segunda-feira, 19 de abril de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXI

AS CIDADES E A CULTURA

É um fato consumado que as capitais brasileiras se movimentam com grande avidez cultural, nos campos extensivos da arte e da literatura, nestes inícios do século 21. Ninguém pode negar que, em cada uma delas, há a insurgência de um surto cultural que jamais se revela em mero continuísmo de outras décadas e gerações, em espúria macaqueação de outras regiões e países. Mas somente quem pode absorver o melhor de gerações anteriores, saberá os rumos a tomar quanto à sua própria geração. Porque os artistas, intelectuais e escritores buscam caminhos que, se não trazem nada de extraordinário no campo da inovação e da inventividade, não se caracterizam apenas pela repetição e esvaziamento. No meio destes encontros, aparições e performances organizadas ou caóticas, há que separar a palha verde do milho, o manguito mofado e travoso da manga-rosa saudável e restauradora.

Em várias manifestações artísticas e culturais existe gente se destacando. Não será preciso alinhar Brasil afora tantos nomes das artes plásticas, dança, cinema, teatro, música, literatura. Todos os dias aparecem caras novas em jornais de grande circulação. Contudo, o hábito de ler jornal diariamente está cada vez mais perdendo espaço para uma visada rápida nas manchetes, para a leitura superficial e sem compromisso de um ou outro artigo. Está se tornando uma prática maciça acompanhar o que acontece localmente ou no planeta pela Internet. Gente de empresas privadas e públicas produzindo eventos de grande, média ou pequena dimensão, blogs e sites que proliferam geometricamente, mídias mais atuais e em voga que se popularizam do dia para a noite. O acesso do mundo se faz ao alcance da mão, desde as teclas de um desktop ou de um notebook. A característica geral e em vias de uniformização dos seres humanos do pós-moderno traz de volta o individualismo e a exclusividade dos ambientes virtuais em casa, no lazer, no trabalho, na escola, em todas as extensões setorizadas da vida social.

Rasgos da cultura rural convivendo com o mais ferrenho urbanismo, com espaço para todos que quiserem trabalhar e ousar. Forrozeiros, declamadores e violeiros bem aceitos por plateias ecléticas, abrangendo desde o pesquisador universitário dos núcleos acadêmicos fechados, passando pelo funcionário público sacramentado, pelos empreendedores de opções financistas menos ambiciosas, até chegar aos jovens iconoclastas em formação. No Recife há um pessoal tão ousado que faz de toda a cultura uma festa só. São escoceses deslocados em suas saias tropicais, meninas sem senso de humor de longos coturnos e cabelos curtíssimos. Os maduros, idosos e senhoras longevas abrigam-se em academias e sociedades culturais, sem perder o vigor e a alegria de continuar burguesamente produzindo, expondo e publicando.

Neste torvelinho de vaidades em escala estática e sem ascensão visível, uma interrogação saltita no ar, pois ela deseja encontrar o artista: o poeta, o ficcionista, o pintor, o ensaísta, o cineasta, o fotógrafo. O poeta que não acumule versos no papel ou na tela simplesmente, desarrazoado e sem o senso secreto do ritmo. O ficcionista que, dentro de seu remover-se ocidental e cósmico, mostre a que veio, e se poderá ser partilhado por tantas pessoas que a vista não alcance. O pintor que não saiba apenas misturar cores e tintas, e sim transformá-las em objetos de desejo, prazer e conhecimento. O ensaísta que, na ambiência de sua especialização, mostre-se desabrido e aberto às múltiplas manifestações da arte e da cultura. O cineasta e o fotógrafo que vejam mais do que a realidade chã logra propiciar, libertos dos naturalismos e impressionismos que teimam em espetacularmente ressuscitar.

Um objeto para se brincar como outro qualquer, e de preferência, para aqueles amigos mais à frente do tempo, é a crítica cultural multifacetada em crítica sorriso, crítica coluna social, crítica acrítica. A matriz larga e cilíndrica da crítica se transforma em coisa tênue, barato, curtição para estes simulacros de analistas da própria sombra e do umbigo alheio. Abastecem e confortam uns poucos egos, a retirar de suas pretensas obras e trabalhos vistos de passagem, um salto qualitativo que tais supostas obras não comportam nem podem gerar.

É impossível negar, entretanto, ainda quando se espalham vertiginosamente tribos, confrarias e guetos, que as grandes cidades não cochilam quando se trata de cultura. A maioria dos agentes culturais não tem votos, a não ser o próprio, embora quando unidos interfiram nos orçamentos disponíveis. Posam às vezes de lideranças políticas e sujeitos politizados, cuja popularidade não resiste à primeira sabatina, enquete ou provocação pública. É preciso reconhecer que, nos cargos culturais onde corre dinheiro, não está descartado um político profissional comandando em surdina. Verbas vs. votos. E vice-versa. É o braço amigo quem aprova projetos, oficinas, shows, publicações. Que é o mesmo braço inimigo e desconhecedor da cultura, a promover nulidades. Ninguém pode mais do que estes braços todos comprimidos e juntos em torno dos fogos ambíguos e utilitários.

Não basta somente liberar verbas para pessoas ou entidades. Tem de haver algo mais que atinja a população carente de acertos básicos. Com trabalhos pontuais que precisam do mínimo de dinheiro público. Eventos que à vezes se tornam mais importantes para uma cidade do que as costumeiras apresentações diversificadas em festivais, shows, oficinas, congressos, palestras. Um trabalho subterrâneo e sem alarde midiático, de poesia, fala e teatro popular, a exemplo do de Ariano Suassuna. Composto de aulas que param e mobilizam as numerosas cidades aonde chegam, mesmo sendo a divulgação restrita. Os resultados mostram-se avassaladores, pois exibem momentos e funções populares de alegria autêntica, conscientização artística e interação criativa.

Quando se coloca um político profissional num cargo de gestão cultural, o desastre é certo e esperado. Ele vai levar consigo amigos, correligionários e gente auto-indicada ou indicada por pessoas de suas relações. Daí ao nepotismo disfarçado em obscuras genealogias ramificadas e à ausência de estratégias e ações é um passo. Se o gestor, de outra parte, é um fazedor de cultura, poderá ter bom trânsito entre fazedores de cultura, mas, quase sempre, se mostrará sofrível administrador e político. Um terceiro caso é o do gestor que é apenas técnico na área envolvida, que poderá ser bom administrador, contudo não gozará de transitação política nem entre quem produz cultura.

Para o mandatário de um Estado ou de uma cidade, esta é uma equação difícil de ser resolvida. No seu íntimo, preferiam talvez nomear alguém da política, por motivos e injunções óbvias. Podem ceder à tentação de indicar um nome proposto em amizade. Ou pela mera competência técnica. O desejável seria, para os cargos da cultura, nomes que aliassem, além de compromisso cultural já comprovado, as três condições referidas: a política, a técnica e a cultural. Algo espinhoso de se encontrar nos dias de hoje, pois todo mundo tem a necessidade de especializar-se em alguma área ou matéria, como consequência dos avanços da globalização e da competitividade.


QUANDO LUCILA DESCOBRIU O AZUL DA POESIA

Chega um momento na vida de todo artista verdadeiramente criador em que aflora a urgência de uma guinada nos rumos e moldes de sua criação. Como algo que pode emergir na forma de ruptura de atitudes estéticas e valores humanos até então assumidos e praticados, gerada pela forte insatisfação com o já realizado. Na outra ponta do novelo, oscila o barco sóbrio e conformista de quem irreversivelmente se ajustou às injunções e exigências diárias de um questionável senso comum, que não ensaia nenhum passo fora das rotas e trilhos de antemão concebidos.

Para a poetisa Lucila Nogueira, esse instante de um novo caminhar pelo campo extenso, desconcertante e quase sempre desconfortável da poesia, se manifesta com o livro Desespero blue. É um caminho que se antecipa em outros textos, como no Livro do desencanto, quando ela se posicionava quanto a preferências artísticas e existenciais, ao escrever “Estou mais para Elis e Janis Joplin/ Florbela Espanca, eu sou Virginia Wolf” ou “tudo que em mim pareça comedido/ não passa de uma máscara de vidro”. Mesmo no livro da estreia em 1979, Almenara, essa compulsão para a liberação desejada e a frustração de não consegui-la, faz-se presente no fogo obscuro da alma “que a abismos se sabe condenada”.

Desespero blue tem sua referência estrutural aproximada a Imilce (terceiro volume da tetralogia ibérica, completada em 2001 com Amaya) pelo uso de versos entrecruzados em formas espacializadas, que propiciam mais de um modo e sentido de leitura, numa disposição visual que imprime grande flexibilidade aos poemas. A diferença de tratamento da matéria temática é flagrante: o modo classicizante e dramático de Imilce transplanta-se agora para os labirintos urbanos dos encontros noturnos e transgressivos. A impulsão feminina que não quer se deixar aprisionar pela incidência do experimentado, e por isso se desveste e despoja de todo o inquietantemente recente, incluindo-se aí a infância.

Em Desespero blue insurge-se uma outra Lucila Nogueira, conforme ela mesma afirma num verso, “essa outra que descobri carregar dentro de mim”. Os poemas estão dedicados a pessoas próximas, como espelhos de uma temporalidade contemporânea fragmentária, numa partilha que contempla inicialmente os amigos e posteriormente se estende ao mundo circundante sinalizado por “todos e qualquer um” (caso de dois poemas fortíssimos, “Desespero blue” e “Feminina / Masculina”).

A dicção escolhida ultrapassa certa solidão romantizada e suportável com esforço e sacrifício, ao cantar a ausência de algo inominável e interdito: “sei que a palavra não cessa/ a dor da solidão presa no corpo/ mas sei que escrever ajuda/ porque todo silêncio é perigoso”. E também ao demitir e expor o decoro que refreou por muito tempo os sentimentos mais profundos e subliminares do lírico, no embate consigo mesma e com o outro, tão próximo quanto irremediavelmente distanciado: “porque você nada sabe da insônia/ e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda/ e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar em tudo/ estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito”.

Entre os malditos que elege em “Desdizeres”, o delirante Antonin Artaud, que suportou a França surrealista em estado permanente de loucura, “o Torturado [que] tornou-se para todos o Reconhecido”; o velho bêbado e depravado Charles Bukowski, a praguejar no poema de Lucila, dizendo aos quatro ventos da América que “a vida gira sobre um eixo apodrecido”; a delicada e deprimida Sylvia Plath, falando em tom suave e suicida para si mesma que “morrer é uma arte, como tudo o mais/ isso eu sei fazer como ninguém”.

O conjunto dos versos deste livro vem à tona com vigor, sedução e ironia, preservando, contudo, o sublime daquela voz singularizada do início. São as palavras que seguem o poeta aonde quer que ele vá, com seu léxico estigmatizado pela passagem dos dias e na retenção disponível para uso individual e intransferível. Desse ponto de vista, Lucila não se afasta radicalmente de uma fala que a transformou, em duas dezenas de livros, na poetisa de obra reconhecida e solicitada que é, utilizando-se de formas fixas, com predileção especial pelas estrofes em quadras. Também jamais renegou o sentimento de grupo (que não configura alinhamento estético), e que, no entanto, definiu sua ligação à geração 65 de Pernambuco. Geração em que se alojaram poetas os mais diversos, a maioria tendo buscado a consecução de estilo próprio no mar demasiadamente caótico de confusões, impasses, engodos e disfunções da poesia contemporânea brasileira.

Desespero blue é livro para ser curtido ao som de um B. B. King e um Eric Clapton juntos, destilando o sabor instigante de um imaginário audacioso e ainda inalcançado. Neste embalo de vozes e cordas endiabradas, a fruição violenta de suas canções e notas logra perpassar com irreverência ímpar o ar de um tempo indiferente e amorfo, banalizado e incompleto. Onde se processa também a absorção de tais poemas sem mais contemplação passiva nem piedade atávica. Para que, na perspectiva única desse instante vivido pelo ouvinte-leitor, cheguem à superfície os meandros perigosos e as veredas subterrâneas de um mundo que se realiza no transitório de sua nudez e linguagem.

In: Suplemento Pernambuco, Recife, nº 43, set. 2009.


RUBEM BRAGA NO RECIFE

Em Gilberto Freyre de A a Z, dicionário elaborado por Edson Nery da Fonseca, o verbete “Prisões”, faz referência a uma crônica de Rubem Braga, intitulada Recordações pernambucanas, que conta como Freyre foi preso pela primeira vez em 1935, da qual recorta-se o trecho seguinte, que é parte integrante do artigo “Gilberto Freyre de A a Z”, deste resenhador, publicado na Continente Multicultural, em abril de 2003: “Gilberto naquele tempo andava pelos 35 anos, já publicara Casa-Grande & Senzala e estava acabando de escrever Sobrados e Mucambos, e era solteiro. E eu também era, o Cícero Dias também era. Assim fomos os três, num trenzinho da Great Western, à estação de Prazeres para subir o morro e participar da festa de Nossa Senhora, naquela igreja que domina as colinas de Guararapes, onde brasileiros e holandeses se guerrearam. Usava-se ir às antigas trincheiras apanhar folhas para benzer, pois as plantas dali tinham sido regadas pelo sangue dos heróis. E nas trincheiras aconteciam casos de amor. A certa altura Gilberto sumiu e, depois de muito procurá-lo, Cícero Dias e eu fomos até a estação: lá estava ele preso por um sargento, pois atentara contra a o pudor publico fazendo amor com uma jovem mulata no capim de uma trincheira. Custou muita conversa e algum dinheiro, mas libertamos o sociólogo. Coisa que convém referir para que não seja esquecida em sua biografia. Nestes seus maravilhosos 82 anos de idade. No entanto, Edson Nery põe em dúvida a veracidade do relato, ao arrematar que Gilberto Freyre disse a seu filho Fernando Freyre que tal prisão nunca ocorreu”.

Seja como for, isto serve como um dos registros da presença de Rubem Braga no Recife, de maio a setembro de 1935. Outras referências, textos e documentos existem, como a sua extensa biografia Um cigano fazendeiro do ar (São Paulo, Globo, 2007, 610 p.), que reflete esse e outros tempos. Escrita pelo também capixaba Marco Antonio de Carvalho (1950-2007), levanta com riqueza detalhista o longo percurso vivencial e nômade de Braga, até fixar-se no Rio de Janeiro. Um capítulo inteiro, “1935, Recife: Folha do Povo” é dedicado à passagem do cronista pelo Recife.

Aos 22 anos, Rubem Braga assume posições firmes no cenário político e cultural brasileiro. É antigetulista e combate um alto representante do catolicismo conservador, o crítico literário Alceu Amoroso Lima. Não poupa os poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima, que haviam lançado naquele ano de 1935 Tempo e eternidade, livro de poesia voltada para os preceitos cristãos. E não compactua com o integralismo de Plínio Salgado nem é comunista de carteirinha, embora defenda ideias e ações à esquerda, ao fazer parte de grupos paralelos da ALN – Aliança Libertadora Nacional, cujo presidente de honra era Luis Carlos Prestes.

Levado por António de Alcântara Machado, trabalha em O Jornal, dos Diários Associados, mas sua relação com Assis Chateaubriand é difícil, precária, instável. Alceu Amoroso Lima exige a demissão de Braga, tendo como causa um artigo do cronista em que este atacara a Igreja Católica. Esta crise culmina com a vinda de Braga ao Recife. Escreve Marco Antonio de Carvalho: “Dario de Almeida Magalhães propõe a Rubem que vá para o Recife e se junte à redação do Diário de Pernambuco, também dos Diários Associados, que já publicava suas crônicas; ele agradeceu e saiu em definitivo das proximidades de Chateaubriand, partindo para Pernambuco, de barco, seu meio de transporte preferido, entre o vento, o mar, o céu”.

Convive com os intelectuais e boêmios locais, frequenta a zona do meretrício e escreve crônicas que se popularizam em todo o Brasil. Faz amizade com Valdemar Cavalcanti, Manuel Diégues Júnior, Capiba, Noel Nutels, Fernando Lobo, Cícero Dias, Odorico Tavares e Gilberto Freyre, entre outros. Carvalho contabiliza 25 crônicas escritas no Recife para a Folha do Povo, jornal da ALN nordestina editado por Braga. Depois de três prisões, deixa a cidade em 13 de setembro, com destino a Porto Alegre e daí ao Rio de Janeiro.


O POETA AOS CINQUENTA ANOS

1

São cinco décadas

que pareceram

mais cinco séculos


a idade dele

no ano invicto

de dois mil e sete


poeta em trânsito

a remover-se

nesta cidade


mauriciana

de mar e plano

que é o Recife


sempre atento

ao urbano

de suas tribos


nunca esquecido

da terra-matriz

que foi Sertânia


dos arredores

de sítio e mata

da sua infância


em Cacimbinha

no Rio da Barra

ou Jacuzinho.

2

Percurso estreito

este que fez

do nascimento

até aqui:


da clara infância

à juventude

mais malograda

que desregrada,


de tantos nadas

e tantos nãos

que enfrentou

sem se dobrar,


veredas falsas

e traiçoeiras

que desvendou

sem vacilar,


abraços frouxos

que devolveu

sem comoção

nem confiar.

3

Caminho raso

e enviesado

de nordestino

tímido e ambíguo,

pretenso e falho

como escritor.


Caminho obscuro

de estudante

desnorteado

e presunçoso,

e assim frustrado

como doutor.

4

Em cinco décadas

que se estenderam

quais cinco séculos

pagou bem caro

sua performance

desintegrada

em estilhaços

da agonia

louca e diária,

sem calmaria

mas necessária

da vida prática;


pagou com juros

sua poética

fragmentada

entre a escrita

precisa e rara

que concebeu

e o resultado

tacanho e parco

dessa poesia

que cometeu.

domingo, 11 de abril de 2010

CINCO BALAS CONTRA A AMÉRICA

Com o aparecimento de Cinco balas contra a América, do jornalista e escritor cabo-verdiano Jorge Araújo (Editora 34, São Paulo, 2009), a literatura infanto-juvenil recebe uma forte e diferenciada contribuição no sentido próprio do seu fazer. Produz-se um sério abalo nas suas estruturas convencionais, no modo arraigado e repetitivo da concepção, ultrapassando as fronteiras e as missões previsíveis e às vezes simplórias de apenas entreter ou edificar. Ao invés da orientação autoral explícita ou subliminar para temáticas que ativem vendagens contabilizadas em centenas de milhares de edições, promove-se aqui um espaço amplificado de reflexão, ação e animação para os jovens leitores, que subverte as ambiências e enredos comumente encontrados no gênero. A edição, didática e de venda proibida, faz parte de um programa do ministério da Educação, o que garante a sua distribuição na rede oficial de ensino. As ilustrações, de traços magros e avantajados, expressivos em sua economia ambígua, ficaram a cargo do angolano Pedro Sousa Pereira.

A motivação psicológica dos quatro personagens adolescentes aprofunda o senso da discussão em torno à sua origem e formação, os embates da sua prática de vida diária, onde afloram as qualidades e defeitos inerentes ao humano, inclusive a coragem e o medo, que serão testados na aventura que viverão. O Comandante Zero, personagem disfarçado e misterioso, é temperado na mistura de velho boêmio mulherengo e sátiro, emigrante e nativo que somente com o tempo revelará a que veio, na sua faceta verdadeira de militante revolucionário calejado. Viverá ainda o bastante para absorver a vitória merecida pela luta contra os colonialismos europeus, e neste caso, mais especificamente português.

É o Comandante quem deflagrará a trama e a ação inicial do livro: “Foi Zapata quem recebeu o revólver. Ficou deslumbrado, tão deslumbrado que os seus olhos de pólvora seca dispararam estrelas. Mas logo, logo, tratou de domesticar a euforia, inspirou sentido de autoridade, encheu o peito de um ar de falsa tranquilidade. Tinha de estar concentrado, a missão era de grande responsabilidade”. Com Zapata, cujo nome verdadeiro era Salazar, encontravam-se Aristóteles, seu escudeiro subserviente, e os amigos inseparáveis Bob e Frederico, que estavam na aventura mais à procura de diversão, embora não espantassem a percepção e a práxis dos ideais revolucionários em voga na cidade cabo-verdiana do Mindelo e nas circunvizinhanças guineenses.

Aos quatro “miúdos” será confiada a missão de ficar de guarda, numa praia da ilha de São Vicente, no arquipélago de Cabo Verde, prevendo a eventual aparição e invasão de tropas norte-americanas, tendo como armamento apenas um revólver com cinco balas. Cada capítulo, acompanhando o rumo dos acontecimentos, será intitulado Bala 1, 2, 3, 4 e 5, Bala Perdida e Bala Final. Questões históricas e ideológicas desfilarão com verdade e leveza, mas sem denuncismo, planfetarismo ou propaganda dirigida. Em breves referências, não serão escondidos os papéis dos principais líderes das guerras pela Independência e das revoluções comunistas ocidentais e orientais.

Talvez fosse muito cedo para assumir missão de adulto, mas a fronteira entre duas idades mostrava-se tênue e ansiosamente aguardada sua quebra. Enquanto isso, Bob dedilhava seu violão, Zapata exercia sua inclinação de chefe desastrado, Frederico bebia da mesma aguardente e partilhava histórias de mulheres com Bob, e Aristóteles se guiava pelo mesmo passo inseguro e vacilante de Zapata. O sentimento de grupo mantinha-se mesmo assim, entre a tensão e o companheirismo, na discórdia e na desavença, na alegria de zombar do outro, tendo como cerne motivador a conquista de ser visto e distinguido pelo Partido. A necessidade da guerra justificava parcialmente o alinhamento da juventude guineense e cabo-verdiana aos eventos da libertação do jugo colonial. Os garotos, no entanto, não poderiam ser reprimidos ou se afastar demasiadamente de suas vivências pessoais na ilha, onde sempre haveria lugares como o cinema Éden-Park para os encontros jovens, despojados e aventureiros.

A fragilidade e o egoísmo de cada um vai se manifestar durante a noite que passarão, forçosamente, em vigília. Além disso, as ambições políticas serão desnudadas pela falta de preparo e maturidade. Porque sucumbem ao menor sinal de presença humana ou evento marinho. Tudo é motivo para a proximidade e viscosidade do medo: “Os quatro não mais saíram da tenda durante o resto da noite. Ficaram encostados uns aos outros, abraçando-se uns aos outros, assim sempre tinham a sensação de estar mais seguros. Mais protegidos. A escuridão continua a fazer das suas, a pregar-lhes partidas. Foi uma noite em branco, uma noite sem sono. Nunca no Mindelo os espíritos andaram tão à solta como naquela noite. Deveria estar a preparar-se uma revolução no céu”.

Quando a manhã chega sobre a praia, a euforia desfaz ressentimentos, provoca abraços e reconciliações num momento único na vida dos quatro militantes inseguros e sem experiência ou batismo de luta, sob a guarda da família, voltados, sem que por vezes o soubessem, para o que caracterizava as coisas de sua própria fase. As cinco balas, fornecidas pelo velho Comandante, serão disparadas por Zapata para comemorar a vitória da ultrapassagem da noite. Transformadas, surpreendentemente, como numa roleta russa não programada, em seis, por um artifício de Zero, um dos bravos “pioneiros” militantes, por pouco, não é atingido fatidicamente: “Desde que a sexta bala tinha sido disparada, desde que a bala adormecida na câmara ressuscitara, desde que Frederico escapara como que por milagre à execução sumária, que estavam em estado de choque. De todos, Zapata era sem dúvida o que estava em pior estado, recuperara o espírito, é verdade, mas não o juízo. Não dizia coisa com coisa, tinha esquecido todo o palavreado revolucionário”. Nenhum inimigo colonialista ou imperialista tinha surgido nas horas da vigília, mas Bob foi o único que testemunhou, após o sexto tiro, em meio à aflição dos outros e à sua própria, um elemento estranho na praia de São Pedro: “O porta-aviões navegou calmamente em direção aos mares do Sul, foi engolido pela contraluz. Bob fez de tudo para chamar a atenção dos restantes colegas de vigilância. Correu, gritou, esperneou, gesticulou. Desesperou. Tudo em vão. Ficou guardião de um segredo que era muito maior do que ele. De um segredo que nunca poderia contar, partilhar, porque nunca ninguém iria acreditar”.

As fórmulas infanto-juvenis batidas e estanques, engessadas e utilizadas à exaustão por editores ávidos e escrevinhadores midiáticos, declinando quase sempre da qualidade estética, foram rejeitadas pela mão de Jorge Araújo, cujo texto assume parâmetros de boa literatura. Auxiliando a reflexão e o questionamento de quem mais precisa disso, daqueles que estão de passagem para a vida adulta, a singularidade desse livro é fruto da sua inteireza em não esconder nem escamotear o cerne polêmico que o engendra e configura. Falar de pessoas entre 14 e 16 anos de idade, envolvidas nos meandros políticos de independência e colonialismo, dominação e liberdade, não é tarefa fácil, exigindo tato e bom-humor, responsabilidade ideológica e traquejo vivencial para que sejam evitados os tons do panfletário e do propagandístico.


UM CONTO MINIMALISTA DE OSMAN LINS

Exercício de imaginação é um conto de dimensão minimalista que o escritor pernambucano Osman Lins (1924-1978) deixou inédito em livro. Tematiza preferencialmente a infância, embora essa motivação ficcional lúdica e hedonista que o lastreia aflore-se permeada de um alto teor de sofisticação linguística e de inventividade rítmico-sonora:

"O pássaro, a menina, a bola e o gato. O gato, a bola, a menina e o pássaro. O pássaro a bola o gato a menina. A menila o pasto a bona e o gásaro. A Pastomenila e o Bonagásaro.
Encontraram-se um dia, numa encruzilhada, a Pastomenila e o Bonagásaro. A Pastomenila: corpo de penas, asas de palheta, rabo curto de seda e longos dentes de vidro; o Bonagásaro talvez fosse feito de esponja (diminuía de volume, quando o apertavam), falava aos berros através do bico muito comprido e rubro, andava sem que ninguém lhe ouvisse as pisadas e saltava para o alto, com facilidade, acionado por molas, quando contrariado.
A Pastomenila abriu as asas; o Bonagásaro pôs-se a andar em silêncio. Soprou entre eles um vento brando e morno.
– O Verão está quase chegando – berrou o Bonagásaro.
– O Inverno também – disse a Pastomenila, falando devagar, para que as palavras fizessem tilintar os cristais dos lustres de cristal.
– Ontem chegaram os peixes – foi o brado seguinte.
Fazendo ressoarem melodiosamente os incisivos, a Pastomenila informou:
– E amanhã, às 10 horas, no máximo, chegam as aves.
– O Pavão também?
– Não.
O Bonagásaro mastigou a palavra “não”, engoliu-a e começou a saltar extremamente irritado. “Por que o Pavão não vem? Por que não vem o Pavão? O Pavão não vem por quê?” Seu bico vermelho parecia uma espada, enquanto ele explorava as possibilidades sintáticas da frase. Quando silenciou, disse a Pastomenila:
– O Pavão chega hoje com os leões.
O Bonagásaro bradou: – Por quê? Quem deu ordem?
A Pastomenila começou a girar, tilintando a cristalina dentadura. Abriu de súbito as asas de palheta e enlaçou chorando o Bonagásaro, que ficou menor.
Nisto, o vento, antes suave, entrou a soprar forte. Receando ser arrebatados, o Bonagásaro e a Pastomenila uniram-se com desespero.
– Também está chegando o Outono – gritou ainda o pobre Bonagásaro.
– Também a Primavera – tilintou a outra.
Regiraram os dois, ouviu-se em meio àquele torvelinho, com um rumor de taça quebrada contra as pedras, a palavra ARPRIMEVA! Cessado o vento, eram outra vez, na página, o gato, a menina, a bola e o pássaro. Não havia sinal de Pastomenila nem de Bonagásaro. Cerrei os dentes e ergui a cabeça, à espera do Pavão, com sua imponente guarda de leões."

Nada de novo ou surpreendente acontece enquanto não são definidos os dois personagens principais, a Pastomenila e o Bonagásaro. Seus nomes resultam da junção dos elementos humanos e materiais iniciadores da narrativa, tais quais: o pássaro e seu voo azulado; a menina e o seu princípio feminino irrecusável porque prévia e sensivelmente delineado e apresentado; a bola e seu movimento que é similar ao da própria Terra; e o gato feito felino terreno à aparência frio e indiferente a tudo, porém constantemente a saltar muros e a remover-se no mundo subterrâneo noturno de telhados e espaços vazios.

Esses elementos configuram certo mundo lúdico, de personagens e objetos perfeitamente identificáveis, mas que se transmudam, sintaticamente transformados, no sentido mesmo de sua dinâmica e renovação, em novos objetos e seres. A Pastomenila e o Bonagásaro fundem-se insolitamente a partir do seu encontro definidor numa encruzilhada, lugar característico e determinante de opções e escolhas, ou da inexistência delas. E serão, até o desfecho do conto, os novos integrantes da narrativa, sustentados em vocábulos modificados e reagrupados, como a empreender a simbiose ou a desintegração de seus fonemas em movimentos inclusivos e excludentes. E assim, permitindo novas construções vocabulares, abarcando a inversão e a reversão, especialmente no trecho inicial do conto, onde a sintaxe ora se mantém intacta, ora é recriada. O texto passa a evoluir duma maneira que incorpora a mudança situacional desde a ultrapassagem da linearidade espacial e temporal, ao aparecimento de pequenas variações e associações sintáticas e semânticas. A narrativa pode suscitar, assim, voos imaginativos inusitados, que teriam como aliados outros jogos prazerosos e descobertas lúdicas da aventura literária.

A chegada das estações se dá com alarde e estridência. Quando o vento começa a soprar forte, a Pastomenila e o Bonagásaro unem-se com desespero. Efeitos guturais traduzem onomatopéias e cacofonias e sugerem sinestesias. Também possibilidades de intervenção junto a modalidades de prosa visual, na fragmentação do ficcional, em diálogos inusitados, vertentes trocadilhescas, recriações anagramáticas, noções de espaço-tempo subvertidas em ação, intermédio e desfecho.

Mesmo que a clientela infantil desconfie antecipadamente de todo esse engenho de jogos e performances, de significantes sobrepostos a significados, ela não deixa de recriar, em linguagem própria e intransferível do seu próprio mundo, uma dinâmica ritualesca de gestual, sons, mímica e silêncios. Pode-se apenas imaginar o prazer inaudito que à criança é facilitado sentir, ao inventar seus próprios jogos de palavras, silêncios e sons, fazendo a diferenciação do seu mundo do mundo adulto pragmático e racional, através de reinvenções de palavras de um ludismo inesquecível e peculiar. A escrita se desfaz no parágrafo final como um brinquedo depois de certo tempo de uso, ou pela curiosidade de seu dono em desmontá-lo – o gato, a menina, a bola e o pássaro voltam, num abrir e fechar de olhos, a ser o que eram.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XX



O LIRISMO TELÚRICO DE ANTÔNIO CAMPOS


Portal de sonhos (Escrituras, São Paulo; IMC, Recife, 2008) é um livro em formato de álbum, fazendo jus ao nome e associando, de modo flagrante, poesia e imagem, poema e fotografia. Neste trabalho, com imagens de Gustavo Maia e designer de Patrícia Lima, uma coisa jamais está dissociada da outra: o sentimento telúrico que aflora, aparece retratado numa imagem que lhe dá substância lírica e reforço vital, criando uma espécie de dependência parcial entre o preto-e-branco que reflete tanto as nuances da paisagem como os tipos e o branco da página.

Os poemas podem, no entanto, continuar existindo sem as fotografias, e o contrário também é verdadeiro. Na escrita ou na oralidade, textos produzem imagens de configuração mental, e não expressamente visuais. O visual chega pela nomeação de objetos, pela comparação entre eles, pela metáfora certeira e pela força que se oculta nas palavras em momentos anteriores à leitura ou à recitação. O poema passa, então, a exprimir em vocábulos e versos uma situação, um instantâneo, um acontecimento, na mesma proporção em que revela o sentimento, a emoção, a alegria ou o tédio de viver.

Este livro-álbum tem como abertura o texto “A outra voz de Antônio Campos”, de Lucila Nogueira, que elucida o percurso temático desenvolvido pelo autor nas duas partes que compõem o livro, cada uma com dez poemas. Aliás, a “enunciação lírica” de que fala Lucila, ocorre nos dois blocos, sendo que, conforme ainda deixa claro, na segunda parte vem como prolongamento e o autor se aproxima bem mais do seu “objeto estético”. Ela classifica a primeira como “verdadeiras telas do Nordeste”, expressionismo que se enseja também na parte 2. Contudo, alguns poemas ultrapassam os assuntos e sentidos detectados. Tudo isso indica que tais poemas foram trabalhados cuidadosamente, ampliando-se e ramificando-se em outras variantes e instâncias temáticas (é o caso, por exemplo, do poema inicial do livro, “A luta”, que terá uma breve análise desenvolvida mais adiante).

Se não houvesse essa subdivisão, creio que não haveria prejuízo do ponto de vista estrutural, pois os poemas demonstram ter sido construídos com a mesma disposição interna, vocabulário, sintaxe e corpo metafórico utilizados em todo o livro pelo autor. A disposição interna do poeta se refaz na luta, na espera, na solidão, nos ritos da coragem e do medo. Há um vocabulário convergente pela coincidência de palavras e metáforas utilizadas e repetidas em várias passagens e trechos de poemas, no rio feito “punhal castanho”, no próprio rio castanho, no canário amarelo ou dourado, na casa caiada de branco e no céu invariavelmente azul.

Em apreciação crítica sobre Portal de sonhos, o poeta Vital Corrêa de Araújo destacou, no texto “A poesia como destino do humano”, a presença, em quase todos os poemas, do “tema da duração temporal e humana e intemporal natural”, através da correlação temática de “espera, manhã, idade, safra, paixão, duração etc.” Para exemplificar, em três poemas, a manhã aparece explicitamente. No que é titulado “A manhã”, tudo retorna ao tempo da infância, aos guizos, bichos, contornos solares e fenômenos contrastantes da criação, como o silêncio que contém ruídos e os ruídos que crescem com a claridade : “A manhã cheia de guizos/ crescia com a claridade./ Os bichos se estendiam ao sol/ para que mãos de luz os acariciassem./ O silêncio fazia parte da paisagem, era alvo,/ e os ruídos saíam das suas entranhas/ como bruscas parições que do seu ventre saltassem./ Tudo era o mesmo, mas sempre novo,/ um repetir diversamente, a mesma criança.”

Em “Manhã recifense”, mesclam-se os caminhos abertos pelo Capibaribe para o Agreste e o Sertão, partindo do litoral: “Neste litoral, recifense e nordestino,/ o mar se faz tão verde, claro e cristalino,/ que parece ser um espelho gigantesco que amplia/ a visão do canavial e do seu trágico destino,/ que prende, encarcera e às vezes mata,/ na beleza das suas flechas, pendões e bandeiras,/ como se as canas fossem imensos espinhos/ crucificando o trabalho de uma vida inteira.” Já no breve “Manhã de domingo”, é possível encontrar, em meio ao caos urbano, as manifestações naturais de flor e fruto, a ocorrência simples da manhã tropical e desvelada: “Manhã cheirando/ a fruto maduro./ Nascendo como um/ girassol se abrindo./ Manhã do Recife, manhã de domingo.”

Talvez a maior influência de Antônio seja o próprio pai, Maximiano Campos, com tudo o que absorveu dele, mais da sua prosa que da poesia. Trata-se de uma influência de aceitação leve e serena, sem angústias freudianas, que se reflete na circunstância particular de uma ausência dolorosa, tida agora como definitiva, contudo sem jamais cair nas malhas do esquecimento. Mas, tal diálogo interpoético pode ser estendido a um Carlos Pena Filho (da “distância entre o tudo e o nada”, como no poema “A luta”), a um Mauro Mota (da “humana condição”, como no poema “Sina sorte”), ou a um João Cabral (do rio lâmina e “punhal castanho”, como no poema “A cidade”).

A sintaxe tradicional é aqui veiculada e assumida, com o léxico obedecendo às regras seculares de gramática e de versificação na escritura de vocábulos, na linearidade de versos, nas estruturas de estrofes. Mesmo quando escreve em versos livres, há sempre uma matemática da contenção e da preservação de linguagem e língua.

O impacto da poesia de Antônio Campos verifica-se nas insolvências do sonho e nas asperezas da realidade. “A luta” que se reflete no poema de mesmo nome é uma de suas bandeiras e obsessões mais fortes, dando sentido, apesar da sua inclinação solitária, ao movimento da vida cotidiana: “Amigos, esta luta é um castigo,/ não quis nada além da solidão/ que mora e vive em paz comigo.// Em duas lutas estou envolvido,/ e a mais difícil e árdua é mesmo comigo,/ aquela sem escolta e guarda, sozinho prossigo.”

Ainda que a luta se refaça no gosto passageiro e precário das conquistas, conterá, eventualmente, conflitos, desentendimentos, revides, desagravos ou frustrações, que o poeta, atento, procurará evitar: “Amigos, nada de riso amargo,/ palavras vãs, revides e desagravos,/ só a paz serve, e isso não trago.// Não a trouxe, porque a perdi./ Na chama de inquietos medos e sonhos,/ o que de melhor havia em mim, consumi.”

Feito um estranho paradoxo, essa luta expõe o medo e a coragem, pois lutar é sentir o milagre de permanecer vivo, desafiar distâncias e impossibilidades. É sentir o sabor do imprevisível, de onde é gerada a apreensão e o espanto se mostra ante o desconhecido, sem “ressentimentos e mágoas”: “Amigos, sendo guerreiro derrotado/ em todas as batalhas, guerras e lutas,/ não retiro a armadura e o orgulho// de ser apenas alguém que,/ sem ressentimento e mágoas/ sabe a distância entre o tudo e o nada.”

Os atos rotineiros do cotidiano na perspectiva da paz exigem ânimo, disponibilidade e inteireza do corpo para a prática e a consecução da luta. Uma dor corporal intensa, sentida num momento específico, ou mesmo repetida, pode ser motivo racional para se escrever poesia, mas não naquele momento em que alguém a vivencia. Talvez num momento futuro ela venha a se manifestar e transformar-se na forma da poesia, provando o gosto da vitória do poeta que a ultrapassou. A luta é a capacidade de intentar vencer a dor e o sofrimento, de buscar a vitória na derrota, de saber do equilíbrio e da tensão que personificam “a distância entre o tudo e o nada”.

Antônio Campos soube guardar muito bem um segredo, o segredo de ser poeta. É possível que só alguns poucos sabiam da existência do Antônio poeta, além dele mesmo. Conhecia-se mais o Antônio prosador de Território da palavra, livro que traz em combinação eclética crônicas, cartas, artigos. Mas agora o poeta Antônio Campos faz parte definitivamente desse grande coro de poetas que eleva Pernambuco a um estado largo e consequente na contribuição à poesia brasileira de todas as épocas.



POEMAS DA SÉRIE INÉDITA A OUTRA VOLTA DO SOL


CANÇÃO PARA UM MESMO REGRESSO

À memória de João Cabral de Melo Neto


Porque não rejeitou o Nordeste

regressa sempre ao mesmo

Sertão antigo e bravio.


Não teve a leviana vaidade

para afogar noutras ondas

os traços agrestes da terra,


os laços mais fortes que o visgo

que puxa o pássaro à gaiola

e prende os peixes no rio.


Não teve a necessária vontade

de se fazer noutros longes

da mesma cidade e caatinga:


A calma firme agrestina

de poeta sem alarde ou viola

deu impulso a seus passos na vida.