sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias III

ANDRÔMEDA LENDÁRIA E REAL

Algo ainda deve restar da menina-adolescente que pedalava alegremente pelas ruas da cidade sertaneja. A bicicleta, o céu e o seu sorriso intensamente azuis. Os seus cabelos transformados em belos e misteriosos fios cósmicos naquela manhã que ficou para sempre demarcada no tempo. Somente o adolescente-menino absorveu aquela energia que se desprendia da sua presença que ofuscava tudo ao redor.
Ambos poderiam encontrar-se e ser encontrados no colégio diário à tarde, mas jamais seriam os mesmos. A iniciação amorosa que se ensejava na ambiência provinciana provocaria descontentamentos e estragos e irremediáveis. O menino, que na sua modéstia pouco se importava com as ambições desmedidas e terrenas de seus pares, desejava-a, contudo, somente para si, numa exclusividade que não permitia interferências.
Algo ainda deve existir daquele corpo em plena maturação de pele, pelos, poros, unhas, veias e vértebras. Feito a fruição corporal que externava os gestos de extrema naturalidade e expulsava o artificialismo que não se exprimisse em palavras de incontida comoção. A preparação estética da beleza que começava na menina e chegou a seu termo tempos depois na mulher adulta.
Corpo em movimento e desejo, prazer do encontro orgástico. Comunhão selvagem e mutação radical da sensualidade pela entrega. Encontro que jamais teve continuidade na sucessão dos acontecimentos vitais. O Ser sem a Outridade, perplexo nos meandros da solidão e nos confins da ausência. O adolescente-menino que se relacionou prodigiosamente com outras mulheres, desfrutando de casos, paixões e amores obscuros e múltiplos.
Algo ainda deve ser redimido no menino que mudou de atividades como quem mudava de roupa. O menino estudante, bolsista, estagiário, professor, militante, assessor, funcionário, revisor, crítico, ensaísta, consultor e julgador de obras aleatórias. E que, ao fim e ao cabo, era apenas poeta. A menina que esteve sempre no topo das atividades brancas, plásticas, socialites, estereotipadas e casamenteiras. A menina-cinderela privilegiada por uma inigualável exuberância de formas dadas pela Natureza.
O menino que se metamorfoseou no poeta atento a um mundo hostil e traiçoeiro. Mundo que não via o seu esmero na arte da escrita poética, o seu zelo e a sua necessidade de produzir e semear poesia. E que veio propiciando seu possível legado a esse mesmo mundo, com sua contribuição individual única e irrepetível. Que não se deixou engessar pelas fronteiras e entraves cotidianos, rendendo-se à liberação do corpo em viagem noturna e onírica.
Algo ainda deve estar vivo e latente na imagem real matutina de mais de três décadas passadas. A esfinge lendária manifesta em corpo e presença, no sorriso azulado que não descartava o encanto fácil, a ironia quebradiça e a sedução enganosa para os incautos. Nada disso pode ter estagnado numa cronologia cruel e devastadora dos dias e das noites escuras e impenetráveis do tempo.


PARACHOQUES

É melhor mudar de posição quando o desconforto
na cama reflete a inquietação da alma e do corpo.


PRIMEIRO POEMA DA PERDA

O que já perdemos
leva-o
o vento,
e o que ansiamos
ainda
traz-nos
o pensamento;
o que já dissemos
pelos dias
esparsos,
nos confins
do espaço
e nesse hoje, no agora
soltemo-lo
às cinzas
do tempo,
neste ermo das horas.


SEGUNDO POEMA DA PERDA

Por qualquer tarde arisca
feito o amor já perdido
Tu fazes da tua vida
o fel, o Nada, o Não, a Notícia


TERCEIRO POEMA DA PERDA

Perdi por meu muito esperar.

Perdi por este meu relutar
e ao fim nada tive a ganhar:

Minhas primícias perdidas,
estas nutridas querelas,
minhas tão íntimas sequelas
e tudo o mais que se vê no passar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário