terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Notas Marginais VIII

NOTAS MARGINAIS: EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

A expressão “Notas Marginais” representa, na configuração deste blog experimental, o conjunto de poemas, resenhas e narrativas curtas que revelam, por si sós, seu próprio impacto e sua possibilidade de escolha ao autor e organizador. Os textos vão surgindo ao calor da hora ou nos eventos da memória, juntando-se e afastando-se até que, em momento não programado antecipadamente, chegam ao termo de publicação. Aparecem, além dos inéditos, textos já editados em livro ou jornal.
Intenta-se manter o necessário distanciamento do significado mais vulgarizado para “marginal”, entre os 13 que o filólogo Houaiss alinha em seu dicionário: “que vive à margem do meio social em que deveria estar integrado, desconsiderando os costumes, valores, leis e normas predominantes nesse meio”. E aproximação maior com “anotações” (que se fez ou se inseriu na margem de manuscrito, livro etc.) e com a derivação de um sentido figurado (comentário, observação, esclarecimento feito à margem de qualquer assunto). Eça de Queiroz publicou em 1866, como folhetim, na Gazeta de Portugal, um longo texto lírico, de viés romântico, influenciado por Heine, com este título. O “Notas Marginais” eciano pode ser encontrado em seu livro Prosas Bárbaras. Lima Barreto tem um volume de artigos e crônicas sobre livros e sobre o Rio de Janeiro intitulado Marginália, composto nos inícios do século 20.
O sentido de “nota” pode ser estendido à semantização da linguagem literária, ao significado intrínseco de texto escrito em prosa ou poesia, à residualidade do ensaio e da crônica e à consecução compacta e breve da visada crítica. “Marginal” refere-se, por sua vez, à idéia da publicação em si, pois é mais do que corrente, que quem escreve deseja ser lido. Como forma de romper e gerenciar o ineditismo e o anonimato, de impedir de algum modo as tentativas extemporâneas néscias, absurdas e espúrias de expurgo e sufocação da palavra, preenchendo óbvias lacunas e vazios deixados. E assim, como forma também de ignorar atitudes exclusivistas, tacanhas e excludentes típicas do tosco, simplório e desgastado provincianismo local, em nome de supostos e enganosos avanços editoriais. O relevo evidencia-se na necessidade de compartilhar e externar parcelas do conhecimento, da experiência e da leitura individual. E ainda, como meio de atestar a busca e o encontro de insights poéticos e ficcionais que guardam sua valoração artístico-literária, e que não foram devidamente veiculados, ou o foram insuficientemente pela palavra impressa.


PARACHOQUE DE CAMINHÃO

Quem quiser arranjar um inimigo vegetariano,
prometa a ele um peru de Natal de presente.


UM POEMA DE SOSÍGENES COSTA

Sosígenes Costa, poeta baiano, nasceu em Belmonte (1901) e morreu no Rio de Janeiro (1968). Sua poesia divide-se entre o neoparnasianismo de sonetos classicizantes e pavônicos e os poemas de métrica e ritmo livre que abordam temas negros, folclóricos e religiosos. Em 1978, José Paulo Paes organizou e apresentou a sua poética, tendo publicado também, um ano antes, um breve estudo da obra sob a denominação de Pavão, Parlenda, Paraíso. O poema “A Marcha do bumba-meu-boi” reflete a musicalidade inesquivável de versos percussivos, dançantes e característicos da cultura africana transplantada que enriquece o Brasil e de modo notável e acentuado, a Bahia:

Não toque o bombo, Zabumba,
no bumba-meu-boi.
O som do bombo rebumba
e espanta este boi.

Também não toque marimba
no bumba-meu-boi.
O sino quando rebimba,
me espanta este boi.

Zabumba, não toque este bombo
no bumba-meu-boi.
Zabumba, meu bamba, o ribombo
me espanta este boi..

Zabumba, não solte esta bomba
no pé de alecrim.
Sem esta cor de jambo,
o que será de mim?


RECIFE INTEMPORAL

Cada vez que leio sobre o Recife de outras épocas, mais me identifico à cidade. O século que demonstra um forte e grande apelo é o 19, que transita entre a perspectiva de um próximo e enviesado progresso e a decadência intranquila dos costumes e da política herdados da metrópole portuguesa. Castro Alves, Tobias Barreto, romantismo, poesia popular, positivismo, Escola do Recife, combate ao escravismo, conversas em tom conspiratório nos gabinetes inacessíveis, milícia ingenuamente truculenta e malandragem iniciante e incipiente.
Autores tidos como nostálgicos ou passadistas adquirem novas feições e conotações, pois não foram eles que definiram o tempo que lhes foi dado viver. E as suas vivências eram geralmente alimentadas pela sinceridade intelectual e pelo destemor da polêmica, com momentos destacados, ainda que em ambiente pífio e largamente conservador. É preciso procurar ler autores de época nas entrelinhas, para intentar descobrir o espírito crítico e premonitório de muitos desses criadores e pioneiros. As sinuosidades e relevos declinantes de seu estilo, na lentidão da pena, do mata-borrão e do papel de boa qualidade, podiam conter coisas somente descobertas tempos depois.


POEMA DA QUEDA PARCIAL

Ela feriu-se de encontro
ao rochedo, mas não
sucumbiu; assim,
dissolvidas no rímel
as lágrimas ponteiam seu rosto
e ao batom se confundem.

Agora consuma seu choro
que não nos entristece ou afeta,
pois foi estranheza e procura
e do escândalo à queda
provocação, ruptura
de quem com maldade recusa
a quem torturado a deseja.

Com sua fúria mais terna,
sempre tão viva e tão meiga,
sempre divina e faceira
ela absorve esse néctar
de fruição e incerteza
entre artifícios e gestos,
entre alegria e espera
sem a ninguém atender.

Ela desintegra o rochedo
a espantar tédio e medo.
A rebeldia é sua arma
quando destrói casca e calma.
E um novo tombo equivale
à dispersão de sua alma.

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