quarta-feira, 7 de abril de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XX



O LIRISMO TELÚRICO DE ANTÔNIO CAMPOS


Portal de sonhos (Escrituras, São Paulo; IMC, Recife, 2008) é um livro em formato de álbum, fazendo jus ao nome e associando, de modo flagrante, poesia e imagem, poema e fotografia. Neste trabalho, com imagens de Gustavo Maia e designer de Patrícia Lima, uma coisa jamais está dissociada da outra: o sentimento telúrico que aflora, aparece retratado numa imagem que lhe dá substância lírica e reforço vital, criando uma espécie de dependência parcial entre o preto-e-branco que reflete tanto as nuances da paisagem como os tipos e o branco da página.

Os poemas podem, no entanto, continuar existindo sem as fotografias, e o contrário também é verdadeiro. Na escrita ou na oralidade, textos produzem imagens de configuração mental, e não expressamente visuais. O visual chega pela nomeação de objetos, pela comparação entre eles, pela metáfora certeira e pela força que se oculta nas palavras em momentos anteriores à leitura ou à recitação. O poema passa, então, a exprimir em vocábulos e versos uma situação, um instantâneo, um acontecimento, na mesma proporção em que revela o sentimento, a emoção, a alegria ou o tédio de viver.

Este livro-álbum tem como abertura o texto “A outra voz de Antônio Campos”, de Lucila Nogueira, que elucida o percurso temático desenvolvido pelo autor nas duas partes que compõem o livro, cada uma com dez poemas. Aliás, a “enunciação lírica” de que fala Lucila, ocorre nos dois blocos, sendo que, conforme ainda deixa claro, na segunda parte vem como prolongamento e o autor se aproxima bem mais do seu “objeto estético”. Ela classifica a primeira como “verdadeiras telas do Nordeste”, expressionismo que se enseja também na parte 2. Contudo, alguns poemas ultrapassam os assuntos e sentidos detectados. Tudo isso indica que tais poemas foram trabalhados cuidadosamente, ampliando-se e ramificando-se em outras variantes e instâncias temáticas (é o caso, por exemplo, do poema inicial do livro, “A luta”, que terá uma breve análise desenvolvida mais adiante).

Se não houvesse essa subdivisão, creio que não haveria prejuízo do ponto de vista estrutural, pois os poemas demonstram ter sido construídos com a mesma disposição interna, vocabulário, sintaxe e corpo metafórico utilizados em todo o livro pelo autor. A disposição interna do poeta se refaz na luta, na espera, na solidão, nos ritos da coragem e do medo. Há um vocabulário convergente pela coincidência de palavras e metáforas utilizadas e repetidas em várias passagens e trechos de poemas, no rio feito “punhal castanho”, no próprio rio castanho, no canário amarelo ou dourado, na casa caiada de branco e no céu invariavelmente azul.

Em apreciação crítica sobre Portal de sonhos, o poeta Vital Corrêa de Araújo destacou, no texto “A poesia como destino do humano”, a presença, em quase todos os poemas, do “tema da duração temporal e humana e intemporal natural”, através da correlação temática de “espera, manhã, idade, safra, paixão, duração etc.” Para exemplificar, em três poemas, a manhã aparece explicitamente. No que é titulado “A manhã”, tudo retorna ao tempo da infância, aos guizos, bichos, contornos solares e fenômenos contrastantes da criação, como o silêncio que contém ruídos e os ruídos que crescem com a claridade : “A manhã cheia de guizos/ crescia com a claridade./ Os bichos se estendiam ao sol/ para que mãos de luz os acariciassem./ O silêncio fazia parte da paisagem, era alvo,/ e os ruídos saíam das suas entranhas/ como bruscas parições que do seu ventre saltassem./ Tudo era o mesmo, mas sempre novo,/ um repetir diversamente, a mesma criança.”

Em “Manhã recifense”, mesclam-se os caminhos abertos pelo Capibaribe para o Agreste e o Sertão, partindo do litoral: “Neste litoral, recifense e nordestino,/ o mar se faz tão verde, claro e cristalino,/ que parece ser um espelho gigantesco que amplia/ a visão do canavial e do seu trágico destino,/ que prende, encarcera e às vezes mata,/ na beleza das suas flechas, pendões e bandeiras,/ como se as canas fossem imensos espinhos/ crucificando o trabalho de uma vida inteira.” Já no breve “Manhã de domingo”, é possível encontrar, em meio ao caos urbano, as manifestações naturais de flor e fruto, a ocorrência simples da manhã tropical e desvelada: “Manhã cheirando/ a fruto maduro./ Nascendo como um/ girassol se abrindo./ Manhã do Recife, manhã de domingo.”

Talvez a maior influência de Antônio seja o próprio pai, Maximiano Campos, com tudo o que absorveu dele, mais da sua prosa que da poesia. Trata-se de uma influência de aceitação leve e serena, sem angústias freudianas, que se reflete na circunstância particular de uma ausência dolorosa, tida agora como definitiva, contudo sem jamais cair nas malhas do esquecimento. Mas, tal diálogo interpoético pode ser estendido a um Carlos Pena Filho (da “distância entre o tudo e o nada”, como no poema “A luta”), a um Mauro Mota (da “humana condição”, como no poema “Sina sorte”), ou a um João Cabral (do rio lâmina e “punhal castanho”, como no poema “A cidade”).

A sintaxe tradicional é aqui veiculada e assumida, com o léxico obedecendo às regras seculares de gramática e de versificação na escritura de vocábulos, na linearidade de versos, nas estruturas de estrofes. Mesmo quando escreve em versos livres, há sempre uma matemática da contenção e da preservação de linguagem e língua.

O impacto da poesia de Antônio Campos verifica-se nas insolvências do sonho e nas asperezas da realidade. “A luta” que se reflete no poema de mesmo nome é uma de suas bandeiras e obsessões mais fortes, dando sentido, apesar da sua inclinação solitária, ao movimento da vida cotidiana: “Amigos, esta luta é um castigo,/ não quis nada além da solidão/ que mora e vive em paz comigo.// Em duas lutas estou envolvido,/ e a mais difícil e árdua é mesmo comigo,/ aquela sem escolta e guarda, sozinho prossigo.”

Ainda que a luta se refaça no gosto passageiro e precário das conquistas, conterá, eventualmente, conflitos, desentendimentos, revides, desagravos ou frustrações, que o poeta, atento, procurará evitar: “Amigos, nada de riso amargo,/ palavras vãs, revides e desagravos,/ só a paz serve, e isso não trago.// Não a trouxe, porque a perdi./ Na chama de inquietos medos e sonhos,/ o que de melhor havia em mim, consumi.”

Feito um estranho paradoxo, essa luta expõe o medo e a coragem, pois lutar é sentir o milagre de permanecer vivo, desafiar distâncias e impossibilidades. É sentir o sabor do imprevisível, de onde é gerada a apreensão e o espanto se mostra ante o desconhecido, sem “ressentimentos e mágoas”: “Amigos, sendo guerreiro derrotado/ em todas as batalhas, guerras e lutas,/ não retiro a armadura e o orgulho// de ser apenas alguém que,/ sem ressentimento e mágoas/ sabe a distância entre o tudo e o nada.”

Os atos rotineiros do cotidiano na perspectiva da paz exigem ânimo, disponibilidade e inteireza do corpo para a prática e a consecução da luta. Uma dor corporal intensa, sentida num momento específico, ou mesmo repetida, pode ser motivo racional para se escrever poesia, mas não naquele momento em que alguém a vivencia. Talvez num momento futuro ela venha a se manifestar e transformar-se na forma da poesia, provando o gosto da vitória do poeta que a ultrapassou. A luta é a capacidade de intentar vencer a dor e o sofrimento, de buscar a vitória na derrota, de saber do equilíbrio e da tensão que personificam “a distância entre o tudo e o nada”.

Antônio Campos soube guardar muito bem um segredo, o segredo de ser poeta. É possível que só alguns poucos sabiam da existência do Antônio poeta, além dele mesmo. Conhecia-se mais o Antônio prosador de Território da palavra, livro que traz em combinação eclética crônicas, cartas, artigos. Mas agora o poeta Antônio Campos faz parte definitivamente desse grande coro de poetas que eleva Pernambuco a um estado largo e consequente na contribuição à poesia brasileira de todas as épocas.



POEMAS DA SÉRIE INÉDITA A OUTRA VOLTA DO SOL


CANÇÃO PARA UM MESMO REGRESSO

À memória de João Cabral de Melo Neto


Porque não rejeitou o Nordeste

regressa sempre ao mesmo

Sertão antigo e bravio.


Não teve a leviana vaidade

para afogar noutras ondas

os traços agrestes da terra,


os laços mais fortes que o visgo

que puxa o pássaro à gaiola

e prende os peixes no rio.


Não teve a necessária vontade

de se fazer noutros longes

da mesma cidade e caatinga:


A calma firme agrestina

de poeta sem alarde ou viola

deu impulso a seus passos na vida.

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