sexta-feira, 27 de maio de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXXIX


DIÁLOGOS DE PAZ E TOLERÂNCIA
 
A condensação dos dezesseis textos de Diálogos no mundo contemporâneo – por uma cultura de paz, recém-lançado pelo escritor e advogado Antônio Campos em edição bilíngue, estabelece uma nova série de ideias, sugestões e propostas sobre grandes questões do nosso tempo. Elege a bandeira branca da paz como polo central para onde são atraídas e ramificadas outras modalidades assemelhadas e convergentes do humanismo. Tolerância, diversidade e interculturalidade são palavras recorrentes e propositivas que trazem no seu bojo a força de uma ideia e a possibilidade de uma práxis. Além disso, a problemática da pacificação mundial enfatizada é, senão conhecida em profundidade, pelo menos intuída em superfície por muita gente. Há, contudo, os que fazem questão de ignorá-la solenemente, pela omissão ou pela indiferença. Ou, o que é mais grave ainda, de trabalhar contra ela. Pode-se pensar que daí se origina, em boa medida, os grandes conflitos sociais, os confrontos bélicos que vêm se tornando corriqueiros e o descaso como atitude generalizada acerca da preservação vital e ambiental do planeta.
O livro antecipa algo das discussões que esquentarão a próxima Fliporto (Feira Literária Internacional de Pernambuco) em novembro, em Olinda, tendo como temática “Uma viagem ao Oriente”. O homenageado deste ano, Gilberto Freyre, é analisado por Antônio Campos em vários textos, a partir de certo viés antropológico que caracteriza a obra freyriana. Afirma Campos: “Na perspectiva de Gilberto Freyre, as conexões entre o Brasil, no período de sua formação, e o Oriente árabe ou asiático iam muito além de aspectos arquitetônicos, tendo sido determinantes na conformação da sensibilidade brasileira, em sua visão do mundo e seus valores culturais marcantes”. Conexões, influências e interações vastas e derivadas de um forte caldeamento de povos imigrantes e nativos, trazem à luz manifestações culturais que envolvem aspectos amplos e diversificados da vida social e política, da arte e do lazer, da economia e do trabalho, do comportamento público e privado. Na esteira de tudo isso, o alerta sobre os embates alucinados e seus efeitos irreversíveis que anulam, nas suas bases mais simples, ou nos seus surtos de maior complexidade, uma cultura de paz: “Somente diálogos construtivos de paz, uma melhor compreensão e convivência com o outro, com o diferente, vencerão o terror e a tensão entre religiões e etnias, que é o grande desafio do contemporâneo”.
Era preciso que alguém levantasse essas questões de um modo didático, dialético e compreensível. E Antônio Campos o fez com pertinência e autenticidade.


Folha de Pernambuco, 20 de maio de 2011

domingo, 22 de maio de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXXVIII

SAGRAÇÃO
 

CARLOS NEWTON JÚNIOR



Dizem
        que em alguma parte
                parece que no Brasil
        existe
                  um homem feliz.

                                               MAIACOVSKI         





I

Tempo, começarei a minha história.
Eu cantarei meu canto de mim mesmo
e nele me abrirei como se fosse
um livro feito em carne, folheado
sob a luz, pelo vento e pelo fogo.
Aqui eu deixarei tantas palavras
de ordem e desordem, de harmonia
e caos, por mais que sejam arrumadas
na aridez polida dos meus versos.
A dor não me deixou, eu te asseguro,
Tempo, ela ainda corta a minha alma
em pedaços de angústia, como a lâmina
corta postas de peixe no mercado,
à vista salivante dos mendigos.
A minha arma, Tempo, é de festim.
Sei pouco ou nada sei, então eu sigo
como um plagiador inveterado,
trazendo todo o inferno no meu peito
com os seus nove círculos de fogo;
pisoteando os versos que eu encontro
como se fossem uvas no lagar,
tentando, em vão, fazer meu próprio vinho,
que desce à garganta, aos engulhos.
Vê: hoje eu tentarei tocar a flauta
da minha escoliose acentuada.
Eu que jamais pensei em despedidas,
e sim na alegria dos encontros.
Não quero o pagamento, no futuro,
de todos os amores incompletos,
por mais que sejam belas as estrelas.
Eu a quero inteira, eu a quero
tal como a vejo agora no retrato,
nesta sua beleza que dispensa
discursos, que renega maquiagens,
como as cores, que foram escorraçadas
pelos renascentistas, dos seus mármores.
Agora é que o incidente começou:
eu passarei meus erros em revista
e os cantarei sem medo do ridículo,
sem medo do revólver na gaveta.
Mais de um crítico escroto irá dizer:
“Lá vem esse poeta decadente
com seus insuportáveis decassílabos”.
Não imaginam, Tempo, o que há de vir
e mesmo assim já mostram seus caninos.
Que eles se contorçam em suas camas
e engulam o veneno das salivas;
que cada coração se afogue em cólera
para expurgar de vez as impurezas.

Tempo,
que a tolerância deixe agora o palco
e o rancor dite os rumos da comédia:

eu irei transgredir meu próprio ser
resignado, calmo e complacente;

eu irei transgredir a minha fala
que não será mais doce, e sim amarga;

eu irei transgredir a forma exata
do poema, seus versos, suas quadras;

eu irei transgredir os meus ouvidos,
pois deixarei o metro como quem
larga a esposa e se atira num abismo. 


II

A todos vós, que me queríeis
corromper com um poema sujo,
sonhado desde as entranhas, oculto
de olhares indiscretos, com seus vermes,
e que fosse explosão, catarse,
desvelamento de impurezas
regado a vômito e fezes;

a todos vós, que me queríeis ver,
num instante de insensatez,
num momento de fraqueza, de inesperada atonia,
subverter a ordem poética;

horrorizado com o meu próprio martírio,
eu vos entrego, de mãos limpas,
a subversão da poesia.


III

Quando foi que me vesti
de sonho e de alegria?

Houve um tempo só de sonhos,
de iniciação aos mitos, de vivências
em que o real e o sonho se uniram
para forjar o poeta.

Houve um tempo de errâncias,
de brevidades irresponsáveis, de instantes
intensificados sob a luz da lua;
um tempo de verdades absolutas
que invadiam ouvidos resignados
e trancavam, por dentro, a boca muda.

Tudo o que eu ouvia, então,
era bom, era belo e verdadeiro,
mesmo que as rosas oferecidas
às vezes revelassem o espinheiro
e a triste frigidez das coisas mortas.

Não houve anjo torto nem exortação à vida:
houve a vida vivida sem disfarces,
o colégio, as notas, os brinquedos
e a solidão batendo à minha porta.


IV

Era um tempo de poesia, em que a beleza,
restringindo-se às formas naturais,
já era percebida pelo olhar
do menino cheio de esperanças.
Era um tempo de poesia, sem poema,
sem pecado nem salvação,
e um coração, de menino,
pulsava forte, mesmo sem paixão.


V

Houve um rosto que mirava espelhos
e mãos que estouravam as espinhas;
houve pés que um dia se calçaram
para jamais sentirem novamente
a terra molhada pelas chuvas,
os seixos roliços, o pinicar da areia.
Os pés incharam com o passar do tempo
até intumescerem suas veias.
Houve mãos que apalparam um par de seios
e dedos trêmulos roçavam os seus bicos
como ao sintonizar o rádio novo
do avô, temeroso de quebrá-lo.
A nudez proibida se mostrava
nos lugares mais inesperados:
num canto de muro, atrás das portas,
ou em sonhos acordados, no banheiro.


VI

De resto, de muito pouco é que me lembro:
dos jambos maduros roubados nos caminhos,
dos amigos que cresceram e mudaram de partido,
das brincadeiras de rua – bola de gude, academia, pega-bandeira,
esconde-esconde, baleado, polícia-ladrão –
e das primeiras angústias da morte inconcebível
naquele dia triste, depois do qual
não mais fui despertado por meu cão.
 

VII

Lembro-me da OCIA, a ultra-secreta
“Organização dos Cientistas Amadores”,
e sua gloriosa expedição ao Triângulo das Bermudas;
dos insetos capturados em terrenos baldios para serem dissecados,
da barata anestesiada sobre a mesa,
à base de pequenas doses de inseticida e leves chineladas,
e do primeiro choque estético,
ao ver seus líquidos internos na lâmina do microscópio,
que revelavam cores e formas admiráveis,
de um abstracionismo orgânico superior ao das vanguardas estéreis,
magistral, calidoscópico,
primordial e inigualável.
 

VIII

Na minha casa não havia livros, exceto os da escola,
e livros na escola não havia, exceto os que levávamos de casa;
moldava-se, assim, toda uma geração
de crianças cegas, alheias à vida verdadeira,
que tateavam o sublime sem compreendê-lo.
 
Esfriavam em pedra, dentro de nós,
as sementes das árvores frondosas
ali colocadas pela quinta força,
ansiosas por germinarem, ansiosas
por estenderem seus galhos nos espaços.

Adiada estava a contemplação dos enigmas,
adiado o desabrochar da consciência
de que o mundo é uma máquina, cujo segredo, indecifrável,
precisamos descobrir, sob pena de morte.
 

IX

Houve conquistas e roteiros malogrados
e olhos sempre abertos pelo medo.

Houve noites de insônia e auroras
atravessadas sem os seus cabelos.

Houve mãos vazias e dedos intranqüilos
a tatear em vão tantos segredos.

Houve tardes de sol, e se não foram tantas,
adornaram meus versos de esperanças.
 

X

Houve falas bebidas como sumos,
pois as línguas não duelaram, eram espadas
embainhadas, sem o vigor da ira.
As línguas se continham em cada boca,
inofensivas como as armas na parede
de um colecionador de antiguidades.
As órbitas reluziam os seus raios
de centro a centro das retinas,
e cada qual com o seu punhal oculto
via a alma do outro aprisionada
por compromissos, convenções, hipocrisias.
 

XI

Houve a tarde de chuva grossa, e o encontro
fortuito na esquina do colégio:
“Ei-la, então”, pensei quase alto,
“bastaria que essas mãos apaziguassem minha face
para que eu não mais temesse o sabor das maçãs
nem que essa chuva se transformasse num dilúvio”.

Ali estávamos:
eu com o guarda-chuvas, a oferecer abrigo
e a receber, em troca, o seu sorriso,
o leve contato do seu ombro,
a paz que excede os conflitos do mundo
nos segundos em que a levei até o carro.

Houve o beijo sonhado no escuro
e a realidade do escarro.
 

XII

Eu não venho dos bagos de guerreiros
como o poeta Mourão, eu não descendo
de Albuquerques, Cavalcantis, desbravadores
de mares e de terras, com suas cartas,
os seus dotes, suas ilhas, seus forais,
sua fome de ouro, seus brasões
impressos em padrões armoriais.

A minha grei de gente mediana,
de funcionários honrados, de mãos limpas,
de rostos escanhoados e bigodes
aparados, de voz polida
e sorrisos anuentes,
instilou no meu sangue essa revolta
que só agora vomito no papel;

que se materializa em negra tinta
e se espraia na barba descuidada,
nos modos obtusos, na rispidez da língua.

Eu travarei a luta, verso a verso.
Combaterei, incansável,
a crítica burra, a mídia louca,
a intolerância dos medíocres,
a inveja inconseqüente dos canalhas,
os jornalistas sem caráter,
a porca rafaméia dos políticos,
os poetastros, os possessos,
a gente analfabeta da província.

A mesa já está posta, os comensais
aguardam ansiosos o banquete.
“Há ali um colunista social”, alguém me diz,
“que veio para cobrir tão nobre evento”.
Dá-lhe, amigo, aquele feixe de feno,
pois eu te asseguro que se ele o provar
sairá daqui extasiado, afirmando
não haver degustado, em toda a vida,
semelhante iguaria, tão bem servida.
 

XIII

Nutrido de distâncias, eu, o amargo,
ainda espero a tua aparição efêmera.
Quando virás dourar as minhas tardes
descendo desse azul de céu sem fim?

Eu te espero na solidão de fruta
esquecida no prato, à revelia das crianças,
que irá apodrecer sem ser provada.

Eu te espero
como o menino que se perdeu,
desesperado entre tantas pernas,
chora abraçado à sua bola.

Eu te espero
como um velho lúcido, mas inválido,
aguarda a jovem e bela enfermeira
que o levará ao jardim.

Eu te espero como o mais mísero dos náufragos,
um doente dos nervos, um neurótico,
boiando no oceano da loucura,
e que ainda aguarda, por milagre,
a tábua da sua salvação,
o fim dos surtos, dos delírios, das alucinações.
 

XIV

Chega a noite, abro mais um livro
de poeta que me toca, o doce som da flauta
acende o apetite dos ouvidos
e faz vibrar a viga dos meus ossos.
Meus dedos roçam, lentamente, o inefável,
percorrem as manchas negras no papel,
como se tateassem o ventre de mulher grávida,
que ainda não clama com dores, ainda
não sofre tormentos por parir.
Eis o choque estético, a faísca elétrica
transmite-se de uma folha à outra,
da folha impressa à folha branca, imaculada
que o poeta também trouxe para a mesa,
e a estupra no furor da esferográfica.
Então o poema, prenhe de beleza
gera outros versos, como o sêmen
gera filhos, e estes, num olhar, num simples gesto,
revelam, mesmo sem querer, a sua estirpe,
o pasto em que seus touros ruminaram,
a mais pura visão da sua origem.
 

XV

Uma ave sobrevoa o meu poema
em círculos, ela adeja sobre o núcleo
da beleza que não gerei, mas reencontro
em tantas noites de leitura silenciosa.
Será o poema, então, reminiscência
não dos arquétipos, mas de tudo
que se constrói à luz do engenho humano
e de repente explode e se derrama
num gozo de prazer indescritível
pela alvura do papel, como os metais
derretem-se no cadinho do alquimista.
Um poema alimenta o outro, como a ave
alimenta seus filhotes, depositando a caça
retalhada em pedaços, pelas garras,
diretamente nos seus bicos.
Ao fazê-lo, decerto ela ignora
que lhes transmite a seiva do futuro,
de tudo aquilo que reluz agora
e irá reluzir, mesmo no escuro.
 

XVI

Há milênios essa ave
acicata a nossa raça,
chamando-nos para o sol.
Desde o dia primeiro, em que voou
sobre pequenas placas de argila,
até hoje, quando adeja
sobre teclados, monitores, fiações.
As distâncias percorridas no seu vôo
revelam a soberba extensão da memória.
A ave, de fato, voou alto,
percorrendo distâncias imensuráveis:
partiu das margens dos quatro rios,
sobrevoou as ruínas de Sodoma,
transpôs montanhas e vales desérticos,
desceu velozmente à Hélade piscosa, roçou
as asas nos pescoços dos aedos,
acompanhou, de cima, as trilhas dos menestréis,
cruzou o oceano acompanhando caravelas,
tocou as cordas de prata das violas,
forjou o som fanhoso das rabecas.
E assim, ligando os elos da corrente,
marcou a minha fronte a ferro quente.
 

XVII

Não há vôo
sem pássaro dentro, não há
nenhum vôo à nossa espera
que nos leve além das rotas conhecidas
por essa ave que singrou os quatro ventos
em seu indômito e selvagem nomadismo.
Não haverá verso sem ânsia de história,
indiferente aos mortos que nos gritam
suas queixas gasosas nos ouvidos;
não haverá verso sem passado e sem memória,
de poeta fechado no seu quarto
trocando a vida pífia pela glória
de tornar-se imortal sem ter vivido.
 

XVIII

Orientado por uma bússola interior,
instalada em suas vísceras profundas,
o pássaro sobrevoa o lugar
em que corpo e espírito se reencontram
e se contradizem.
Aqui,
liberto da sua indumentária,
das suas máscaras, seus coturnos,
na flácida nudez do corpo inerme,
o perecível ator só diz a fala
da sua própria natureza obcecada
pela glória das efêmeras criações,
pelo amor que não gozou, pela dor
que sente ao perceber que o tempo voa
ainda mais ligeiro que o pássaro maldito.
 

XIX

Que a ave cante, pois eu a seguirei
como criança que vai à caça do tesouro,
que esquece os compromissos da escola
e nem sequer se lembra do almoço.
Que poder tem esse canto, que feitiço
emana desse som que contagia
e se propaga de geração a geração,
e nos faz fantasmas em nosso próprio castelo,
arrastando correntes pelo chão?
 

XX

Não nasce o poema
de cesariana, os versos arrancados
das entranhas do cérebro, do sangue,
de um já tão inchado ventre.
Não há poema
indiferente à fértil placidez das águas claras,
às fontes e suas musas desbocadas,
ao pássaro que voa além das chamas redentoras
e nos incendeia com o seu canto,
aliviando o fardo que levamos.
O livro aberto, as palavras sublinhadas,
na vigília do desejo insatisfeito,
na iminência da fecundação
de estrofes e outros tantos versos,
sim, e ainda assim, elas esperam
a noite certa, a hora exata,
o minuto preciso da explosão.
 

XXI

De tempos em tempos, a ave, em pleno vôo,
que é risco de memória no espaço,
volta a cabeça para contemplar os escombros
das antigas civilizações,
a catástrofe dos ossos sobrepostos
como a formarem uma altíssima muralha
a impedir o seu retorno; então,
pena por pena, as asas se arrepiam,
e ela aperta, entre os dedos, os grãos
colhidos na sua terra de origem,
e que a alimentarão, para todo o sempre
e a cada salto, pois ela voa, incólume,
cada vez mais alto.
 

XXII

Ave, pássaro...
somente agora me ocorre a dúvida atroz:
será de fato ave, aquele ser alado
que só de longe diviso, mas descrevo neste canto
como se o tivesse pousado em meu ombro
e sentisse, no pescoço,
o inefável roçar das suas asas?
Será pássaro, o ser alado
que noite e dia me tutela os passos
e indica o caminho da difícil escalada?

Angelical ou demoníaco, o ser alado
oriundo das terras ermas, de mundos paralelos,
de lugares só descritos em antigas mitologias,
pode ser grifo hediondo, pode ter
o seu perfil de esfinge feroz, cruel cantora,
a nos lançar os seus enigmas indecifráveis,
ciosa de nos devorar e corromper...

Não importa: resignados, nós seguimos,
humanas carcaças do porvir,
cada qual com a sua vertigem, cada qual
com a sua morte e a sua solidão,
a tentar, no desespero dos dias e das noites,
escapar à voragem do abismo,
erguendo pontes sobre as ilhas em que nos isolamos,
feito náufragos da própria criação.

Nós, humildes servos da harmonia,
a lavrar a terra em infindáveis corvéias,
que se repetem, dia após dia,
na vã tentativa de edificar um império,
o tirânico império da Beleza,
que jamais irá nos pertencer
e no entanto já está em nós,
como uma luz para sempre acesa.
 

XXIII

A Beleza, Tempo, que é a tua mais enfática negação,
posto que é luz que transcende os belos corpos,
e tudo o que é vivo, e brilha, e é perecível,
somente é conhecida de alguns poucos:
são esses os eleitos, os que, ainda em vida,
percorreram, em difícil ascese, a via estreita,
contemplaram a juventude dos deuses,
e a estes se uniram, em pacto de sangue.
Somente depois foi que morreram,
imunes à dinâmica dos finíssimos grãos
que escorrem na ampulheta do teu ombro.
 

XXIV

Eu vi coisas, Tempo,
que nem o teu fantástico poder
apagará da minha mente.
Eu vi
os soberbos corcéis e seus ginetes
extraídos da pedra pelo gênio
de Fídias,
o touro negro às portas do holocausto,
indiferente entre os seus algozes;
eu vi, em outra sala,
a leoa ferida que rugia
os seus urros cortantes e ferozes.
Vi Ulisses atado ao mastro
do seu bojudo barco, costeando
a ilha das sereias, o largo peito
impando com o deleite dos seus cantos.
Eu a vi
passando em gestos leves como deusa
de talhe impecável e harmonia
de pássaro em vôo, eu a vi
dourar um dia escuro como a noite
e me trazer de volta a alegria.
 

XXV

Os corredores do museu
eram fantásticos portais do tempo;
suas paredes, guardiãs de arcanos
insondáveis pelo simples pensamento.
Meus passos esmagavam apenas metros,
e a cada metro desapareciam
as distâncias seculares da história;
desapareciam, por artes de magia,
a fome dos miseráveis, o sangue das trincheiras,
o luto das mães, as mortes inocentes,
as incompreensões, as guerras fratricidas.
Sobressaía, ao meu olhar enfeitiçado,
todo o nosso destino assinalado,
nossa estranha passagem pela Terra.
 

XXVI

Ó Senhor das vértebras aladas,
mito, sono e veio puro!
Ó Tempo, tu que és a substância
de que todos nós somos feitos!
Tu que és o curandeiro universal!
Ó tu, grão-vizir da memória!

Ó filho do Céu e da Terra, que cedo revoltou-se
contra o próprio pai, ferindo-o gravemente à foice!
Ó tu, que nem dos próprios filhos tiveste piedade
e lépido os devoravas, ao vê-los nascer,
para somente contemplá-los no fundo das tuas entranhas!

Eu te suplico, Tempo,
a ti, que te atreves a colunas de mármore e corações de cera;
a ti, vaqueiro imbatível, que em todos nós, cabeças do gado humano,
pões a tua marca, que queima feito brasa viva:
deixa-a imune a teus caprichos
de sádico cruel e inconcebível.
Em troca,
a teu decreto curvarei a fronte humilde
sem emitir nenhum protesto.

Eu me entrego a ti, em oferenda,
para que possas me consumir ainda mais rápido,
duas vezes mais rápido,
três vezes mais rápido,
matando, em meu corpo, a tua sede
de epidermes e coronárias.

Mas se isso for de fato impossível,
ó Tempo duro,
ao menos retarda sobre ela a tua ânsia
de demonstrar o teu inigualável poder.

Toma este meu canto para te distrair, considera-o
como o som das batidas de escudos e capacetes
oriundo da dança dos Curetes.

Ministra, com vagar, teu caldo estranho,
a ela que é inocente, pois não tem culpa
da beleza que lhe foi concedida
como uma dádiva, como um raio de sol,
e que, se não pode permanecer para sempre,
ao menos deve perdurar, para melhor ser lembrada,
semeando, sobre a terra,
a alegria de que é repleta, e que tanto contrasta
com teu semblante de feroz carniceiro.
 

XXVII

Cloto, Láquesis e Átropos
contigo se mancomunaram, Tempo,
para tecerem nossos tapetes, distintos e imutáveis,
mas cujos fios um dia se cruzaram,
talvez por um descuido incompreensível, posto que divino,
talvez por interferência de outros deuses, mais antigos
e de Panteão incerto.
Seja como for,
não vês que agora somos, eu e ela, Deucalião e Pirra?
Não vês que nossos pastos foram poupados, nossos rebanhos e nosso trigo,
e só juntos poderemos, agora,
renovar o gênero humano,
atirando, de olhos velados, pedras para trás,
que em homens e mulheres irão se transformando?
 

XXVIII

Setembro expõe as minhas rugas
pelos espelhos da casa.

O poeta está no poema
como a chama de uma vela
permanece na lembrança
após uma longa noite de blecaute;

o poeta está no poema
como a árvore está no fruto que se come
ou no pássaro que a tocou
ao pousar em seus galhos;

o poeta está no poema
como o estômago do homem permanece
na mão de quem lhe deu um soco,
ou nos olhos espantados do seu rosto;

o poeta está no poema
como o cervo permanece
na bala do caçador
que lhe roeu as entranhas;
como o cervo também permanece
no pernil que vai ao fogo, na fumaça
que se desprende da fogueira,
no seu forte e agradável odor;

o poeta está no poema
como o cervo ainda permanece
num osso descarnado, jogado aos cães,
como merecida recompensa,
ou na menor gota de saliva
que da boca de um cão cai na terra,
e é por esta tragada, em sua sede insaciável.
 

XXIX

Precocemente envelhecido, aos quarenta anos de idade,
Carlos Newton Júnior, professor e funcionário público,
descendente de paraibanos, pernambucanos e portugueses,
homem sem patrimônio e escritor cheio de inimigos, justamente
por não condescender com a mediocridade e o mau-caratismo,
por não bajular os poderosos do dia, por não
mudar de opinião, muito embora não tenha a idéia fixa dos doidos,
emparedado entre as dunas e os muros da universidade em que leciona
tão-somente para ganhar o pão, pois não acredita
na educação em um país de governantes que não lêem,
forçado a ascender mas mutilado
por tudo que é cansativo e antipoético
como a prosaica luta pela sobrevivência,
orgulhoso do título que recebeu,
de “Cavaleiro Armorial da Ordem da Pedra do Reino do Sertão do Brasil”,
por artes e vontades de si mesmo, à revelia
das academias, clubes de escritores e institutos
com seus compadrios, suas malícias, estatutos,
seus presidentes vitalícios, suas nulidades literárias,
cada qual com a dimensão que a província lhe concede,
sagra-se, enfim, poeta.
 

XXX

Somente agora, aos quarenta anos de idade,
eu me aproximo de ti, Maiacovski.
Antes fosse pela tua vida
de comandante revolucionário;
antes fosse pelos teus versos
cortantes, claros, combativos;
antes fosse pela inveja do teu porte
de gigante bem apessoado,
com um crânio repleto de versos
que saíam de tua boca numa voz imperativa
como o estrondo de um trovão.

Eu me aproximo de ti
por causa do amor.
Por não acreditar no trigésimo século
e saber que não irei ressuscitar
para revê-la.

Porque, com o meu coração dilacerado,
eu também desejei ser um czar
para gravar uma única imagem sobre todas as moedas
e fazê-la brilhar pela terra inteira,
cheia de alegria.

Sei, por ouvir dizer,
que poema algum irá jogá-la nos meus braços
e apagará a chama que me queima.

Sei, por ouvir dizer,
que não há esconderijo seguro o bastante,
e a ruína silenciosamente se infiltrará
em nossas veias.

Sei, por ouvir dizer,
que tudo é oculto
neste mundo edificado em erro e fogo,
e portanto não devo crer nem procurar
o que a mim foi vedado desde o nascer.

Tempo, saqueador de juventudes,
confio na tua sapiência,
conheço a tua amplitude e a ti me rendo.
Não sou um príncipe de contos de fadas, não mereço
um final feliz.
Os dias irão passar, os invernos,
primaveras e verões que hão de vir,
as dores, as lágrimas, os outonos,
os frutos apodrecerão sobre a terra
e outros surgirão, novos roçados
serão plantados após as queimadas
até a completa exaustão do solo,
destroços serão levados pelos rios
de águas poluídas e peixes mortos,
e o fruto enorme da felicidade
despontará um dia entre as ruínas
que, sem qualquer epitáfio,
abrigarão os ossos do poeta.

Um dia, quem sabe, os pósteros lerão
o meu melhor verso,
que não lhes dirá nada.

E um nome estará perdido,
para todo o sempre,
na minha sagração.


[07-09-2006]
 

In: De mãos dadas aos caboclos, Bagaço, 2008.


Notas Cotidianas e Literárias LXXXVII




O FILHO ETERNO

Existem livros que no início se mostram densos, difíceis, desencorajadores e temporariamente impossíveis de leitura. Mas é preciso domar a fera, e isto só se faz com uma volta ao campo da luta. Não para derrotar ninguém ou espantar tigres invisíveis de papel, e sim para enfrentar algum tema mais absorvente, incômodo, extremado. O filho eterno, de Cristovão Tezza, como o título sugere, não é a versão clássica e idealizada do Cristo ao longo dos séculos. A experiência real de um pai escritor inominado com o filho Felipe portador de síndrome de Down é o mote do livro. O escritor, por mais que precise do tempo de que dispõe, e que ele intenta prolongar na escrita de obras sucessivas, flagra-se na condição de quem tem de dedicar quase todo aquele tempo ao menino doente. Considerado um dos melhores livros da década anterior (a 1ª edição é de 2007), de lá para cá os prêmios – e traduções – vêm se sucedendo, entre eles, Jabuti, Telecom, APCA, e o mais recente Charles Brisset, da Associação Francesa de Psiquiatria, pela tradução intitulada “Les fils du Printemps”.
Pai e filho, com a ajuda da mãe e de uma irmã que chega depois, vão formando laços inescapáveis e firmes para dinamizar o dia a dia, repartido entre exercícios, ensinamentos e estímulos visando à adaptação da criança ao mundo. Tudo isso exige o ludismo aplicado em pintura, teatro, jogos múltiplos, gestos que se repetem ao infinito, até o manuseio do computador. Somente no futebol Felipe desenvolverá a empatia maior que o vinculará à leitura a partir de nomes de times, jogadores e campeonatos. Uma ginástica mental de combinações diversas, mais oral do que escrita ou visual, incompreendida para os que estão de fora dos eventos de torcedores, juízes, técnicos e atletas com o auxílio de placas, camisas, jogadas marcantes e partidas finais. Assiste-se à transição de uma má vontade recorrente do pai para uma aceitação franca, uma afeição e integração que envolve uma espécie de dependência do sofrimento do filho.
O autor realiza uma exposição paralela de motivos e motivações de ser escritor, trazendo referências míticas e contemporâneas, tiradas filosóficas e irreverentes, lances autobiográficos a desvelar o processo lento de uma escrita a amadurecer na crise dos 30 e na virada dos 50 anos. A indisponibilidade estética e existencial, a resistência inicial de explicações diversas (de estreia a campo literário), feito negação renitente talvez, transforma-se em leitura inadiável e O filho eterno em texto de uma alta literatura a que se vai querer sempre voltar.

Inédito, 2011

segunda-feira, 9 de maio de 2011

sábado, 7 de maio de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXXV

ENEIDA

O poema épico virgiliano Eneida, na tradução do maranhense Odorico Mendes, aparece um século e meio depois da primeira edição, publicada por ele em Paris. Da colaboração entre a editora da Unicamp e o Ateliê Editorial resultou um trabalho impecável, tanto graficamente quanto em relação à configuração final do texto, acrescido de novas notas e de um glossário por Luiz Alberto Machado Cabral, além da apresentação de Antonio Medina Rodrigues. Esta tradução tem como principal característica, já observada pelos contemporâneos de Odorico Mendes, o sistema de inversões sintáticas realizadas no texto. A isto, pode ser acrescido um preciosismo de linguagem como efeito retórico corrente em muitos autores do século 19. Constata-se, entretanto, que tal efeito não diminui a agilidade e a precisão com que verteu o poema. Tudo fica mais difícil quando se observa que não há termos rígidos de comparação ou correspondência entre a métrica latina e a portuguesa, pois na primeira todas as sílabas contam na concepção dos hexâmetros, enquanto que na segunda a última sílaba é, freqüentemente, muda. 

A saga de Enéias, que sobrevive a Tróia incendiada, fugindo com seus navios e guerreiros pelo Mediterrâneo, levando o pai Anquises e o filho Ascânio para fundar a nova terra romana, é narrada em doze cantos. A época de escrita da Eneida situa-se no intervalo entre 29 e 19 a.C., durante o reinado de César Augusto, que promoveu a paz romana depois do assassinato de Júlio César. Natural de Andes, lugar próximo a Mântua, Públio Virgílio Maro (70-19 a.C.) teve como protetores o imperador Augusto e Mecenas, que deram condições para que ele estudasse e vivesse sem trabalhar enquanto elaborava seus versos. Torna-se um poeta da corte, passando a seguir em sua poesia algumas sugestões destes poderosos seus amigos. Anteriormente à Eneida, Virgílio escrevera duas outras obras que passaram à posteridade como reconhecidamente suas, as Bucólicas e as Geórgicas. As Bucólicas, com dez poemas escritos na terra natal do poeta retratam a vida pastoril e as disputas entre pastores na arte de improvisar versos, tendo como influência geral o poeta grego Teócrito, tido como inventor do gênero. Nos quatro livros das Geórgicas, são encontradas orientações para a agricultura, incluindo um calendário de plantio e colheita para os camponeses, sinais para a identificação do tempo, segredos do cultivo das árvores, da criação de gado e da apicultura.

Um momento marcante do lirismo virgiliano na Eneida mostra-se como o encontro entre Enéias e Dido, rainha também exilada e que estava a construir Cartago. Dido se apaixona pelo príncipe troiano, o que terminará tragicamente, pois o obstinado Enéias sacrifica tudo à idéia da fundação de Roma. O livro IV relata o episódio do suicídio e das lamentações da rainha, o seu diálogo fúnebre, pungente e dilacerado com a irmã Ana: “Já traspassada, em veias cria a chaga,/ E se fina a rainha em cego fogo./ O alto valor do herói, sua alta origem/ Revolve; estampou n’alma o gesto e as falas;/ Do cuidado não dorme, não sossega./ A alva espanca do pólo a noite lenta,/ Lustrando o mundo a lâmpada febéia;/ Louca à irmã confidente então se explica:/ ‘Suspensa que visões, Ana, me aterram?/ Que hóspede novo aporta às nossas plagas?/ Quão gentil parecer! que ações! que esforço!/ Creio, nem creio em vão, provém dos deuses./ Temor vileza argúi. Dos fados jogo,/ Ai! que exaustas batalhas decantava!’’’. Mais à frente, Dido pragueja contra a paixão em que acreditou, contra o destino e o desventurado Enéias, agora visto em distanciamento e blasfêmia: “Mas engula-me o abismo, antes me arroje/ Do Onipotente um raio às sombras fundas,/ Pálidas sombras do enoitado inferno,/ Que eu te viole, ó Pudor, e as leis te infrinja:/ Quem a si conjuntou-me e a flor colheu-me,/ Consigo minha fé sepulto guarde”. A perda mostra-se demasiado incisiva, fazendo o percurso do amor até a morte, em nome de um dever e de uma piedade que eram os sentimentos mais fortes do guerreiro troiano, interlocutor de Júpiter junto aos homens.

O texto virgiliano inverte a ordem dos poemas de Homero: a primeira parte (seis primeiros livros) mantém similaridades com a Odisséia, onde o herói volta para casa (que será futuramente a Itália), saindo de Tróia, passando por Creta e pela Sicília e chegando a Cartago; a segunda, liga-se diretamente à Ilíada, com a narração de numerosas mortes, aventuras e sofrimentos causados pela guerra.  No canto XII, Enéias pretende poupar a vida de Turno, rei dos rútulos e seu maior desafeto, mas quando vê os despojos de Palante, troiano ainda jovem a quem seu inimigo matara, não hesita em executar sua vingança: “No peito aqui lhe esconde o iroso ferro:/ Gelo solve-lhe os órgãos, e num gemido/ A alma indignada se afundou nas sombras”. Nestes versos finais, Enéias cumpre a sua missão e sela o seu destino.

Do ponto de vista expressivo, percebe-se que Virgílio inaugurou, há vinte séculos, o processo poético da imitação, quando se apropriou dos temas e do verso heróico, simétrico e cesurado de Homero. Com o passar do tempo, a Eneida vai se transformando na epopéia do povo latino e a genialidade virgiliana vai também sendo reconhecida. Ele introduziu no poema, em meio às solicitações de Mecenas e Augusto, a sua verve e criatividade, fazendo prevalecer o seu modo de escrever pessoal, embora não desse o texto por acabado quando já estava próximo da morte. O mérito inestimável de seus protetores foi não ter deixado que os versos da Eneida fossem destruídos, como recomendado pelo poeta. 


In: Continente Multicultural, ano V, nº 59, nov. 2005.

Notas Cotidianas e Literárias LXXXIV

"FOTOGRAFIA", UM POEMA DE ADÉLIA PRADO

Quando minha mãe posou
para este que foi seu único retrato,
mal consentiu em ter as têmporas curvas.
Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto
que uma doutrina dura fez contido.
A boca é conspícua,
mas as orelhas se mostram.
O vestido é preto e fechado.
O temor de Deus circunda seu semblante,
como cadeia. Luminosa. Mas cadeia.
Seria um retrato triste
se não visse em seus olhos um jardim.
Não daqui. Mas jardim.

 In: Prado, Adélia. O coração disparado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 

Notas Cotidianas e Literárias LXXXIII

UMA CARTA DE GALILEU GALILEI

          No livro Grandes cartas da história, traduzidas, anotadas e selecionadas por José Paulo Paes em 1963 (São Paulo, Cultrix), há uma carta de Galileu Galilei (1564-1642), endereçada a Belisário Vinta, secretário do Grão-Duque da Toscana, um Médicis que haveria de ser, pouco depois, o protetor do astrônomo. Na carta rara, curta e esclarecedora das pesquisas que estava a desenvolver, Galileu assume a condição de "primeiro observador de coisas maravilhosas". Ei-la:

  30 de janeiro de 1610.

Estou atualmente hospedado em Veneza com o objetivo de fazer imprimir algumas observações que tenho feito dos corpos celestes por meio de um telescópio que possuo, as quais me maravilharam infinitamente, pelo que dou graças infindas a Deus, que houve por bem fazer-me o primeiro observador de coisas maravilhosas, irreveladas às idades pretéritas. Já verificara eu que a Lua era um corpo muito similar à Terra, e o mostrara ao nosso Mui Sereno senhor, mas imperfeitamente, porquanto não possuía então o excelente telecópio que ora possuo, o qual, além de mostrar-me a Lua, revelou-me uma multidão de estrelas fixas ainda não vistas, sendo elas em número dez vezes maior do que as que podem ser enxergadas a olho nu. Ademais, esclareci o que tem sido até agora tema de controvérsia entre os filósofos, a saber, a natureza da Via-Láctea.

Mas a maior de todas as maravilhas é a descoberta de quatro novos planetas: observei os seus movimentos peculiares, em relação a si mesmos e entre si, e no que diferem de todos os outros movimentos dos demais astros. E esses novos planetas movem-se ao redor de outro astro¹ mui grande, da mesma maneira que Vênus e Mercúrio, e possivelmente os outros planetas conhecidos, movem-se ao redor do Sol.  Tão logo o meu opúsculo esteja impresso, o qual, como anúncio, pretendo enviar a todos os filósofos e matemáticos, mandarei um exemplar ao Mui Sereno Grão-Duque, juntamente com um excelente telescópio, que o habilitará a julgar por si mesmo a verdade destas novidades.

¹ Tratava-se do Planeta Júpiter e de seus quatro satélites.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXXII


DOIS ESCRITORES DE UM SÓ PORTUGAL

Autores portugueses contemporâneos têm sido publicados com relativa frequência pelos editores brasileiros. Em versão originalmente lusitana ou local, trabalhos de prosa e poesia são expostos e vendidos em livrarias com maior ou menor profusão. Já se pode ler com alguma facilidade romancistas consagrados do porte de um José Saramago, um José Cardoso Pires, um António Lobo Antunes ou poetas expressivos como Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, Herberto Hélder. Fazendo parte de gerações mais recentes, dois autores ainda pouco conhecidos no Brasil, tiveram seus livros de ficção lançados agora por aqui, favorecendo, embora que modestamente, o intercâmbio frágil entre as duas literaturas, mesmo com o esforço secular que vem sendo empreendido por gente de lá e de cá.
Inês Pedrosa, escritora com mais de dez livros de ficção e ensaio publicados e jornalista em plena atuação, chega com o romance A eternidade e o desejo, resultante de uma viagem ao Brasil onde refez o percurso realizado anteriormente pelo padre António Vieira. Sob a influência confessa de Vieira, todos os capítulos são intercalados por citações em negrito do famoso padre. José Luís Peixoto, que assumiu integralmente a função de escritor, em detrimento do magistério, já foi traduzido para mais de uma dezena de idiomas e contemplado pelo prêmio José Saramago de 2001 com o romance do Alentejo rural Nenhum olhar, publicado no Brasil em 2005. Cemitério de pianos é o seu segundo livro por editora local e traz como elemento deflagrador um fato verdadeiro, a morte do atleta português Francisco Lázaro em 1912, numa maratona mundial em Estocolmo.
Do ponto de vista estético, não há praticamente nenhuma identificação literária entre ambos nos dois trabalhos, sendo seus interesses ficcionais ostensivamente díspares e as diferenças de concepção e realização mais flagrantes ainda. No livro de Inês Pedrosa o leitor pode, enviesadamente, optar pela leitura das numerosas citações em negrito de Vieira, pela narrativa da própria Inês, ou pela junção de ambos, Inês e Vieira. A romancista assumiu o risco da paródia e da paráfrase, ao tangenciar o estilo e diluir o seu próprio no de Vieira, envolvendo-se dele até a medula. A cegueira da personagem central Clara, provocada por um episódio trágico em que tentou salvar o amante António na Bahia, de tiros que terminaram por atingi-la no nervo óptico, traz a lume a sua forte paixão e o seu amor pelo professor universitário morto na ocasião.
Clara mergulha no estudo e na dissecação das cartas e sermões do padre, empreende uma nova viagem à Bahia com um amigo, Sebastião, interlocutor mais constante, que a ama sem esperanças, e vive novas peripécias amorosas com o cineasta Emanuel. Tudo isso talvez como compensação para a cegueira que a assola, embora passe a desenvolver novas formas de estar no mundo. Recorre, por exemplo, ao recurso de decifrar vozes, ruídos e silêncios ao redor para reconhecer melhor os acontecimentos exteriores. O que se torna uma espécie de idiossincrasia repetida ao extremo no livro, como se somente a existência de vozes atenuasse a falta de visão em meio à impermeabilidade de trevas e silêncio. Apela ainda para o mergulho solitário, profundo e rico no seu mundo particular. E daí surgem as reflexões mais consequentes e irreverentes que as oscilações e vertentes de seu pensamento estético, político e feminista sugerem.
Observa-se uma compulsão para o orgulho, na recusa da “pena” e do oferecimento de “ajuda” dos outros, com a manutenção de uma independência que, obviamente, não poderá funcionar em todos os momentos. A vaidade, herdada de Vieira, como a personagem esclarece, situa-se no futuro e se reafirma como a mola propulsora do clérigo para enfrentar ofensas, censuras, achaques e perseguições, apesar de sua ligação com a monarquia colonizadora lusa. Uma vaidade impiedosa e infalível, ele mesmo o sabia, que o transportaria ao coração do futuro unicamente pela força de suas palavras em sermões e outros escritos, que lograram ultrapassar quatro séculos.
Dos brasileiros citados, destaca-se o registro da poesia seminal e charmosamente angustiada de Ana Cristina César num poema de seu livro mais conhecido, A teus pés (aliás, há uma coincidência flagrante do título desse livro com outro de Inês Pedrosa, no gênero ficção, o premiado Nas tuas mãos). Um momento alto do livro se revela como um toque feminista da autora quando fala da irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, composta por mulheres negras baianas desde 1820, para, à época, angariar fundos a fim de alforriar aqueles escravos que não dispunham de dinheiro.
O discurso é antifreyriano na visada do caldeamento racial brasileiro, chamando a atenção para a tremenda carga de sofrimento e desumanidade imposta aos negros, renegando estupros e abusos sexuais como meios de miscigenação e amorenamento: “Quando se fala da doçura particular da colonização portuguesa, da miscigenação e da invenção do mulato e não sei que mais, esquece-se a realidade da escravatura: jornadas de trabalho de dezoito horas, ao sol, na agricultura, mutilações – os fugitivos e fugitivas eram punidos através do corte dos tendões –, os grilhões, as queimaduras com ferro em brasa no rosto, os açoites de chibata. (...) Desprezamos o sofrimento de milhares de pessoas que viveram neste Inferno, subjugadas pelos gloriosos civilizadores do Brasil, desprezamo-los tanto que até a instituição do abuso sexual das escravas pelos senhores brancos passa, ainda hoje, por benemérita criação de uma raça nova”.
Ao fim, Vieira é deixado um pouco de lado, e o roteiro histórico, intelectual e turístico de Clara rende-se à sensualidade e ao ludismo de seu novo parceiro baiano. Isto se aplica a “Desejo”, segundo bloco do livro, que finaliza com uma declaração erótica ao personagem Emanuel, lasciva e despudorada, restaurando a vida dos sentidos em Clara, que intenta substituir a visão pela voz, pelos sons, pelo tateio e pelos torneios sexuais que não necessitam dos olhos para se consumarem. Se assim acontece com o desejo, a eternidade proposta por Inês Pedrosa se perde com frequência na ideia subtropical de uma Bahia sempre festiva, turistizada ao máximo pela intersecção de um passado-presente de “talha dourada” e ritos não mais clandestinos como o candomblé folclorizado e midiático.
A prosa romanesca de José Luís Peixoto em Cemitério de pianos acompanha de perto o que se emerge das feridas abertas pela vida e a morte em um núcleo familiar modesto e tradicional português, contudo rico de acontecimentos inusitados. Todos giram em torno da funcionalidade precária de uma carpintaria, que vai sendo herdada pelas gerações sucessivas dos que se chamam Francisco Lázaro. E giram também sob o crivo da autoridade paterna, sustentada na ancestralidade de países que, como Portugal, estão arraigados a um rosário infindável de tradições às vezes inabaláveis, determinantes do comportamento individual de pessoas e grupos. Mesmo os casamentos falidos podem continuar a ser sustentados na aceitação de um cotidiano que se perfaz preferencialmente nos atributos e circunstâncias de cama e mesa, de conforto familiar e dietas abundantes em verduras, peixes e vinhos. Algumas mulheres aparecem em plano secundário como sombras, sem nome, volatilizadas no tempo e no espaço.
Sem esconder sua tendência intimista e confessional, José Luís avança, opostamente, para um despojamento da linguagem ao mesmo tempo veloz e contido. Trabalha no sentido de coordenar o disperso e de estabelecer elos entre o fragmentário e o que já estava prestes a ser descartado como inútil. Não há como evitar, no entanto, certo paradoxo provocado por um excesso realístico na descrição de coisas e objetos que se interpõem nos espaços e ambientações escolhidas. De outra parte, o mundo de fora inexiste nas explicitações da política e da economia, da história e da mínima demarcação cronológica. Apenas o registro da maratona na Suécia sugere o contexto histórico imediato e anterior, sob o ponto de vista do esporte. Meses e dias da semana são nomeados mas não-datados, soltos no túnel obscuro do tempo. Nesta trama genética, o conjunto de pessoas que dela participam, guardam o passado nos acontecimentos ora conflitantes ora temporariamente felizes de suas vidas: os instantes de enlevo amoroso e de trégua no ambiente familiar, contrapõem-se a acidentes corriqueiros e violentos com o peso da culpa que trazem.
A impetuosidade e a inclinação maratonista de corredor do segundo Francisco Lázaro imprime um ritmo cadenciado a seus pensamentos, vez por outra desordenados, através dos seus passos em aceleração que se dirigem ao nada, à morte por insolação. Lázaro recorda fatos e momentos marcantes de sua saga familiar e amorosa. Antes da maratona sueca, aplica uma estranha mistura de graxa e óleo no corpo. Os outros corredores acham esquisita a sua pele artificialmente acastanhada, aquela mistura fatídica que o fará receber mais intensamente o sol em seu corpo, esquentando-o a uma temperatura insuportável. Na medida em que os quilômetros se sucedem, ele vai sentindo mais próxima a presença da morte.
Há um cruzamento entre a sua morte e o nascimento do seu primeiro filho, o terceiro Francisco Lázaro, que funciona também como narrador-personagem. Isto remonta ao início do livro, onde se vê o patriarca em um hospital, o primeiro Francisco Lázaro, à espera da morte, separado dos outros doentes por esta circunstância, acontecimento entrecruzado pelo nascimento de seu neto Hermes, filho de Marta, uma hora antes. É de uma tragicidade cômica e de uma crueldade a toda prova o momento de tensão extrema em que os parentes são convocados a irem para casa e a aguardarem o telefonema noticiando a morte do patriarca: “Foram para a casa da Maria e cada um ficou abandonado num canto dentro do sofrimento. Longe, protegida, a Ana tinha dois anos e estava na casa dos avós ao lado do pai. Desprotegidos, a minha mulher, a Maria e o Francisco esperavam que o telefone tocasse. Esperavam que telefonassem do hospital com a notícia de que eu tinha morrido. Foi assim que a enfermeira disse: – Em princípio, telefonamos ainda hoje. Telefonamos logo que o seu marido falecer”.
            José Luís Peixoto paga um alto tributo à instituição familiar pela visão estreita de seus afetos e desencontros comezinhos, e que poderia se mostrar, em medida considerável, um microcosmo definidor do corpus social. O escritor não promove, por exemplo, uma visão de conjunto centrada na condição do país enquanto aglomerado humano e sociocultural de numerosos interesses, conflitos ou identificações necessárias. O seu enfoque produz um microuniverso familiar partilhado apenas por aqueles que são próximos pelos laços de sangue, insensivelmente fechado aos de fora. Ao lado de relações rudes, polêmicas e problemáticas, se salva somente a afeição comum pelas crianças, uma qualidade de todos os componentes do núcleo, que afasta temporariamente as discórdias de memória recente.
Na oficina, há uma parte de seu galpão transformada em antigo depósito de pianos, onde existem peças e mecanismos para todos os tipos de consertos. É um reino escuro e subterrâneo que serve como palco para o desenredo de cenas e situações como o encontro de corpos ávidos por sexo, a leitura de romances açucarados por Maria, a descoberta lenta e privilegiada de uma memória familiar pelo terceiro Francisco Lázaro. A narrativa de José Luís produz, a partir desse cemitério peculiar, um espólio metafórico que desamarra as notas dispersas e saltitantes dos instrumentos em utilização ou conserto. O que tem como resultado uma espécie de criação artística responsável pela vinculação, no texto ficcional, do silêncio espectral e áspero de pausas e entrelinhas à ressonância fonética de uma artesania que valida, através da escrita, a harmonia e os sentimentos conflituosos de uma comunidade humana efêmera, vilipendiada e em decomposição, mas em busca permanente de seu equilíbrio.

Texto original. Continente, março de 2009.