terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Notas Cotidianas e Literárias

SOLIDARIEDADE E ESPERANÇA

Esperança e solidariedade são palavras justas e inquietantes, que somadas a liberdade e amor definem e completam o destino humano. Há, no entanto, conjuntos de palavras que exprimem situações opostas, mas que devem ser lembradas pelo seu impacto sobre o mundo contemporâneo. São algumas delas, formadas em blocos: os atos da violência extrema de grupos organizados associados aos cartéis do tráfico e ao fundamentalismo; a corrupção provocada pela cobiça e pelo desejo insaciável de poder, que desfalca dos cofres públicos o capital que pertence, de direito, à população de um país; a devastação ambiental ilimitada, cujos grupos empresariais que a praticam, não escolhem áreas para desmatar e explorar. A liberdade, que se fragmenta a partir destes e de outros elementos, pressupõe coisas básicas de sobrevivência e livre expressão. A falta de componentes imprescindíveis a uma vida digna induz o homem a se portar e ser visto com a descartabilidade da máquina, do número, da coisa, do detrito e do objeto.
Nem tudo, no entanto, parece estar perdido. Existe uma cadeia de pessoas que guarda princípios éticos inalienáveis, trabalhando silenciosamente e sem alarde para que outros homens, mulheres e crianças não sucumbam. Pessoas públicas e anônimas que se opõem, por exemplo, à sordidez implacável da pobreza. São essas pessoas, tantas que não conhecemos, outras com as quais cruzamos ou vemos no cotidiano, presencial ou virtualmente, que estão em todos os lugares e setores da sociedade, do trabalho e da vida, com o seu despojamento honrado, generoso e desinteressado. Elas transmitem alguma espécie de confiabilidade e alento aos seres humanos. E por isso pessoas assim nos levam a pensar e crer que palavras como solidariedade, esperança, justiça e paz possam ainda significar algo.


A ESTÁTUA DE DRUMMOND

Por que roubar os óculos da estátua do poeta Drummond,
se ele não mais vê o mar e nem anda de táxi, ônibus ou bonde?


GUIMARÃES ROSA POETA

Um livro que permaneceu inédito por mais de seis décadas, Magma, somado a uns poucos poemas esparsos e de circunstância, compõem a reduzida obra poética de João Guimarães Rosa. O escritor mineiro, nascido em 1908 e morto de infarto em 1967, procedeu, no âmbito da prosa, inovações definidoras com relação à linguagem ficcional, injetando-lhe vida, dinamismo e inventividade, conforme se pode comprovar em romances e contos que escreveu. Em Magma (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 148 páginas), ele revela-se um poeta que adota explicitamente o verso livre, e num outro pólo, a sintaxe oficial e enquadrada que muitos poetas passaram a praticar após a Semana de Arte de 22.
É sintomática a constatação de que em todos os poemas deste livro, mesmo nos hai-kais e poemas curtos, o fechamento faz-se invariavelmente reticenciado. As reticências, embora usadas em profusão, não apagam, no entanto, a força das paisagens que ondulam entre escarpas, montanhas e serras ou os diálogos extremamente rápidos e vivos, onde o homem conversa sem cerimônias com outros homens, com os animais, o sol e as águas. Eventualmente, tais reticências podem estar em alguns instantes eivadas do brilho um tanto artificial de uma pedraria que ofusca pelo seu efeito insólito e, de modo paradoxal, neutralizador.
Mas, é de admitir também a introdução de um ritmo ágil e flexibilizado, de metáforas características e prenunciadoras, como recursos poéticos que seriam exaustivamente aplicados ao seu fazer literário futuro. E isto tenderá a tornar-se, pela maneira como acontece e aflora-se neste Magma, marca de recorrência e estilização em Rosa.
Entre as temáticas contempladas em Magma, ocorrem com grande freqüência as que falam da natureza e seus elementos – homens, animais, águas, árvores e minerais existentes e escolhidos de preferência no estrato ambiental e humano do sertão de Minas Gerais. Os poemas que referem-se a sentimentos e estados espirituais intensificados, apresentam-se às vezes conflitantes e paradoxais: “Desterro” ou “Regresso”, “Ironia” ou “Angústia”, “Integração” ou “Revolta”. Perfazem novas seqüências a poetização de ambientes e lugares, com os exemplos de “Na Mantiqueira” e “No Araguaia I, II, III e IV”.
Guimarães Rosa serve-se de recursos vocabulares retirados da química, das matemáticas e da mineralogia. Figuras geométricas são utilizadas para retratar animais (“A Aranha” e “Meu Papagaio”), além de detalhes irônicos e bem-humorados relativos àqueles. A lenda indígena de “Iara”, em mistura com figuras mitológicas produz versos do tipo: “E Danaides laboriosas se desviam dos cardumes/ de Nereidas,/ que imergem, ondulando as caudas palhetadas/ dos seus vestidos justos de lamé...”.
Numa série de poemas sobre cores, a ênfase pode não dirigir-se necessariamente para o cromático ou o pictórico convencionais, antes avançando em outras regiões da poesia. Exemplo disto é a estrofe inicial do poema “Vermelho”, onde faz-se o contraste entre o sangue vermelho da virgem e a brancura cristalina da pomba: “É uma pomba/ - parece uma virgem./ De debaixo das plumas, vem o jorro/ enérgico, da foz de uma artéria:/ e a mancha transborda, chovendo salpicos, a cada palpitação”.
O Rosa prosador é antecipado pelo Rosa poeta que com este Magma ganhou, em 1936, o prêmio anual da Academia Brasileira de Letras. Contudo, não resta dúvida de que tais poemas refletem um poeta com menos de trinta anos à época, mas já senhor do seu ofício literário, a dominar perfeitamente os ritos essenciais e os recursos indispensáveis à escrita de poesia e à prosa que o consagrará.


PARACHOQUE DE CAMINHÃO

Era tão canalha que não suportava encarar
a vileza da própria imagem no espelho.


UM POEMA DE MANOEL DE BARROS

Manoel de Barros ((1916) é de Cuiabá, Mato Grosso. Tem mais de 20 livros publicados. Um dos mais recentes, Livro das ignorãças, traz o poema final intitulado “Auto-retrato falado”. Afasta-se dos efeitos inusitados e presentes, quase sempre, na poesia de Barros: dos versos desconcertantes, do encobrimento de um provável sentido, do diálogo surrealista com a terra, as plantas, os rios e pássaros. Neste poema, descobre-se um pouco do homem Manoel de Barros:

Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.


POEMA DA INADIÁVEL PARTIDA

Sem os teus afetos,
sem amor ou calor
que farei aqui
nessa cidade perdido?

Partirei agora.
De tristezas inúteis
não é o meu caminho:
Sonho & Vida.

Pássaros no meu encalço.
Árvores nuas na estrada.

Velejarei por novos braços,
novos sonhos abraçarei.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Carlos Pena Filho

POETA DE RÁPIDO DESTINO

Carlos Pena Filho fez sua estreia na poesia em 1952, com a reunião dos primeiros poemas escritos numa publicação a que intitulou de O tempo da busca. Nascido no Recife a 17 de maio de 1929, desde muito cedo se afirmou como uma personalidade singular de poeta em franca e rápida expansão, tendo deflagrado, com este livro, parte de suas inquietações de artista recém-saído da adolescência. Esta fase inicial envolvia certas indagações estéticas e existenciais latentes, além de algumas projeções e questionamentos acerca da validação do ofício poético e da experiência concreta com o mundo sensível, notadamente quanto ao seu posicionar-se e se fazer presente diante dos acontecimentos da vida cotidiana e da arte do seu tempo.
A passagem da adolescência à fase adulta em Carlos Pena Filho, mais acidentada do que propriamente calma, se encontra impregnada de um desempenho poético fracionado entre a fatura formal de um lirismo típico do neoclássico, pela via do soneto decassilábico, e o esforço de apreensão e superação dos mecanismos e manifestações poéticas posteriores aos modernismos de 22 e 30. Ela é concomitante também com o desempenho poético funcionalista, malogrado em sua maior porcentagem, da geração de 45.
Decerto que Carlos Pena Filho não executa, no decurso de sua poética, nenhum tipo de inovação formalística flagrante ou significativa, preferindo se exprimir no mais das vezes através das chamadas formas fixas. Mas, ao elaborar e construir pacientemente o corpus de sua poesia – que pode aparecer tanto em versos desvestidos da rima mais sistemática ou da metrificação tendenciosamente mais rígida e fechada, quanto ainda, e em maior ocorrência, na forma de sonetos precisos, exatos e impecáveis –, transitando com desembaraço evidente em campos formais que exigem habilidades até certo ponto raras, se torna fácil para o leitor constatar que são poucos os versos em que não demonstra competência poética.
Essa preocupação orgânica em trabalhar formas fixas, em engordar o rimário e a métrica consagrados pela poética tradicional – e talvez já demasiadamente empregados através de séculos, escolas literárias e gerações –, faz com que ele prescinda de arcabouços formalísticos e efeitos gráficos e visuais latentes, que permeiam, na década de 50, o ânimo e a postura das vanguardas. Estas, por sua vez, se reivindicam experimentalistas, polêmicas e inventivas. Utilizam-se de efeitos e estratificações que requerem justaposições minuciosas, arrumações diferenciadas e espacializações multiformes, que privilegiam bem mais os elementos formais, cujos resultados logram ser alcançados com a serventia e a ajuda de recursos operacionais correntes, como o deslocamento espacial de fonemas, palavras e versos e a exploração das fendas possíveis no campo visual que a página oferece, desenvolvidos notadamente com o surgimento daquelas vanguardas experimentalistas brasileiras, que pouca ou nenhuma influência exerceram sobre Carlos Pena.
Além desse tratamento artesanal classicizante que imprime a seus versos, corre paralela uma estranheza que se delineia referendada por uma angústia latente e demasiado presentificada, complexa e recorrente aos níveis de um estado poético onírico que se perfaz mais na superfície que no fundo, e é mais artificialmente provocado do que vivido ou sentido. E esse estado onírico desemboca ainda numa espécie de surrealismo irrealizado e programático apenas, onde a vigília se impõe predominantemente ao sonho, inseparável da lucidez desde sempre reivindicada no seu ofício de poeta. Lucidez que, se de um ângulo já descarta no seu nascedouro o malogro de um surrealismo mal assimilado, por outro, paradoxalmente, não se interpõe e nem exerce controle ou coerção castradora sobre um projeto poético de antes embasado no discurso lírico, que com frequência realiza-se em dicções que contemplam ora a vertente social e urbana, ora a vertente intuitiva, amorosa e subjetivista.
Em outra instância, ele vai discorrendo sobre o que se demonstrava como a sua perplexidade e o seu desencanto diante da sua própria poesia, com o seu dilema interno de poeta requisitado pelo formalismo intrínseco e estilisticamente devedor do simbolismo francês. Mas, além da influência francesa, o poeta continua a se filiar, embora com ressalvas, ao padrão operativo subjacente ao parnasianismo tardio dos poetas de 45. Na condição de “artesão caprichoso”, como ele se autodenominava, em certos momentos se aproximava bastante a esses poetas, que costumavam encarar e assumir “o poema como um artefato”, na expressão de um deles, Péricles Eugênio da Silva Ramos.
De 1955 em diante, nos primeiros momentos da instalação de um surto desenvolvimentista no país, de vertente kubtschekiana, e que tinha como linha política divisória a recente e nefasta presença getulista, de amplos reflexos ditatoriais e de caráter nacional-populista, Carlos Pena Filho voltava a sua atenção e o seu interesse mais diretos para uma espécie de cultura emergente, que se demonstrava originária das raízes e camadas populares, de suas forças mais simples e segregadas no cenário característico da região nordestina.
A cultura popular era este tipo de cultura latente, que viria a evoluir, na década de 60 em Pernambuco, para um movimento de considerável alcance e importância política inconteste: o MCP – Movimento de Cultura Popular, que contribuiria radicalmente para a viabilização e a consolidação das lutas pela resistência democrática no Brasil. O MCP englobava as lutas camponesas no campo e a luta clandestina urbana e ostensiva das várias correntes de esquerda então atuantes, a conscientização de pessoas através da educação básica e transformadora do método Paulo Freire, o cinema novo, a literatura de cordel e o desempenho poético-musical dos cantadores e violeiros repentistas, o teatro popular revolucionário, a música popular de protesto dos festivais, da bossa nova e do tropicalismo, a poesia, o conto, a novela e o romance engajados, entre outras manifestações políticas e culturais.
Carlos Pena Filho adota, já nos anos 50, principalmente com a escrita arrojada do bloco de poemas intitulado Nordesterro e do seu poema inteiramente dedicado ao Recife, o Guia prático da cidade do Recife, o desdobramento poético dos eventos localistas e populares como orientação cultural e estética. Antecipa e amplia, dessa maneira, sob a nítida influência de João Cabral de Melo Neto, formas poéticas que irão ser altamente desenvolvidas e intensificadas nos anos posteriores, quando ascenderá a um plano empenhado e questionador da cultura e da política, essa modalidade cultural específica. Deste modo, a cultura popular se insurgirá atendendo às necessidades de uma literatura interna, como resposta provável, nas dimensões dialética e estética, ao forte e desértico fechamento provocado pelo esteticismo estado-novista de 45 e ao modelo concretista-publicitário de exportabilidade vanguardista.
Dentro dessa perspectiva de conformação regional-popular, são conhecidas as incursões que efetivou no âmbito do regionalismo, bebido diretamente nas matrizes e fontes pernambucanas, através do contato com a obra de Gilberto Freyre, ou, do lado ibérico, absorvido no modelo regionalista andaluz de Federico García Lorca, em especial nos poemas do Romanceiro Gitano.
O regionalismo do qual se servia era o que buscava no homem e na natureza nordestina as peculiaridades favoráveis à solidariedade e ao tratamento artístico-literário desalienante de conteúdos e temas. E isto lhe permitiu um aguçamento de visada que o redime enquanto poeta social – e não mais só enquanto poeta puro ou purista simplesmente –, quando ele passa a vislumbrar a transformação objetiva da sociedade, e na mesma pisada, a chamar a atenção, em forma de alerta ou denúncia, para um modo de vida amesquinhado em miséria e exclusão, notadamente nos poemas de Nordesterro.
Devido talvez a seu temperamento boêmio – mas de uma boemia leve e contida, lúcida e organizada nos prazeres simples da convivência e na fruição advinda dessa comunicação artística e humana –, as suas vivências pessoais seriam sublinhadas por uma vida literária e intelectual movimentada e enriquecida de muitas solicitações e atividades. E estas vivências seriam referendadas também de algum modo nas rápidas, porém definidoras incursões que fez pelo jornalismo, no empenho levado a efeito nas discussões estéticas, e ainda nos percalços e compromissos representados pela transitoriedade de uma vida pública de cargos ou funções sem maiores ressonâncias. É de interesse lembrar ainda que, fraternas e socialmente extensivas como eram, tais vivências como que se prolongariam em admiração comovida e perplexa da parte de seus leitores e aficionados, dos amigos e pessoas com quem convivera ou que eventualmente o conheceram, mesmo tanto tempo após a sua morte prematura no Recife, a 1 de julho de 1960, em conseqüência de um acidente de automóvel.

In: Monteiro, Luiz Carlos. Musa fragmentada: a poética de Carlos Pena Filho. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Entrevista ao Site Interpoética

ENTREVISTA AO INTERPOÉTICA

Reproduzo, na íntegra, entrevista para o site Interpoética, sob a coordenação de Cida Pedrosa e Sennor Ramos, concedida ao crítico literário Cristiano Aguiar, em dezembro/2009:


Luiz Carlos Monteiro
inquietações existenciais que superam a mera “cor local”


Por Cristiano Aguiar

Fazer esta entrevista, que o leitor do Interpoética lerá abaixo, significou conhecer Luiz Carlos Monteiro duas vezes. Embora eu já acompanhasse seus textos críticos na revista Continente, dentre outras publicações para as quais escreve ou escreveu, nunca antes tinha encontrado este homem de fala suave, natural da cidade de Sertânia, no sertão de Pernambuco. Quieto, Luiz pouco diz de si, deixando o espaço aberto à sua palavra criadora.
Talvez seja por causa disto que, só ao entrevistá-lo, fiz minha segunda descoberta: o crítico literário também era um bom poeta, revelando que crítica literária e poesia são faces diferentes do mesmo “comichão” da literatura, da mesma vontade de desafiar o mundo com versos e perguntas.
Luiz Carlos Monteiro conversou com o Interpoética sobre tradição e valores literários, crítica universitária versus crítica acadêmica, a poesia de Carlos Pena Filho, bem como sobre sua própria poesia, profundamente arraigada nas cartografias da cidade – que pode ser Recife, Olinda ou qualquer cidade do mundo, pois ela nos aponta em direção a inquietações existenciais que superam a mera “cor local”.

Cristiano Aguiar: Vamos começar pela sua atividade como crítico literário. Você tem experiência nas duas linhas de frente: a crítica nos jornais e revistas e a crítica realizada a partir de pesquisas universitárias. Muitos afirmam que estas duas instâncias são inconciliáveis. Como é seu trânsito entre elas?
LCM: São duas instâncias que guardam peculiaridades e especificidades próprias, embora, num ou noutro caso, possam entrecruzar-se. Os espaços se tornam cada vez mais apertados nos jornais e revistas comerciais, por isto muitos críticos e ensaístas estão preferindo trabalhar textos mais longos, que somente caberiam em livro. É aí que entra a crítica universitária, que resulta da pesquisa paciente e persistente e destina-se, inicialmente, ao público da academia, i. e., a professores, estudantes e ouvintes que participam dos debates ali travados. Contudo, ensaios externos ao que se produz nas universidades devem trazer o possível ajuste metodológico, mesmo que tratem de temáticas subjetivas, abstratas, confessionais, metafísicas. Há professores que conseguem transitar bem nas duas modalidades: Carlos Newton Júnior, César Leal, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Hildeberto Barbosa Filho, entre muitos outros. No meu caso, venho tentando atender aos desafios que me propõem, sejam acadêmicos ou jornalísticos, mas não sei como medir ainda a eficácia ou não deste desempenho. Isto se vincula bastante à relação com editores, a convites e propostas editoriais que traduzam afinação entre as partes.

Na sua crítica, é importante dizer se uma obra é "boa" ou "ruim"? Quais são os seus parâmetros enquanto crítico?
Esta dualidade, típica e originária do impressionismo para a análise de obras, não deixa margem para o intermediário, onde se arrancha o mediano. Creio que a maioria das obras hoje se sustenta nesta categoria intermediária, de vez que há muito desapareceu a figura do gênio, e daí a ideia de genialidade. Avalio cada livro pensando na surpresa e no espanto que pode me causar. Feito uma espécie de impacto vital que me instigue e incite a fazer coisas, que me leve a uma reconciliação com o humano através de uma obra singular e a deserdar, mesmo que por tempo breve, a normalidade cotidiana. Sobre aqueles trabalhos situados fora de exigências estéticas mínimas e aceitáveis (rigor formal, predominância do poético ou do ficcional sobre uma suposta ou visível “mensagem”, equilíbrio narrativo sem excessos descritivísticos, presença da inventividade em poesia), prefiro não escrever.

Sua dissertação de mestrado fala da obra de Carlos Pena Filho. Como você o situa na literatura brasileira?
A dissertação tenta responder, de modo conciso, a esta questão. Carlos Pena Filho é herdeiro de 45, embora repudiasse essa geração através de entrevistas ou textos. Pode-se situá-lo na temporalidade dos anos de 1950, que é quando começa a publicar com mais intensidade. Foi um sonetista exímio, e manuseava outras formas como poucos do seu tempo. Seu nome é bastante conhecido no país, presente em antologias e histórias literárias, mas sua leitura é feita de passagem, até pela falta de edições significantes de sua obra.

Eu gostaria de fazer a você uma provocação: acho que Carlos Pena foi um poeta em formação, cujo amadurecimento foi interrompido pela sua morte. Você concorda ou discorda?
Penso que Carlos Pena Filho teve um processo rápido de amadurecimento. Aos 18 anos já assinava sonetos impecáveis. Reconhecia-se como um “artesão caprichoso”, o que invalida o aleatório em sua obra. Trazia aquela transpiração que a secura de quem não tem o que expressar rejeita. No seu breve tempo de vida construiu poemas de beleza e sentido únicos e inesquiváveis, que outros passam a vida intentando e não chegam jamais a concretizar.

Sei que é uma pergunta que vai demandar um fôlego maior, mas gostaria de perguntar para você qual a sua leitura das gerações de poetas que surgiram nas últimas décadas, aqui em Pernambuco. Quero destacar três momentos: a famosa e inesgotável Geração 65; o movimento dos poetas independentes, nos anos 70-80; a geração de jovens poetas surgidos a partir dos anos 90 e ao redor da antologia Invenção Recife (publicada nos 00), da qual fazem parte Delmo Montenegro, Fábio Andrade, Jacineide Travassos, Pietro Wagner, Micheliny Verunsk, entre outros.
Deste grupo de poetas surgidos a partir dos anos 90, conheço melhor a poesia de Micheliny Verunsk, pois fiz uma leitura mais apurada de trabalhos seus, e a considero uma poetisa que ainda pode voar bem alto. Li pouca coisa dos outros, mas aprecio a poesia espácio-visual e o experimentalismo que não força a mão. Delmo Montenegro, que escreveu estes versos, não pode esquivar-se à condição de poeta: “o mantra/ verde do meu ego/ e vermelho das minhas verdades/ ainda ninguém achou/ que faremos nós/ pistas deixadas/ em obras inacabadas/ de nenhum autor”. Neste trecho de poema há posicionamentos estéticos e existenciais de apelo corajoso e incidente sobre o fazer poético, sobre a repetição e a imitação, sobre o impasse do poeta ante tudo o que já se escreveu antes dele. No movimento independente, do qual fiz parte durante algum tempo, assumi o risco de certas vivências e ações perigosas e enviesadas, descambando às vezes para a gratuidade e a violência em nome de uma marginalidade radical, utópica e jamais alcançada. Ficaram nomes que atuam ainda hoje, com proposta subdividida e algo diferenciada, pois tanto publicam por editoras quanto em edições alternativas. Preservam, no entanto, a prática dos recitais: Cida Pedrosa, Valmir Jordão, Lara e Jorge Lopes, são exemplos disto. A geração 65 já tem alguns nomes reconhecidos entre os que se foram: Alberto da Cunha Melo e Arnaldo Tobias na poesia e Maximiano Campos na prosa. Entre os vivos, é impossível ficar indiferente à poesia de Jaci Bezerra, Almir Castro Barros, Lucila Nogueira, José Carlos Targino e Tereza Tenório, poetas de propostas bastante díspares, mas de uma forte persistência, o que significa que jamais torceram o nariz para o trabalho poético. Com relação à prosa, Raimundo Carrero e Fernando Monteiro são escritores inquietos, de bom alcance de público, e que ainda têm muito a contribuir para a literatura. Pernambuco ressente-se de mulheres ficcionistas, embora isto não signifique que não existam, apenas precisam de uma interferência e visibilidade maior no campo literário.

Nos últimos anos, uma série de feiras e festas literárias, como a Flip, A Letra e a Voz - Festival Recifense de Literatura, e a Fliporto, vêm dinamizando a vida literária brasileira. Qual a sua leitura deste fenômeno?
Debates, encontros, congressos sempre existiram. Hoje, no entanto, conta-se com um aparato forte da tecnologia da informação e com o apoio mais intenso dos setores público e privado. Até a década de 1980 a grande batalha era a publicação de um livro. A facilidade agora é imensa, inclusive pela concorrência no mercado gráfico-editorial, que tende a baratear os custos. E mais ainda, pelas formas de divulgação e publicação permitidas pela Internet. Em feiras e festas literárias ouve-se a voz de escritores mais de perto, contatos importantes podem ser veiculados, mitos são postos por terra, anônimos podem alcançar alguma visibilidade. A reciclagem de autores é coisa que não pode deixar de ser feita, pois o convite constante aos mesmos nomes cansa, entedia e desvaloriza os eventos.

Da mesma forma, nos últimos três anos ou quatro anos, em Pernambuco, uma série de jovens escritores procura se articular em torno de antologias, revistas e eventos literários: foi o caso, por exemplo, da Crispim, da Vacatussa e do Nós Pós e, agora, do coletivo Urros Masculinos, que vai organizar a Freeporto. Você consegue ver consistência nestas iniciativas? Os jovens escritores estão revelando conteúdo, além de articulação?
A geração 70 nasceu em bases contestatórias e hoje se encontra institucionalizada. A poesia “marginal” de Chacal é distribuída em todo o Brasil através de programas editoriais oficiais que envolvem as escolas públicas. Quando participei do movimento independente assumi posições ideológicas e editoriais radicais, mas tentando manter o diálogo com outros grupos – a Geração 65, os Poetas da Rua do Imperador, a vanguarda local neotropicalista. A articulação dos “novos” é sempre bem-vinda, pois elastece e dinamiza a ambiência literária. A consistência das iniciativas vai depender do “poder de fogo” de quem está à frente de tais movimentos. Chega uma época em que muita gente volta-se para as circunstâncias da vida pessoal, para o estudo mais sistemático, para o trabalho intelectual cotidiano e orgânico. Grupos fragmentam-se, outros se formam, o “novo e iconoclasta” de hoje passa a ser o “oficial e conformista” de amanhã. A questão do conteúdo do que escrevem os que estão chegando agora só pode ser avaliada com a passagem do tempo. Muito do que um autor escreve ou recita no calor do instante pode ser renegado por ele mesmo num futuro próximo. Quando um aspirante a poeta ou ficcionista descobre, depois do entusiasmo inicial, que sua poesia ou sua prosa não se ombreia a um Drummond, a um João Cabral, a um Murilo Mendes, a um Machado de Assis, a um Guimarães Rosa, a um Graciliano Ramos, para citar apenas alguns brasileiros, cai em si e perde toda a arrogância.

Você começa seu livro com os seguintes versos: “Não te evoco,/e também/o louvar não te quero (...) não te rejeito ou refuto, não te renego ou expulso”. Uma característica importante da sua poesia é a da crônica da cidade. Existe um Recife e uma Olinda “verdadeiros”? O poeta é aquele que abraça o real com a maior de todas as generosidades?
Os versos deste livro, Poemas, publicado em 1999, foram pensados e escritos a partir da segunda metade da década de 1970. O Recife era uma cidade onde a boemia corria solta, da Boa Vista ao Bairro do Recife, dos bares de Santo Amaro à zona da Rio Branco. O Beco da Fome ficava próximo ao Diretório Central dos Estudantes da UFPE, e depois das reuniões políticas aproveitava-se para beber. O Beco era frequentado por estudantes, intelectuais, policiais disfarçados, meninas liberadas e dispostas a tudo na noite. Foi nesse ambiente de muita agitação e embate que conheci os poetas independentes, os escritores da geração 65 e outras pessoas de quem fiquei amigo. Vez por outra, arranjava também alguns inimigos. Mas o beautiful people estava mesmo em Olinda, no Cantinho da Sé, no Querubim Bar e no Bar Atlântico, este último conhecido popularmente como Maconhão. Um Recife e uma Olinda autênticos eram os desse clima pós-adolescente, depois de 1976, quando entrei na universidade. Não sem patrulhamento ideológico conviviam a política, que era o real, com a poesia, identificada com o sonho, mas um sonho ainda de transformação da sociedade. E o poeta apostava qualquer coisa nesta luta, ao tempo, radical, seguindo em frente apesar das críticas conservadoras da família, dos amigos de infância e, num viés de teor mais ideológico de esquerda, dos próprios companheiros de partido ou tendência política, que repudiavam o sonho vinculado ao ato da escrita literária. O poema citado aparece na contramão dos poemas “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira e “Provocação do Recife", de Xico Sá.

Ainda falando do poema enquanto crônica da cidade e dos modos de viver na cidade: como evitar que o poema se torne apenas uma variação do fotojornalismo?
O poema urbano tem uma sedução implacável, pela capacidade de visualização dos objetos que permite. Fiz um esforço imenso para escrever alguns poemas nesta direção, pois minha inclinação sempre foi lírica, neo-romântica, confessional. E isto, apesar de ter feito quase todo o curso de Engenharia de Minas, e de ter formado, de quebra, com outros estudantes de engenharia, um grupo de discussão de Lógica Formal e Dialética. Ali, sustentados na intimidade do Cálculo Integral, da Geometria Analítica, da Álgebra Linear, da Física e da Química, ninguém contemporizava nem abria mão de suas opiniões e preceitos, embora, depois dos embates, fosse mantida a cordialidade possível. É preciso que o urbano traga a elaboração de um sentido estético, de um encanto que torne, até certo ponto, a leitura do poema dionisíaca, hedonista, prazerosa, anárquica. E não apenas a simples enumeração objetal. Talvez tenha sido por isso que Mário de Andrade chamou o poeta modernista Luis Aranha de “poeta ginasiano”. Mas, uma solução radical para que alguém se afaste do que você chama de fotojornalismo seria uma volta ao mundo da metafísica e do hermetismo, ao poema filosófico e ao lirismo confessional e intimista.

Nos poemas “Poema parco e tardio a Carlos Pena Filho” e “Poemeto muito antigo à maneira de Manuel Bandeira”, temos um duplo movimento: à crônica da cidade se junta a crônica da leitura. Em ambos, há morte espiando nos avessos... “resto de sombra” ou “negra lama enfim...”, do segundo poema, são contrapontos ao “Tua voz semovente em teu peito/com impulsão a cidade avançando”, versos do primeiro poema, que se referem a Pena Filho. Sua poesia também cumpre uma função semelhante à sua crítica, de fecundar de vida a tradição, às vezes um tanto esquecida, como é o caso da poesia de Carlos Pena? Como suas leituras alimentam o Luiz Carlos Monteiro Poeta?
Tenho uma gama de poemas metacríticos, dedicados a poetas de minha preferência: Murilo Mendes, Rimbaud, Baudelaire, Poe, Artaud, Torquato Neto, Fernando Pessoa, entre outros. Carlos Pena Filho é especialíssimo, poeta de quem gostaria de ter sido amigo. Foi poeta em tempo integral, boêmio, charmosamente triste, culto, simpático,voluntarioso e irônico. Quanto a minhas leituras, leio de tudo, inclusive muita ficção. Por exigências do trabalho crítico-analítico, especifico hoje mais essas leituras, privilegiando a teoria e a crítica literária, não dispensando, no entanto, o suporte dos textos históricos e filosóficos. Um texto crítico, daqueles de vertente mais criativa, pode incitar o poeta a escrever, num determinado momento, seu poema. Mas quem estimula e aprimora mesmo a escrita da poesia é a leitura da própria poesia, a aparição e consequente seleção daqueles poetas que, por vezes temporariamente esquecidos, podem vir à tona a qualquer instante com bastante força e vigor.

Há muita plasticidade em seus poemas, como é o caso de “O canavial flutuante ou visada do Rio Formoso” ou “Grafito em Olinda”. As artes visuais, a pintura, principalmente e, mais especificamente, a pintura de matriz moderna, são referências quando você compõe versos?
A arquitetura, a pintura, a visão mágica e áspera da Natureza do litoral ou da caatinga, as belas e funcionais construções urbanas, nos colocam no centro de um mundo plástico e visual. Convivi com alguns pintores e pintoras, e sempre acreditei que a pintura, assim como os arranjos musicais (e aqui discordo de João Cabral), mantém uma grande aproximação com a poesia. Mas, a pintura não é a principal referência na minha poesia, e sim uma delas. Os sentimentos mais recônditos ou explícitos que carrego, a tentativa de compreensão do outro, o imaginário de um mundo futuro e ainda possível porque não aconteceu em bases justas e solidárias, são referenciais importantes na poesia que faço.

Poemas como “Dois poemas sobre um motivo de Vielimir Khlébnikov” e “Poema autografado num envelope contendo uma fotografia amarelada” surgem de um eu lírico que fala a partir de uma posição solitária, na qual os sentidos da vida parecem estar em dissolução; mas o Outro, aquele que caminha na cidade, também é solitário: seus personagens são os bêbados, os cegos pedintes, os arlequins, os poetas soltos nas ruas – aqueles que não se “enquadram”. Gostaria que você comentasse isto.
Os dois poemas citados refletem a experiência cotidiana da solidão do poeta em seu quarto, a escrever e a ler desbragadamente, a sublimar amores impossíveis com o esteio e o auxílio luxuoso da literatura e com a inclinação clandestina, à época, do pensamento político. A vertente visionária dos personagens marginais e marginalizados é de origem baudeleriana, poeta que li demais e intentei absorver alguns temas e personagens malditos seus. O desajuste social destes personagens reflete algo do desajuste do próprio poeta, que teima, ou teimava, em não alinhar-se a vivências e situações flagrantes em que estivessem envolvidos os numerosos braços de polvo do status quo. Também num sentido de denúncia, sem a esperança ilusória de um grande alcance, ao modo de Neruda, Whitman ou Castro Alves, mas contribuindo, dentro de limitações próprias e às vezes reconhecíveis, para a consecução e dinamização do processo social e literário.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Notas Marginais VIII

NOTAS MARGINAIS: EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

A expressão “Notas Marginais” representa, na configuração deste blog experimental, o conjunto de poemas, resenhas e narrativas curtas que revelam, por si sós, seu próprio impacto e sua possibilidade de escolha ao autor e organizador. Os textos vão surgindo ao calor da hora ou nos eventos da memória, juntando-se e afastando-se até que, em momento não programado antecipadamente, chegam ao termo de publicação. Aparecem, além dos inéditos, textos já editados em livro ou jornal.
Intenta-se manter o necessário distanciamento do significado mais vulgarizado para “marginal”, entre os 13 que o filólogo Houaiss alinha em seu dicionário: “que vive à margem do meio social em que deveria estar integrado, desconsiderando os costumes, valores, leis e normas predominantes nesse meio”. E aproximação maior com “anotações” (que se fez ou se inseriu na margem de manuscrito, livro etc.) e com a derivação de um sentido figurado (comentário, observação, esclarecimento feito à margem de qualquer assunto). Eça de Queiroz publicou em 1866, como folhetim, na Gazeta de Portugal, um longo texto lírico, de viés romântico, influenciado por Heine, com este título. O “Notas Marginais” eciano pode ser encontrado em seu livro Prosas Bárbaras. Lima Barreto tem um volume de artigos e crônicas sobre livros e sobre o Rio de Janeiro intitulado Marginália, composto nos inícios do século 20.
O sentido de “nota” pode ser estendido à semantização da linguagem literária, ao significado intrínseco de texto escrito em prosa ou poesia, à residualidade do ensaio e da crônica e à consecução compacta e breve da visada crítica. “Marginal” refere-se, por sua vez, à idéia da publicação em si, pois é mais do que corrente, que quem escreve deseja ser lido. Como forma de romper e gerenciar o ineditismo e o anonimato, de impedir de algum modo as tentativas extemporâneas néscias, absurdas e espúrias de expurgo e sufocação da palavra, preenchendo óbvias lacunas e vazios deixados. E assim, como forma também de ignorar atitudes exclusivistas, tacanhas e excludentes típicas do tosco, simplório e desgastado provincianismo local, em nome de supostos e enganosos avanços editoriais. O relevo evidencia-se na necessidade de compartilhar e externar parcelas do conhecimento, da experiência e da leitura individual. E ainda, como meio de atestar a busca e o encontro de insights poéticos e ficcionais que guardam sua valoração artístico-literária, e que não foram devidamente veiculados, ou o foram insuficientemente pela palavra impressa.


PARACHOQUE DE CAMINHÃO

Quem quiser arranjar um inimigo vegetariano,
prometa a ele um peru de Natal de presente.


UM POEMA DE SOSÍGENES COSTA

Sosígenes Costa, poeta baiano, nasceu em Belmonte (1901) e morreu no Rio de Janeiro (1968). Sua poesia divide-se entre o neoparnasianismo de sonetos classicizantes e pavônicos e os poemas de métrica e ritmo livre que abordam temas negros, folclóricos e religiosos. Em 1978, José Paulo Paes organizou e apresentou a sua poética, tendo publicado também, um ano antes, um breve estudo da obra sob a denominação de Pavão, Parlenda, Paraíso. O poema “A Marcha do bumba-meu-boi” reflete a musicalidade inesquivável de versos percussivos, dançantes e característicos da cultura africana transplantada que enriquece o Brasil e de modo notável e acentuado, a Bahia:

Não toque o bombo, Zabumba,
no bumba-meu-boi.
O som do bombo rebumba
e espanta este boi.

Também não toque marimba
no bumba-meu-boi.
O sino quando rebimba,
me espanta este boi.

Zabumba, não toque este bombo
no bumba-meu-boi.
Zabumba, meu bamba, o ribombo
me espanta este boi..

Zabumba, não solte esta bomba
no pé de alecrim.
Sem esta cor de jambo,
o que será de mim?


RECIFE INTEMPORAL

Cada vez que leio sobre o Recife de outras épocas, mais me identifico à cidade. O século que demonstra um forte e grande apelo é o 19, que transita entre a perspectiva de um próximo e enviesado progresso e a decadência intranquila dos costumes e da política herdados da metrópole portuguesa. Castro Alves, Tobias Barreto, romantismo, poesia popular, positivismo, Escola do Recife, combate ao escravismo, conversas em tom conspiratório nos gabinetes inacessíveis, milícia ingenuamente truculenta e malandragem iniciante e incipiente.
Autores tidos como nostálgicos ou passadistas adquirem novas feições e conotações, pois não foram eles que definiram o tempo que lhes foi dado viver. E as suas vivências eram geralmente alimentadas pela sinceridade intelectual e pelo destemor da polêmica, com momentos destacados, ainda que em ambiente pífio e largamente conservador. É preciso procurar ler autores de época nas entrelinhas, para intentar descobrir o espírito crítico e premonitório de muitos desses criadores e pioneiros. As sinuosidades e relevos declinantes de seu estilo, na lentidão da pena, do mata-borrão e do papel de boa qualidade, podiam conter coisas somente descobertas tempos depois.


POEMA DA QUEDA PARCIAL

Ela feriu-se de encontro
ao rochedo, mas não
sucumbiu; assim,
dissolvidas no rímel
as lágrimas ponteiam seu rosto
e ao batom se confundem.

Agora consuma seu choro
que não nos entristece ou afeta,
pois foi estranheza e procura
e do escândalo à queda
provocação, ruptura
de quem com maldade recusa
a quem torturado a deseja.

Com sua fúria mais terna,
sempre tão viva e tão meiga,
sempre divina e faceira
ela absorve esse néctar
de fruição e incerteza
entre artifícios e gestos,
entre alegria e espera
sem a ninguém atender.

Ela desintegra o rochedo
a espantar tédio e medo.
A rebeldia é sua arma
quando destrói casca e calma.
E um novo tombo equivale
à dispersão de sua alma.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Notas Marginais VII

EUFORIA E MAZELAS DO NATAL

O Natal perde um pouco do seu ar de festa de comunhão em família para se transformar, cada vez mais, na compulsão febril e destrutiva de um consumo desenfreado e incontrolável. A dispersão em massa torna-se o estigma insustentável e precário de um balanço inexistente do ano que está a se findar. Talvez apenas os solitários contumazes façam uma espécie de avaliação forçada de suas vidas, pois a circunstância e o peso da solidão os obrigam a isso. Aqueles de feitio gregário jamais irão pensar no que se esfumou, quando se constata que o que passa a lhes interessar no instante é a risada larga e ruidosa, a conversa superficial e ininterrupta, os abraços rápidos ou demasiadamente apertados, os beijos que ressoam acalorados, mas nem sempre sinceros.
O chamado espírito natalino leva à tolerância e à aceitação momentânea dos defeitos e fraquezas do outro, por isso aguenta-se os parentes de variada origem e extração, os conhecidos e vizinhos esquivos e os chatos insistentes e de plantão. Faz-se vista grossa para a parcialidade de certos amigos, não se exigindo mais o que eles não tiveram fibra para partilhar durante os dias do ano. Permanece, contudo, aquela secura na garganta pela frustração das coisas inalcançadas e irrealizadas. O aumento salarial que não se teve, o curso planejado que não se fez, o casamento falido que não se conseguiu desfazer, a perda de amizades por motivações fúteis que não se evitou, a doença que se espalhou avassaladora e que não se esperava, a traição e a inveja sempre por perto e que não puderam ser detectadas a tempo. E ainda, um desejado equilíbrio interno de corpo e cabeça que não se obteve, esfarelou-se ou se manifestou incipiente e sem força.
Quem mais ganha com o Natal é o banqueiro e o contraventor, o grande comerciante e o capitão-de-indústria, com o fabrico e a venda acelerada de produtos os mais diversos, legais ou ilícitos, como bebidas e frios, roupas e calçados, eletrodomésticos e automóveis, onde não estão descartados o contrabando e a sonegação. As agências de viagens e guichês de aeroportos, estações de metrô e terminais rodoviários, empresas de transporte clandestino também aumentam seus lucros em progressão vertiginosa. Contudo, os consumidores mais amenos e conscientes preferem gastar com música, cinema, teatro e livros.
Os bebedores inveterados arranjam, pelo Natal, um pretexto seguro e perdoável para encher a cara. Muitos desejam passar despercebidos, enquanto que outra fração busca justamente o contrário, a exposição pública, um picadeiro gratuito para uma atuação cafajeste e despudorada. Os que fazem parte da categoria enviesada dos ajustados, sovinas e conformistas absorvem tacanhamente a festa como quem calcula os seus efeitos sobre a rotina, o bolso e alguma remota mudança de vida.
As confraternizações de partidos políticos, associações de classe, clubes esportivos, empresas de ramos e interesses diversificados, retocam o que vinha sorrateira ou explicitamente se deteriorando. Assim acontece com as relações de dominação nos âmbitos empresarial e político, público ou privado, que muitas vezes se mostram penosamente difíceis de ser contornadas e controladas, em qualquer nível hierárquico do mundo da política, dos mass media e do trabalho. É nesse sentido que comungam instituições de procedência e intencionalidades díspares, filantrópicas, não-governamentais ou midiáticas, que se mobilizam e unem para tentar diminuir, mesmo que por algumas horas, a fome, a seminudez e a ausência de brinquedos e presentes nas famílias pobres.
Fica praticamente impossível imaginar, na ambiência familiar de fartura e pachorra, o Natal dos prisioneiros, o fim de ano dos sem teto ou sem terra, dos que vivem à beira do suicídio, dos que agonizam nos hospitais, de todos os que se encontram mergulhados, como disse o nosso Presidente há pouco, “na merda”. A parcela significante da população que dança, canta, brinca, bebe e come nem de longe percebe a tremenda solidão e o isolamento dos que não gozam de nenhum privilégio e nem dispõem de parentes ou amigos que os confortem. Porque a criatura mais violenta ou asquerosa, o assassino mais frio e impiedoso, o sujeito mais mesquinho e abjeto guarda no seu íntimo, um mínimo que seja, de pertencimento e ligação à raça humana.
As numerosas missas católicas celebradas intentam reafirmar o espírito religioso, o serviço chegando a atingir, ainda que sem cooptar nem redimir, ateus confessos e uma gente não-praticante que cultiva uma vacilante e frágil descrença. Os cultos evangélicos logram servir a um papel encarniçado e obsessivo de arrebanhar novas e não tão inocentes ovelhas para as suas fileiras, notadamente aquelas almas que se debatem nas fronteiras da dúvida, da insegurança e da indecisão.
No Natal, ensejam confundir-se no pensamento instantâneo e etéreo propiciado pela euforia o esforço vão e a conquista inesperada, o desejo de felicidade e a impossibilidade de satisfação plena. A necessidade de extravasamento pode permitir atitudes de efêmera liberação antes incubadas e impensáveis ao convívio humano, onde o limite é o ridículo e o desastre. Inimigos e desafetos não conseguem, em determinadas circunstâncias, fugir ao luxo e ao direito de um aperto de mão, embora que, pós-Natal, voltem a ser o que eram, assumam a situação habitual de desavença e intriga.
A perplexidade e o espanto que se emergem do cotidiano inglório nivelam o alcance das batalhas justas e perdidas, alinhando-as às ações hipócritas, aos atos falhos e depressões inomináveis. Entretanto, a festa continua a simbolizar, mesmo nestes tempos de violência extremada e tecnologia da informação, a harmonia propiciada pela ceia farta, a voragem humana que não cessa, como se o ser fosse feito apenas de boca e estômago, de paladar e glutonaria, por mais que se pense e se diga o contrário.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Notas Marginais VI

A GUERRILHA VISTA POR DENTRO

Soledad no Recife, do jornalista e escritor Urariano Mota, publicado pela Boitempo, é um livro imprescindível para se compreender o movimento guerrilheiro em Pernambuco na década de 1970. Inicia-se numa sexta-feira de carnaval de 1972 no Recife, no bar Aroeira, no Pátio de São Pedro e finaliza com as mortes de um grupo de seis guerrilheiros na chácara de São Bento, em Paulista, cidade da região metropolitana recifense, em janeiro de 1973. Não sem haver uma intensiva e vigilante atualização temporal, pois o relato é também datado, e se realiza em 2009.
O encontro de militantes de esquerda naquele carnaval deflagra toda a ação posterior. Assim como o encontro do narrador que está ocultado enseja o tom explicadamente subjetivo do amor, da paixão do poeta comunista pela guerrilheira paraguaia culta, destemida e cosmopolita. Elaborado numa perspectiva em que o detalhe sugere a amplidão, o fato isolado atinge o país todo, o texto traz a reflexão dialética permanente, insistente e, em certos instantes, obsessiva até. Porque o autor tende a explicar e desenvolver pormenores, a não deixar nada sem esclarecimento. A narrativa transforma-se, assim, num testemunho ficcional que comporta forte sentido do real, como se a ficção se entranhasse ao cotidiano e a poesia tivesse alcance alargado e consequências práticas.
O narrador-personagem se remove na sombra, embora interfira diretamente nas vidas dos outros personagens. Mas de um modo discreto, sem causar danos à maioria deles. No entanto, o amor por Soledad e a solidariedade aos companheiros são entremeados pelo ódio e a desconfiança que, ao tempo, já se manifestava contra um deles, o infiltrado Cabo Anselmo. O capítulo mais longo é dedicado justamente à tentativa de compreensão da figura do verdugo e dos motivos e intencionalidades que levaram o traiçoeiro Anselmo a entregar a própria mulher, Soledad. Mesmo assim, em vista do nojo e do ódio que nutre, esse personagem inominado mantém o necessário equilíbrio e a tremenda frieza da precisão na análise dos acontecimentos. E isto, apesar da dor inominável que os eventos lhe causaram. O ato de escrever torna-se, aqui, necessidade premente e urgente de livrar-se, um pouco que seja, ainda que 37 anos depois, do fluxo trágico da memória da chacina da chácara de São Bento. E da perda do amor ali bem próximo, para, exatamente, Anselmo, que tem no livro o cognome de Daniel, um dos maiores dedos-duros da América Latina, alcaguete subordinado ao Delegado Fleury. Que não teve pulso suficiente para evitar a morte da companheira grávida, mesmo que isso significasse a separação definitiva de ambos em vida.
De outro lado, os membros da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária, ou de outras organizações, não perdoavam àqueles que fossem suspeitos de infiltração em suas fileiras. A execução era certa, a decretação de morte um caso decidido. O espião, contudo, era mais esperto, usava roupas de estilo hippie, conhecia o jargão revolucionário e conspiratório, tinha uma postura aparentemente destemida, radical, combativa. Depois da sua chegada ao Recife, sucessivos pontos foram caindo, a repressão passou a atuar sem contemplações.
Em muitas passagens de Soledad no Recife a percepção crua dos fatos cede lugar ao lirismo, a inclinação socialista se abre para sentimentos, vivências e emoções geralmente vetadas aos revolucionários, à gente que queria mudar os rumos do país. É nessa direção que Urariano Mota escreve sua melhor ficção, quando o jornalista se afasta do flagrante e da informação para que o escritor se revele em toda a sua potencialidade e fruição. A construção inteligente dos diálogos, a visão intensa da mulher amada sem esperanças, o companheirismo que não admite nem mesmo as fronteiras oscilantes da experiência da morte em clima propício a isto, o cuidado do jovem suburbano recifense que morava com a mãe em não cair nas malhas da polícia política são relatados com o vigor e o desempenho de quem sabe os segredos do ofício. Pode-se imaginar o sufoco de quem esteve, como é o caso do narrador, que se confunde com o próprio autor, bem próximo daquela chacina, de desencavar o pesadelo em papel e tinta, quase quarenta anos depois.
Não se pode negar que Urariano Mota conseguiu seu intento com eficácia, presteza e honestidade intelectual. Um firme distanciamento se desfaz em certos trechos, pois se coloca inevitavelmente ao homem que conta uma história algo de sua participação, o afloramento de uma psique quase sempre reprimida por orientação partidária em descontração, boemia e sentimentos. No fogo cerrado da preparação da guerrilha urbana, ou da ação em si, na clandestinidade forçada, existiam momentos para se conversar, ler poesia, assistir a bons filmes, ouvir a música tropicalista e de resistência da época.
Soledad no Recife chega no tempo certo, bem depois de outros livros bombásticos e sensacionalistas sobre a temática, alguns já esquecidos. Entre as boas realizações nesse campo, pode-se lembrar o impactante Poema sujo, de Ferreira Gullar, guardando-se as respectivas diferenças de gênero, tragicidade e alcance literário. O longo poema de Gullar foi escrito em 1975 em Buenos Aires e editado um ano depois, no Brasil, e tem como assunto a cidade de São Luís do Maranhão, propiciando uma mirada visceral que nada escamoteia ou esconde, desde as mazelas das vivências familiares, a circunstancialidade urbana da pobreza nordestina, os personagens populares inesquecíveis.
O romance de Urariano Mota fala também de uma cidade, o Recife, estendendo-se por vezes a outras duas, Olinda e Paulista. O texto centra-se em algumas poucas casas, bares, encontros e reuniões políticas. A partir do que ocorre nessa ambientação, toda uma teia de experiências existenciais e políticas é entretecida, atingindo uma profundidade ímpar, pela forma detalhista como é realizada a narrativa. A escrita perfaz-se articulada por dentro, modelar e insubstituível em suas contradições, paradoxos, contrações, tensões e sinuosidades, pondo a nu o entendimento e desvendando impiedosamente os anos terríveis do governo Médici. São razões fortes estas e outras somente descobertas no texto, que fazem a leitura de Soledad no Recife, como dito lá no início, imprescindível.


UM POEMA DE SÉRGIO DE CASTRO PINTO

Um poema de Sérgio de Castro Pinto, “Papel de jornal”, chama particularmente a atenção, pela forma como sintetiza a efemeridade e o engodo dos papéis do jornal: o papel literal de embrulho para peixe e outras mercadorias e o papel de veicular sub-repticiamente a informação, de escamoteá-la e deformá-la sem que nem sempre se perceba. O poema é de 1982 e faz parte do livro O cerco da memória (1993), podendo ser encontrando também em O cristal dos verões, poemas escolhidos: 40 anos de poesia (1967-2007). A precisão poética é uma das marcas reconhecidas de Castro Pinto. Suas visadas e tiradas inteligentes produzem versos densos, comprimidos, satíricos, de um humor que se situa entre o trágico e o lúdico. As palavras se acumulam em estrofes breves e semanticamente inter-relacionadas, em vocabulário rico e fértil em suas escolhas. Além disso, o poeta paraibano exerce, entre outras atividades, o jornalismo profissional, o que o autoriza a escrever um poema crítico e incisivo como esse. Eis o texto em sua inteireza:

no papel de jornal
cabe o presente
e o seu papel
de estocar embrulhos.

o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.

no papel de jornal
transporto o presente
e o seu papel
de estocar entulhos.

o presente
e o seu papel
de provocar engulhos.

no papel de jornal
cabe todo presente.

o presente
e o seu papel
de sonegar futuro.


CLUBE NÁUTICO CAPIBARIBE

Torço pelo Náutico desde menino. Comecei aí pelos onze anos de idade, ainda em Sertânia, continuando fiel ao time até hoje. Assisti a jogos memoráveis na década de 1970, mas não vou mais a campo. Assim, não me peçam escalações completas, pois para isso teria de pesquisar nas seções esportivas dos jornais ou consultar torcedores mais antenados a isso. As vitórias do time trazem aquela alegria leve, descontraída e esperançosa. Na derrota é preciso ter a cabeça fria, não procurar desculpas esfarrapadas para o fracasso de uma partida.
Quando o Náutico entra em campo, com o fascínio das cores branco e vermelho, o coração pulsa mais forte. Um sentimento épico e indizível atinge seus torcedores, e honrosamente me associo a eles. A vontade de estar também vestindo a camisa alvirrubra faz com que o sonho, por instantes, se transmute em real e a realidade fique sendo, flagrantemente, a expectativa do início do embate.
O único inconveniente no futebol mostra-se na circunstância de se assistir a um jogo sozinho. Os amigos desaparecem às vezes, a família pode estar ocupada em outras atividades, e não há mais escolha coletiva. Resta, apenas, a concentração total no jogo que os canais de TV competentemente permitem e facilitam. O domingo se passa mais movimentado e alegre ao sabor da bola rolando no campo.


LITERATURA E ARTE NOS GROTÕES

A paisagem rural do Sertão é áspera, estática, solar, misteriosa e pouco muda ao longo do tempo. Há, ainda, vaqueiros que são telúricos, primitivos, destemidos. Entretanto, estações de telefonia móvel, rádios FM, antenas parabólicas, o aparato receptor para internet e TV a cabo proliferam paulatinamente. Com seus poetas, artistas, artesãos e intelectuais nativos o Sertão produz a sua arte, música e literatura, os seus objetos de barro e madeira para exportação. E isto, em dosagens discretas do urbano e da tecnologia, conectadas à inquietação do mundo e ao presente.
Lá não existem apenas os grotões, como já classificou o Sertão, um tanto pejorativamente, um conhecido político pernambucano numa polêmica eleitoreira. Feito aquele mesmo político que sempre cabalou, surrupiou e vilipendiou milhares de votos destes mesmos grotões.


PASSOS SUBTERRÂNEOS

À margem do silêncio
a perplexidade
da cidade aflita,
seu visível teor
de concreto e quimera.

Delírios/ tramas/ cômputos
aqui ecoando:
colagens, laivos de vida.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Notas Marginais V

DRUMMOND INÉDITO

A revista Veja de 11 de novembro último traz o artigo “Drummond antes de Drummond”, de Marcelo Bortoloti, sobre um livro inédito do grande poeta brasileiro. Está sob a guarda de Antonio Carlos Secchin, e pela raridade dos “25 Poemas da triste alegria”, resta esperar com paciência para vê-lo editado. O artigo de Bortoloti é entretecido como são articuladas as matérias e reportagens da revista: puxando para a novidade, o sensacionalismo e a insistente tentativa de abrangência. Tudo isso engendrado em tempo ínfimo e pouco espaço.
Os poemas eróticos e ecológicos de Drummond encerraram o ciclo de sua poesia, e nada mais agora poderá causar surpresa. Ele sempre terá novos leitores e aficionados. Um livro-reportagem de Geneton Moraes Neto, Dossiê Drummond, dissecou segredos da vida íntima do poeta, antes jamais vindos a público. Os comentadores e analistas da obra do mineiro se multiplicam com rara profusão.
É preciso conferir um dos poemas, para se ter uma breve ideia dessa fase inicial de Drummond, que não se diferencia de outros poetas do tempo, pelo tom neo-romântico, levemente simbolista e algo parnasiano de “Matinal”: “Seios aromados do meu amor,/ na manhã cheirando a lírios!// Volúpia das flores, volúpia das almas!// Um vento leve nas folhas,/ um céu de porcelana, muito fino,/ e a manhã cheirando s lírios!// A vida é belo porque sois belos/ e sorri ante a vossa beleza,/ ó brancos e redondos/ seios aromados do meu amor.”


A INSISTÊNCIA NO ÓBVIO

O óbvio é aquela parte do cotidiano que pode levar alguém à loucura pelo excesso de real que comporta.


UM POEMA DE GULLAR

O poema “Pela rua”, de Ferreira Gullar, poeta que dispensa apresentação, associa o mais intenso lirismo da solidão e da ausência à tristeza do poeta a transitar à toa no espaço urbano e flagrantemente temporal de um domingo no Rio de Janeiro de 1966. Transcrevo o poema na íntegra:

Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
Continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.


FESTIVAL LITERÁRIO NO SERTÃO

A viagem do Recife a Sertânia tem um percurso aproximado de 320 quilômetros. No caminho há cidades como Caruaru e Arcoverde, que estão entre as mais conhecidas. Para se chegar a Sertânia, passa-se por Cruzeiro do Nordeste, distrito que teve locações do filme Central do Brasil. Há trechos sinuosos e traiçoeiros, onde a rodovia não é duplicada. Um tráfego ininterrupto de carretas, ônibus e caminhões, além, obviamente, dos carros de passeio e motocicletas. A paisagem é composta de serrotes, descampados, granitos, árvores e leitos secos de riachos. É uma travessia de sol e asfalto, numerosos postos de gasolina e cidades sequenciadas que se assemelham umas às outras bem mais do que deveriam.
Em Sertânia participei, nos dias 19 e 20 de novembro, da versão 3 do Festival Literário do Sertão, que ganhou o prêmio Viva Leitura 2009, na categoria Escolas Públicas e Privadas. O prêmio tem alcance nacional e patrocínio dos ministérios da Cultura e da Educação. Na Escola Estadual Olavo Bilac, local de realização do evento, estudei de 1969 a 72. Um auditório repleto de alunos, professores e gente interessada da população foi o palco de apresentações de músicos, escritores e artistas populares.
Diante dessa plateia, conversei como poeta e professor Josessandro Andrade, idealizador do evento, sobre o meu livro Musa fragmentada – a poética de Carlos Pena Filho. Ele me perguntou sobre a vertente popular na poesia de Carlos Pena: se o poeta
recifense trabalhou o Episódio sinistro de Virgulino Ferreira apenas em bases temáticas, sem se preocupar em absorver e desenvolver as formas populares dos cantadores de viola e cordelistas. Acredito que Pena Filho elaborou seus poemas de cunho popular entranhando-se às formas dos poetas populares, como o demonstra a intervenção do cego cantador no poema. Não foi apenas o mito de Lampião sobejamente glosado que incitou Carlos Pena Filho a escrever o Episódio sinistro. Foi preciso, sim, que Pena Filho distendesse ao máximo a sua inclinação para as temáticas e formas populares que tanto o seduziam, para alcançar tamanha eficiência naquele poema.


OS VAQUEIROS – IV

Mesmo que certos vaqueiros
atalhem o gado de moto

a tradição não se acaba
por ser ela a mais própria:

Tanger boi a cavalo
junta trabalho e esporte

e vem de tempos antigos
que não se tinha o transporte

perigoso, enviesado, de aço
de quem viaja em duas rodas.