sábado, 16 de outubro de 2010

CONVITE PARA O LANÇAMENTO DE PERNAMBUCO EM ANTOLOGIAS



Notas Cotidianas e Literárias XXXV


LEMBRANDO ALBERTO DA CUNHA MELO

O desempenho poético de Alberto da Cunha Melo realizou-se em cerca de cinco décadas. Nascido em 1942, sua produção em poesia, para o tempo de vida que pôde viver e dispor, foi respeitável. De temperamento pacífico, no entanto cético e questionador, o poeta não aceitava as injustiças e os tremendos desníveis sociais que caracterizavam o país e a região nordestina. A influência recebida dos eventos negativos em política no cotidiano serviam como estopim para a deflagração de seu canto indignado. Talvez pela abertura à poesia dos novos, pela grande capacidade de fazer amigos, e pelo fato de não ter renegado os companheiros da Geração 65, a recepção de sua poesia gozava de certa unanimidade no Recife. E que, nos últimos anos, tal prestígio ultrapassou as fronteiras pernambucanas, com prêmios, homenagens e publicações que o vincularam a um reconhecimento nacional. Contribui para isso a coluna "Marco Zero", que manteve desde os primeiros números da revista Continente Multicultural, até a sua morte em outubro de 2007, cujos textos foram publicados postumamente em livro pela Companhia Editora de Pernambuco, em 2009.

Alternando com ciclos de versos livres, alguns livros seus, entre eles os três iniciais, Círculo cósmico, Oração pelo poema e Publicação do corpo, foram construídos em versos octossilábicos. A perquirição rilkeana aparece em poemas que indagam sobre uma transcendência que se quer próxima e acessível ao poeta e ao Outro. A partir de versos solenes e meditativos, investe sobre o cotidiano em linguagem classicizante. Este ciclo que já trazia embrionária, contudo diferenciada e ainda inédita, a maneira desabrida de se expressar, encerra-se com a publicação de um novo livro, Noticiário, em 1979, que os mais organicistas diriam visceral. O verso sem demasiadas amarras, sem os freios da métrica principalmente, pode agora derrapar e se esbaldar na palavra direta que não exclui o palavrão, as situações vexatórias e ridículas, os efeitos da dominação que paralisava todo um país e, por extensão, o continente latino-americano. Mas o ritmo não dispensava a concepção rigorosa de se versificar, mesmo que a matéria com que ele trabalhasse fosse impura, como a própria vida.

Em 1983, Cunha Melo publicou, na antologia Soma dos sumos, parte da poesia que vinha fazendo desde 1960. O livro magro não correspondia, de modo algum, a uma obra que poderia ter sido mais bem destacada, apesar de sair no Rio de Janeiro, pela José Olympio. Isto vai ser compensado logo depois com Poemas anteriores pela local Bagaço, em 1989. Aqui, comparecem em octossílabos, meia centena de poemas inéditos e os três livros iniciais já referidos. A força e a dificuldade empregadas na consecução do metro que cultuou com avidez e maestria, o octossílabo, retorna em trabalhos da fase final. É o caso, por exemplo, de Yacala (1999), longo poema que intenta recuperar, para um modelo de homem universal, a solidariedade, a harmonia e a unidade perdidas. Neste texto monotemático, sem esquecer a ramificação de assuntos que o caracteriza, Alberto da Cunha Melo testou seus próprios limites. E conseguiu alcançar, de modo eficaz e competente, um desempenho que o coloca ombro a ombro com os maiores poetas brasileiros das últimas décadas.

Diario de Pernambuco, 12 de outubro de 2010

O POETA

Por muito tempo andou dividido
entre o que restava de vida na noite
e os ritos selvagens de um amor impulsivo.

No entanto tudo aquilo um dia acabou.
Percebeu depois que como chegaram sumiram
a dor e o pranto, o sofrimento e o desamor.

De imediato outras cores e frutos vingaram.
Novo canto soterrou os seus versos primeiros.
A solidão desarmou do seu ser suas unhas e garras.

Assumiu seu papel que sabia inteiro.
Regressou filho e hóspede à antiga cidade.
Recebeu pelas ruas mil abraços festeiros.

Buscou rio e campo nos confins da estrada
a pensar como e quanto se consumiu no amor.
A natureza abrandou sua memória sem calma.

Pois aquele amor impossível finalmente passou.

O AUTO-ENGANO DO POETA

No livro Auto-engano, de Eduardo Giannetti (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), no Cap. 1, p. 55, a citação abaixo refere-se ao auto-engano do poeta em relação a si mesmo, tomando como base o trabalho poético de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. O trecho poderia, com poucas exceções, ser aplicado à maioria dos poetas, aos poetas que não alcançaram nenhuma espécie de glória em vida, mas que persistiram na sua tarefa despojada e sem grandes esperanças de semear a poesia possível. Ou, no limite do possível e de suas forças, escrevê-la apenas. Vale conferir a relação estabelecida por Giannetti, entre a persistência e o auto-engano:
“Tudo, em suma, conspira para que o poeta entregue os pontos, para que reveja sóbria e friamente a sua existência como um desperdício imperdoável – algo para ser renegado e jogado fora como um punhado de versos imprestáveis. E, no entanto, ele não cede. Ele dobra a aposta e se agarra ao infinitesimal de uma probabilidade remota, como a um galho débil no precipício de sua vida. Ele faz do absurdo de sua própria ambição inexplicável a matéria-prima da criação poética. Ele se mantém fiel à sua paixão juvenil com a tenacidade de uma aranha e o fervor de um recém-convertido. Com o passar dos anos, ele constrói anônimo a sua obra, pedra sobre pedra, duvidando e recomeçando sempre, sem aplausos, sem prêmios, sem assento em academia. Auto-engano?”