e conto que isto não o aborrecerá) que gostei sobretudo da prosa, mais até do que da poesia. E não é que a poesia não seja digna e de alto nível, mas foi uma surpresa feliz me deparar com uma prosa ensaística assim límpida, equilibrada e bem informada (em mais de um sentido) como é a sua - e tão boa que até senti uma certa vergonha das ocasiões em que tenho me aventurado por esse setor da escrita (eu que ando tão longe de ser límpido, equilibrado e bem informado em tantas coisas).

Lembrei-me, lendo os seus textos, de um poema de Mário Quintana, em que se fala do texto como sendo "um gole de água bebido no escuro". Seus ensaios me deram essa impressão: água fresca que se encontra por acaso na selva selvagem (e muitas vezes escura) da grande rede de computadores. (Mas as selvas também são férteis e estão cheias de riquezas.)

Menciono, com especial admiração, a sua grande crônica intitulada "Escritor mergulhado no ofício" - que nos antecipa, de algum modo, e diante da qual o leitor-escritor só tem mesmo vontade de dizer: "É isso! É exatamente assim. É exatamente o que eu gostaria de ter dito!"

Aproveito, enfim, modestamente, para convidá-lo a visitar, num dia desses, o meu sítio na rede, que tem por nome "O Arquivo de Renato Suttana", onde publico poesias e prosa de minha autoria, bem como trabalhos de outros autores (http://www.arquivors.com).

Vai o abraço do

Renato Suttana

Notas Cotidianas e Literárias LIII

POEMA DE CARNAVAL


Polichinelos azuis
borboletas de prata
serpentinas, confetes
despenteados cabelos
saracoteio nas ruas:

no frevo rasgado
avança a folia
dobrando as esquinas
de assalto nas praças
velozmente nas ruas:

expelindo os suores
excitando os humores
explodindo em rumores

que agora só vê-se
o povo nas ruas!

(Vigílias, Fundarpe, 1990)