segunda-feira, 19 de julho de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXVIII

POLÍTICA

Já faz um bom tempo agora
que em entrevista a um jornal
Pelé disse uma frase famosa:
O brasileiro não sabe votar.

Ainda hoje estamos na dúvida
sobre isso que o Rei afirmou,
pois tem toda uma gente do povo
que não vota por dinheiro ou favor.

E se em toda escolha de nomes
se avalia e se pesa o melhor,
muitas vezes o que acontece
é que o melhor pode ser o pior.

E se em toda disputa por votos
a história assim se repete
misturando eleição com folclore
o vencedor fica sendo a vedete.



UM LIVRO UM TANTO ESCANDALOSO

O livro autobiográfico de Joaquim Nabuco, Minha formação, resultou principalmente das circunstâncias do isolamento político a que ele foi submetido após a queda do Império em 1889, pelo fato de ser um dos mais empenhados e intransigentes defensores do regime monárquico. Nabuco ficou sem espaço político efetivo para a sua atuação parlamentar, no auge de uma carreira que se inicia em 1878, quando é eleito deputado por Pernambuco, imediatamente após a morte do pai, o senador Nabuco de Araújo.

Tal eleição deveu-se a um acordo anterior entre seu pai e o barão de Vila Bela, chefe político de Pernambuco, no qual o senador Nabuco deixou averbada a indicação do filho para deputado pelo partido liberal. Em 1879, Joaquim Nabuco assume a sua cadeira na Câmara, e começa também os trabalhos da campanha abolicionista, que teria como desfecho o 13 de maio de 1888. Durante mais de uma década, essa legislatura é interrompida apenas no período 1881-83, devido a divergências entre ele e o partido liberal. Esta interrupção viria a ter consequências positivas, uma vez que foi no exílio em Londres que Nabuco escreveu O abolicionismo, livro claramente destinado à propaganda e agitação em favor da libertação dos escravos, e guardadas certas diferenças e proporções, correspondente em prosa aos poemas escravistas de Castro Alves. A grande diferença entre ambos é que a visão de Nabuco voltava-se mais para o combate ao que existia de negativo e desabonador na escravidão, no referente a aspectos históricos, sociais e econômicos, enquanto que Castro Alves era portador de uma visão poética romântica e sentimentalista, ainda que libertadora.

Na sua fase de recolhimento, Nabuco escreve, além de Minha formação, a biografia do senador Nabuco de Araújo, Um estadista do Império, e outras obras de reconhecido valor histórico, a exemplo de Balmaceda, sobre a Revolução Chilena. É desse tempo também a sua participação na fundação da Academia Brasileira de Letras, ao lado de Machado de Assis, amigo de toda a vida.

Quando foi publicado em 1900, Minha formação certamente gerou protestos e causou estranheza, como já alertou Gilberto Freyre: “Para o Brasil da época em que apareceu, Minha formação foi um livro um tanto escandaloso, por ter sido, para muitos, cheio de louvor em boca própria. Não faltou quem acusasse o autor de deselegante e narciso”.

A elite bem-pensante brasileira, da qual obviamente Joaquim Nabuco fazia parte, sendo inteiramente desfavorável à prática de confissões públicas, não poderia admitir que uma figura do porte dele passasse a revelar, sem pudores, hipocrisias ou falseamentos, a sua experiência de vida pessoal. E isto, mesmo que o memorialista jamais se excedesse ou avançasse nas declarações de vivências íntimas e particulares, decerto comprometedoras de imagens ou comportamentos de conveniência burguesa. Ou que ele pouco envolvesse nos seus relatos a gente conhecida da época, a não ser numa escala funcional que quase sempre secundarizava os circundantes, predominado aí tanto o esteio de uma vaidade considerável, como o equilíbrio sóbrio de sua educação e origem eminentemente aristocráticas.

O produto histórico-literário final de Minha formação envolve, entre outras coisas, a narração calcada numa prosa de rara fruição e reconhecida beleza poética de sua infância no Engenho Massangana; a educação primeira com o barão de Tautphoeus, as passagens pelo Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e pelas faculdades de Direito de São Paulo inicialmente, e depois a conclusão do curso no Recife; o processo de gestação seguida da afirmação de posicionamentos políticos liberais e monárquicos; a descrição de viagens que fez ao exterior em épocas distintas de sua vida, notadamente à Europa e à América; a listagem exaustiva dos autores que mais o influenciaram literária, política e filosoficamente.

Ele desvela ainda a sua transitação mundana e tendências aristocráticas, que passariam a conviver, de modo um tanto contraditório, com os mais altos ideais de emancipação dos escravos. Os seus laços burgueses de liberal fiel ao Imperador e à monarquia parlamentarista foram adquiridos por absoluta influência do pai, e logo após consolidados no conhecimento da Constituição inglesas, de Bagehot, autor hoje obsoleto e que ninguém mais lê, e também no seu desempenho como adido de legação em contato direto – e deslumbrado, como ele mesmo deixa entrever – com a nobreza da Inglaterra.

O memorialismo de Joaquim Nabuco torna-se em certos instantes denso, espectral e obscuro, pelas numerosas teorizações políticas e referências a acontecimentos históricos que empreende, pelas datações e assuntos não raro repetidos, como se ele tivesse feito, e na realidade em certa medida o fez, uma montagem aleatória de vários escritos dispersos e que guardassem pouca relação entre si.

Por outro lado, estas disposições, inovações e inversões, pouco usuais em fins do século XIX, podem ajudar a revelar a sua originalidade na concepção estrutural do livro, que não se inicia propriamente pelos anos da infância, não havendo, portanto, a rigor, uma sequência cronológica e linear definida. O capítulo da infância, “Massangana”, será apresentado como o capítulo 20 de Minha formação.

O que o motivou para esse procedimento, certamente terá sido a oportunidade e a relevância do assunto em detrimento da sequência pura e simples do tempo. De todo modo, mesmo com esta independência do fator temporal, ao fim certos capítulos se entrelaçam e se interpenetram, ganham agilidade narrativa, se lidos com a necessária atenção, embora arrastem-se os capítulos em que ele passa a enumerar as suas influências européias, o que não acontece com os que referem-se aos Estados Unidos.

Em Minha formação, o elemento político alterna-se, em períodos diversos, com as inclinações literárias e artísticas do autor. No capítulo “Crise poética”, o depoimento acerca da sua condição de poeta malogrado, consciente de suas limitações para este ofício, é de uma sinceridade gritante. É sintomático o fato de ele eleger Camões como poeta de sua preferência, estendendo-se esta admiração desde a adolescência à maturidade, e tendo continuidade nos seus tempos de embaixador nos Estados Unidos, com vários discursos pronunciados sobre o poeta.

No capítulo final, “Os últimos dez anos”, não há como deixar de identificar a sua impaciência em prosseguir nesse memorialismo, que o faz estabelecer como ponto de chegada das suas vivências, bem mais públicas que privadas, a idade de cinquenta anos, demarcando assim, de modo bastante sugestivo, o que já se encontrava definido e realizado em sua intensa atuação política. A sua ação libertadora chega até a vitória da causa abolicionista, que permitiu, sem que talvez ele próprio fizesse idéia do que estava por vir, a derrubada do Império e motivou, na mesma sucessão de acontecimentos, o advento da República.

(In: Suplemento Cultural da CEPE, ano XIII, jul. 1999.)


CRÍTICO LITERÁRIO E DE ARTE

Gilberto Freyre assina, além da obra sociológica e antropológica que o consagrou, um tipo de produção literária infrequente e de não tão grande ocorrência em seus escritos, e assim de certo modo pouco conhecida do público leitor, intelectual ou não, que o vem acompanhando.

Essa produção literária – diferentemente de seus livros de reconhecida importância como Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1959) – refere-se à crítica praticada por ele, que se efetiva tanto no plano artístico-cultural quanto no literário propriamente.

Em 1962, através do então jovem crítico Renato Carneiro Campos, tais textos críticos foram reunidos e organizados numa publicação a que se intitulou Vida, forma e cor, editada pela José Olympio, no Rio de Janeiro. A segunda edição de Vida, forma e cor, a cargo da Editora Record, também no Rio de Janeiro, só sairia vinte e cinco anos depois, em 1987, ano da morte de Gilberto Freyre, mas, a julgar pela ficha catalográfica do livro, com este ainda vivo. Nesta nova edição foram suprimidos sete textos, “Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil”, “Nota sobre Augusto dos Anjos”, “Euclydes da Cunha: sua interpretação do Brasil”, “Euclydes da Cunha, tropicalista”, “Introdução do autor ao livro Região e tradição”, “Temas estrangeiros” e “De um Diário de viagem pelas terras europeias de Portugal”, e acrescentado um, “Ciência do homem e museologia: sugestões em torno do Museu do Homem do Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco”.

Foram mantidos na íntegra os dois prefácios constantes na primeira edição, do autor e de Renato Carneiro Campos, onde no de Freyre há a indicação do percurso de alguns destes ensaios e artigos, apesar das supressões e do acréscimo referidos: “São trabalhos de épocas diversas. O ensaio sobre Augusto dos Anjos foi escrito em inglês e em Oxford; e apareceu numa revista literária de Boston em ano remotíssimo: 1924. As notas sobre pintura no Nordeste são de 1925. O ensaio acerca de Amy Lowell inclui trechos de um trabalho, também escrito em inglês, aparecido num jornal dos Estados Unidos, quando o autor era ainda estudante da Universidade de Baylor. Vários dos outros ensaios são de todo inéditos. Alguns, porém, são retirados de trabalhos já publicados: Aventura e rotina e A propósito de frades, principalmente. A nota sobre Joyce apareceu primeiro em jornal, depois em Artigos de jornal – livro esgotado há anos. São também incluídos o prefácio a outro livro, há anos esgotado, Região e tradição, o prefácio a O romance brasileiro, de Olívio Montenegro, o prefácio aos Ensaios de crítica de poesia, de Otávio Freitas Júnior, o prefácio aos Poemas negros, de Jorge de Lima, o prefácio ao ensaio de Temístocles Linhares sobre o romance moderno.

Um dos primeiros autores brasileiros a atentar para a presença de Freyre como crítico foi o decano da crítica paulistana Antonio Candido, com o pequeno mas sugestivo ensaio inicialmente titulado “Gilberto Freyre crítico literário” (1962), e quando republicado em 1993, com o título mais provocativo “Um crítico fortuito (mas válido)”.

Seja como for, há no ensaio de Candido muita acuidade perceptiva com relação à função crítico-analítica de Freyre, como quando discorre sobre a “ambiguidade criadora” presente na obra do sociólogo pernambucano: “Nela – na obra –, quando saímos à busca do sociólogo deslizamos para o escritor, e quando procuramos o escritor damos com o sociólogo, Se procurarmos especificamente o crítico, acharemos o estudioso que utiliza impuramente a literatura para os fins de sua manipulação sociológica; mas – continua Candido – a impura utilização torna-se de súbito tratamento vivificante, que retorna sobre a literatura a fim de esclarecê-la, porque a sociologia de Gilberto Freyre, sendo estudo rigoroso, é também visão, e a este título a expressão literária se crava no seu cerne, como recurso de elucidação e pesquisa”. A ligação de Gilberto Freyre com os assuntos literários remonta à sua formação escolar no Recife, na década de 1910 e em parte da década de 1920, se bem que sem orientação estilística definida. Desse tempo importam as leituras de autores brasileiros, hispânicos, portugueses, ingleses e franceses, com uma predileção especial dele pela literatura inglesa.

Neste Vida, forma e cor, podem ser conferidos textos de variado teor artístico-literário, e mesmo “científico”: no campo literário mais estrito, aparecem textos sobre poetas, romancistas, críticos literários e outros tipos de prosadores; na reflexão teórica que se reivindica ampla, ensaios sobre pintores pernambucanos de importância comprovada – Lula Cardoso Aires, Cícero Dias, Francisco Brennand; e, finalmente, os ensaios “culturais” sobre estética, sociologia, língua portuguesa, museologia, todos em conjunção estreita com a literatura.

O que poderia às vezes emergir em tais textos como dispersão crítica metodológica, recebe um reforço significativo da quantidade de informações que eles carregam, como por exemplo, num mesmo ensaio o autor ensejar a análise arguta de um romance de Josué Montello em pouquíssimas linhas, ou expor a condição do drama pernambucano a partir das primeiras experiências de um Ariano Suassuna.

A interdisciplinaridade que se faz presente nestes ensaios resulta de um modo desviante de análise e interpretação de Freyre, com a inter-relação constante de disciplinas, gêneros literários ou tendências da arte moderna. Além da erudição que teima em não se mostrar, em muito pela espontaneidade que se verifica no tratamento com autores brasileiros ou estrangeiros, através da extrema simplicidade com que ele apresenta e defende seus pontos de vista, é uma característica sua o biografismo através de perfis que ficaram famosos, como os que escreveu sobre Euclides da Cunha, Augusto dos anjos e Jorge de Lima.

Se Freyre se sai bem melhor quando se dedica a formular seus julgamentos valorativos de vertente impressionista, sob a perspectiva de um criticismo humanista, não há como negar os seus numerosos acertos, achados e descobertas, inclusive quanto a aspectos formais, mais em prosa que em poesia, mesmo em alguns momentos nos quais ele prende-se demasiadamente às suas impressões e empatias particulares.

(In: Suplemento Cultural da CEPE, ano XIV, mar. 2000.)


segunda-feira, 5 de julho de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXVII

CHÁ DAS CINCO COM O VAMPIRO

Miguel Sanches Neto é o crítico literário de maior visibilidade do Paraná. Atua também na poesia e na ficção, tendo estreado com um romance de forte vetorização autobiográfica Chove sobre minha infância (2000). A infância e a adolescência atribuladas que levou junto à mãe a quem amava e a um padrasto de quem não gostava, em meio ao trabalho árduo no campo e aos sonhos de enveredar pelos caminhos da literatura são enfocados nesse livro. Em A primeira mulher (2008), seu terceiro romance, Sanches vai privilegiar os meandros do romance de enigma policial, as veredas da articulação política, a desilusão do personagem frente ao ensino universitário, a solidão do homem no espaço urbano, a relação conturbada com as mulheres, e, ainda, a relação edipiana, ao mesmo tempo em que propositadamente distanciada, com a mãe.

Sanches Neto chega agora com seu quarto romance, Chá das cinco com o vampiro, marcado pela polêmica em torno de situações e personagens transplantados da ambiência literária curitibana para o corpo da ficção. A narrativa se entretece entre 1982 e 2002, absorvendo duas cidades paranaenses, Peabiru e Curitiba. Cerca de oito anos após a sua versão inicial, passando pela recusa de algumas editoras e pelas confusões e peripécias originadas do conteúdo que vazou e que tornava identificáveis escritores e jornalistas vivos, a Objetiva finalmente aceitou publicá-lo. Duas linhas de leitura podem ser adotadas para o livro: uma que se prende à cota de realidade sugerida pelas figuras literárias e suas circunstâncias, e outra que desvincula rostos vivos ou mortos da necessidade de serem estabelecidos nexos que os identifiquem com maior ou menor facilidade. O autor conviveu com todos eles, em níveis oscilantes entre a amizade e a desavença, a intimidade desfeita e a indiferença total.

A primeira é uma leitura tendenciosa a explorar vaidades literárias, embates surdos, miudezas da convivência gerada entre pares que lutam para ser reconhecidos dentro e fora do circuito provinciano. Mesmo que alguns já estejam alçados à condição de escritores nacionais, o entrevero se estende indefinidamente, até mesmo depois da morte. Neste caso, a vida literária é mais valorizada do que a própria produção textual, o difícil e espinhoso trabalho individual com a palavra é posto em segundo plano pelo flagrante da conversa mafiosa e suspeita ao pé do ouvido.

A segunda leitura não terá como referencial privilegiado os rostos notáveis ou obscuros, ou uma mistura de ambos. Tratará das questões que envolvem o lastro ficcional trazido pelo autor com seu romance. Não se poderá fugir, nesse ponto, ao recorte em que se inclui a parcela autobiográfica. Insurge-se, então, o personagem Beto Nunes, seus pais e sua tia Ester, que terão importância óbvia na construção da narrativa. Ester ocupará frações significativas da vida do personagem central Beto, com um andamento que ofuscará, em muitas passagens e trechos, Geraldo Trentini.

O grande contista, motivador de toda a polêmica gerada pelo livro, não deixará de ser associado a Dalton Trevisan, qualquer que seja a interpretação que se faça. Beto Nunes ou Roberto Nunes Filho, o alter ego e simulacro ficcional de Miguel Sanches Neto, o discípulo e amigo de antes de Trentini, passa a ser visto como o algoz e inimigo de hoje. Assume a condição maldita de ter revelado segredos pessoais do ficcionista silenciados como um código de honra e respeito pelos curitibanos.

É um fato que Trentini aparece sem aparecer, mostra-se e esconde-se cotidianamente no seu ocultamento de boné, casaco e caminhadas, qual esfinge esquiva e inalcançável que não permite a surpresa de fotografias, as entrevistas incômodas e as devassas na sua misteriosa transitação pela cidade e o seu isolamento em casa. O risco óbvio que o personagem Beto Nunes correu foi o de expor detalhes de uma intimidade guardada a sete chaves. E que, pelo lido no texto, desvenda coisas até então desconhecidas por aqueles poucos com quem convive ou conviveu Geraldo Trentini/Dalton Trevisan.

Não se pode negar que Sanches Neto conhece bem o ofício da escrita. Distribui os capítulos setorialmente em anos esparsos de três décadas, lembrando uma técnica bastante utilizada pelo norte-americano John dos Passos. Contudo, não há um enredo rigoroso propriamente, que obedeça incondicionalmente à lógica temporal e espacial de uma história convencional em prosa. A linearidade de situações e acontecimentos é quebrada e confundida o tempo todo, renegando a monotonia descritivística e impulsionando o andamento cronológico de uma duração estática para outra em constante mutação e avanço. A trama caminha com o personagem principal e a recíproca é verdadeira – o personagem vai sendo feito ao largo da colação anuária mesclada das décadas e cidades envolvidas, com os eventos sobrepondo-se, anulando-se e desaparecendo uns nos outros, da adolescência aos inícios da maturidade de Beto. Este personagem redondo se move ao sabor da incerteza que a passagem das horas lhe oferece. E que ele também conquista, nas suas incontáveis leituras e na sua luta para afirmar-se como escritor em Curitiba. Ao modo de um estopim aceso, as suas revelações incendeiam a pólvora das discórdias, idiossincrasias e desentendimentos.

Beto Nunes vive a vida de um estudante pobre do interior no ambiente inicialmente hostil da capital. Começa numa república de estudantes, depois passa a morar sozinho, sempre com a ajuda de uma mesada familiar. Demonstra pouco interesse pelo curso, e ao invés de assistir aulas, dedica-se a ler. As suas primeiras abordagens a Geraldo Trentini vêm dessa época. E é através de Trentini que os espaços de jornal se abrem, com a publicação de um texto sobre o contista. Dividido entre a solidão e o conhecimento de escritores, Beto Nunes vai produzindo seus textos, ficando conhecido e se impondo como crítico e escritor. Quando sua reputação local está consolidada, inicia um rompimento com a maioria daqueles de quem se aproximara. Com o auxílio de Valter Marcondes, empreende julgamentos desabonadores da obra de Geraldo Trentini e de alguns outros componentes da ambiência cultural paranaense.

Família, sexo, solidão, religiosidade e busca de solidez na vida são motes que atravessam o livro. Beto Nunes carrega o esteio da provocação direta, a necessidade iconoclasta de derrubar preconceitos, tabus e valores antigos. Opostamente, impõe-se a vontade acomodatícia subliminar em torno de formas de vencer na vida, encontrada na relativização de sucesso no jornalismo, ao manter uma coluna literária no jornal paranaense O Diário desde os anos de formação. Fornece um retrato impiedoso do pai com seu bafo de pinga e da mãe com seu cheiro diário de doce. As descobertas e práticas sexuais de Beto Nunes são relatadas extensamente ao largo do livro em tons profanos: o incesto com a tia Ester, a violação metafórica do sagrado pela ejaculação em um pão feito por sua própria mãe, a segunda iniciação sexual num cabaré onde seu pai o levara e a relação proibida com a namorada Martha comprometida com outro.

O mundo literário curitibano é visto em suas facetas de avanço ou decadência, restando poucas figuras respeitáveis por suas obras, entre elas o personagem Valter Marcondes, identificado como o crítico literário Wilson Martins e o próprio Geraldo Trentini/Dalton Trevisan. Uílcon Branco/Wilson Bueno, recentemente morto, era o editor do jornal Maria, que na realidade se chamava Nicolau, e estava circunscrito no grupo de literatura neobarroca latino-americana, sendo visto como autor de uma obra preciosista e de valor apenas para a história literária; Valério Chaves/Valêncio Xavier, falecido em 2008, era o vanguardista que aparece também desfavoravelmente em Chá das cinco com o vampiro por escrever uma literatura trash e feita de montagens e colagens. O publicitário Antônio Akel/Jamil Sneg, é um cronista e escritor que detém o respeito, a amizade e a simpatia do personagem-narrador. O colunista político Orlando Capote/Fábio Campana carrega a dupla imagem do jornalista bem-sucedido e do escritor medíocre.

O jovem discípulo e aprendiz de escritor intenta superar o vampiro mestre da ficção curitibana, além de todos aqueles que o incensam e cercam, numa admiração ampla e inesquivável. Beto Nunes não se importa com as gerações a que pertencem, com os livros que publicaram ou com os títulos que ostentam, pois sabe que irão transformar-se em futuros desafetos, uma prática normal na província. O processo de troca, convivência e conhecimento estético entre o autor e o contista curitibano iniciou-se pelo lado considerado sério da escrita, a análise literária do romance A polaquinha, de Dalton Trevisan. Entre outras coisas, as circunvoluções paródicas do erotismo são apresentadas como a maneira que as prostitutas encontram para resistir e enfrentar gigolôs, homens casados e jovens em busca da primeira experiência sexual, através da dissimulação e da aparente fragilidade. Não configura nenhuma coincidência o fato de que um dos textos inaugurais da lavra de Miguel Sanches Neto ter sido justamente O artefato obsceno: visitando a polaquinha (1994), editado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (onde o escritor leciona), sob a forma de um breve ensaio acadêmico.

domingo, 4 de julho de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXVI

OS VAQUEIROS


I

Quem viveu na caatinga
e foi criado no mato,

nascido na Cacimbinha
entre Sertânia e o Brabo

pode não ter mãos certeiras
na derrubada do gado,

pode não ter mãos de seda
nem feitas de muitos calos,

mas guarda os que a caneta
lhe trouxe de verso e palavras

escritas na força e peleja
do poeta com seus fantasmas,

de menino que veio cedo
estudar e morar na cidade.

II

Quem foi criado no mato,
no ermo dos tabuleiros

já teve o traquejo do gado
gostando de ver no terreiro

das fazendas ou soltos no pasto
os bichos sobre os lajedos

pulando barrancos e grotas
tangidos pelos vaqueiros.

III

No Sertão há meninos vaqueiros
sem medo correndo prado.

Há os vaqueiros mais velhos
nas pegas de boi pelo mato.

Também os mais jovens vaqueiros
com sua sanha e amor pelo gado.

Há ainda as mulheres vaqueiras
que humanizam essa arte de macho.

E tem ainda os poetas vaqueiros
que improvisam aboio e toada.

IV

Mesmo que certos vaqueiros
atalhem o gado de moto

a tradição não se acaba
por ser ela a mais própria:

Tanger boi a cavalo
junta trabalho e esporte

e vem de tempos antigos
que não se tinha o transporte

perigoso, enviesado, de aço
de quem viaja em duas rodas.

V

O que mais conta ao vaqueiro
é a destreza no trato com os animais.

O que mais vale ao vaqueiro
é o lento preparo de bois e cavalos.

Cavalos para sela e torneio.
Bois para as festas de vaquejada.

VI

Mais de cinquenta léguas
tangem boiada os vaqueiros,

arreios recurvos nas selas
atrás de negócios nas feiras

do Sertão e Agreste, na leva
pastoril das rédeas ligeiras.

Contornam estradas e serras,
previnem o estouro e a perda

de reses só confiadas a eles.
Descansam à sombra das árvores

próximas de pasto e riacho
em terras de cacto e veredas.

Prosseguem ao sol incidente
nos verdes de cinza e distância

quando o gado desfila pungente
mugidos de preguiça inconstante

e desolado o azul se faz lento
aboiar pelo ermo horizonte.

sábado, 3 de julho de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XXV

LEMBRANDO CARLOS PENA

 Carlos Pena Filho fez sua estreia na poesia em 1952 com O tempo da busca, volume de poemas magro e apropriado à sua condição de jovem poeta. Nascido no Recife, em 17 de maio de 1929, desde muito cedo se afirmou como personalidade singular de poeta em franca e rápida expansão. Ao absorver a experiência concreta com o mundo sensível na atividade de maior peso em sua vida e na qual conseguia suas melhores realizações e sucessos, a poesia, desenvolveu um lirismo emocionado e subjetivo. Com o apuramento de uma sensibilidade estética privilegiada, contrapôs a esse lirismo limpo e arrojado poemas de vertente social e popular. E serviu-se do mesmo cuidado tanto com as estruturas fixas e tradicionais ocorrentes no lírico, quanto com as formas livres presentes nos poemas de raiz mais nordestinada. Tais poemas constantes no bloco Nordesterro, e no poema longo que se desdobra em outros, Guia prático da cidade do Recife, exerceram também o papel de afastar certa noção de purismo requerida para Carlos Pena Filho por companheiros de geração.

A mudança de orientação diccional nos poemas de Nordesterro revela uma faceta poética social e radicalmente oposta ao maneirismo formalista neoparnasiano apreendido da geração de 1945, façanha até então inimaginável num poeta que se diferenciava pela realização lírica de sua poesia. E isso vai culminar numa poética urbana de rara eficácia, representada pelo Guia prático, poema com feitio de inventário da cidade solitária em meio a seus transeuntes, prédios e rios. Assumindo uma atitude desse tipo, rompia de modo corajoso as amarras políticas de seu próprio meio e convivência, de cunho liberal. Essa nova prática demonstrava que o poeta não estava impregnado apenas de sonetos líricos e subjetivistas, mas poderia ser capaz de trabalhar conteúdos de maior impureza, como os referentes ao sociopolítico, ao rural e ao urbano escritos em linguagem contundente e desabrida.

Carlos Pena destacou-se como um dos poetas mais vigorosos da década de 1950. Devido ao seu temperamento boêmio, as suas vivências pessoais seriam sublinhadas por uma vida literária e intelectual movimentada e enriquecida de muitas solicitações e atividades.

Não se teve notícia até agora de nenhum evento ou iniciativa de âmbito público ou privado para lembrar a passagem dos 50 anos da morte de Carlos Pena Filho, em 1º de julho deste ano. Da parte de entidades culturais e oficiais, o silêncio em torno do poeta que tanto cantou e amou o Recife é frio e majestático, restando o sentimento individual disperso dos que o leem e continuam a admirar a sua poesia. Não é de nenhum modo justo nem animador esse esquecimento a que vem sendo submetido em sua própria cidade, quando se pensa que ele tem a maioria de seus leitores distribuídos por aqui. Contudo, não é possível negar que existem também grandes leitores da poesia do Livro geral espalhados por todo o País, certamente porque a leitura de seus versos não suprime a fruição e o prazer provocados por uma conformação altamente fluente e musical que os reveste.

Todo o desempenho lírico e estético do poeta que viveu e escreveu como um dos mais autênticos e entusiasmados recifenses, realiza-se numa obra que, se não extensa numericamente, mostra-se competentemente elaborada e trabalhada no pequeno circuito de uma década e meia. Impiedoso e irônico com o lado superficial e obscuro da cidade, repudiava seus surtos conformistas e a banalização conservadora e padronizada de comportamentos e relações. Sem excluir a força dessa indignação, pode-se partilhar ainda da descoberta lúdica de um mundo solar e marinho, luminoso e desértico ao mesmo tempo, que permeia frações e núcleos significantes de sua poesia. Ao largo de seus versos e estrofes de construção impecável, notadamente naqueles poemas em que se sente a presença do poeta pleno e maduro, confirma-se o percurso exigente de uma poesia que sempre buscou, da adolescência à morte prematura, as melhores soluções e definições acompanhadas dos mais convincentes resultados estéticos.
(In: Jornal do Commercio, Opinião, Recife, 19 de junho de 2010.)