quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Notas Cotidianas e Literárias V

A POESIA LÍRICO-HERMÉTICA DE EDMIR DOMINGUES

A transitação literária do poeta Edmir Domingues representa um modelo discreto e arredio de isolamento do ambiente cultural tanto de sua cidade, o Recife, onde nasceu a 8 de junho de 1927, como de outros recantos do país. Esse distanciamento já vem, contudo, tornado-se uma atitude comum a muitos poetas, que se afastam da turbulência de rodas, movimentos e grupos literários por motivos os mais variados. Não é de se estranhar que um poeta de linhagem clássica, com inclinações para o lírico e o hermético, assim se decidisse a proceder, talvez com o intuito de melhor trabalhar e criar.
De outro modo, o recolhimento a uma suposta torre de marfim deriva de motivações às vezes indesejadas pelo poeta. O fechamento e a exclusividade de certos círculos e circuitos literários, a omissão e o silêncio da crítica são elementos definidores neste processo. Nenhum poeta pode avançar no reconhecimento de sua obra sem a devida apreciação de seus pares ou da crítica do tempo. Para o poeta que se aceita e se sente razoavelmente seguro de seu trabalho, são bem-vindos tanto a crítica como o elogio. Mas existem aqueles que reivindicam o elogio somente, e se mostram atingidos em suas veleidades pessoais por alguma observação crítica mais sincera e pertinente.
No caso de Edmir Domingues, nem uma coisa nem outra. O silêncio em torno de sua poesia é quase que absoluto. A ausência de fortuna crítica e a participação infrequente em antologias são fenômenos que desmerecem tais esboços críticos e historiográficos, tanto com relação ao sistema literário brasileiro, como no relativo à intelectualidade local. Na tentativa de minimizar um pouco este descaso, ele mesmo dedicou-se a analisar e tornar mais clara a compreensão de alguns poemas seus. Do lado das exceções, na antologia Presença poética do Recife, organizada por Edilberto Coutinho, pode ser encontrado um dos poemas mais conhecidos de Domingues, “Cidade submersa”. José Paulo Cavalcanti Filho contribuiu também com textos para o não-esquecimento total do poeta, no Jornal do Commercio, inclusive em 2001 fazendo uma homenagem póstuma na qual testemunhava sobre os pressentimentos de morte do poeta: “Sempre que encontrava um amigo, Edmir se despedia como se soubesse que nunca voltaria a vê-lo, e aproveitava para recriminar seu insensato coração – que, segundo ele, não aguentaria muito tempo mais”.
Da geração de Edmir Domingues fazem parte poetas como Carlos Pena Filho, José Laurênio de Melo e Ariano Suassuna. José Laurênio chegou a publicar o livro de poemas Palhano (1950), e há pouco tempo foi contemplado com uma coletânea de poemas publicada postumamente. Nos últimos tempos de vida dedicava-se com afinco à tradução. Suassuna editou em 1999 o livro Poemas, sendo desnecessário falar do sucesso alcançado por ele na dramaturgia e no romance. Ariano sempre procurou inserir nos seus livros e publicar por outros meios, de modo paulatino porém persistente, a poesia que vem escrevendo desde a década de 1940.
Numa premonição que já tivera Carlos Pena, ao lançar o Livro geral em 1959, pouco antes de sua morte, o poeta de “Cidade submersa” também teve o cuidado, pouco antes de morrer em 1 de abril de 2001, de publicar o mais significativo de sua obra. O volume Universo fechado ou O construtor de catedrais (1996), traz uma reunião dos livros anteriormente publicados, além de uma série de poemas inéditos intitulada Outros poemas de várias idades. Aliás, para uma nova publicação, podem ser sugeridas modificações e acréscimos como um índice completo e sem falhas, a cronologia sistemática do poeta e o que porventura ficou de inédito com a família ou amigos. Conhecendo-se que são raros os poetas brasileiros que encontram uma Casa editora que os abrigue e publique sistematicamente, o que teria pelo menos o mérito de estimular a produção individual do poeta e a sua divulgação, com Edmir Domingues não foi diferente. Dividiu-se em algumas editoras do Recife e do Rio de Janeiro. Na ordem de aparição dos livros, são elas, entre extintas e em atividade, Editorial Sagitário, José Olympio, Cepe, Tradição Cultural, Tempo Brasileiro e Edições Bagaço.
O livro de estreia, A rua do vento norte (1952), constitui-se apenas de sonetos, sendo o poeta um mestre nessa forma poética fixa e secular, tão combatida quanto ainda hoje praticada. Apesar da utilização de decassílabos, tais sonetos não são obrigatoriamente rimados, havendo entre eles sonetos brancos com a visibilidade das rimas toantes ou caracterizados pela ausência completa de rimas. No “Soneto Nº I” já se verifica esta ocorrência: “E de espaço e de tempo enfim libertos/ seremos quase pássaros no voo/ inconscientemente sexo e vida/ burlados preconceitos e limite.// Que a verdade foi vinho e foi desmaio/ entre a noite de fumo e de agonia,/ sempre antecipação porque sabíamos/composta em nosso sangue a madrugada.// Sejamos ébrios quando o mundo acabe,/ e bêbedos nos barcos estejamos/ de tímidos e leves quase pássaros.// Que os anjos no verão rindo e cantando/ e nós não voltaremos nem que seja/ para enterrar os corpos logo podres”.
Mais à frente, em Corcel de espuma (1960), os sonetos intercalam-se a poemas de escansão e estrofes variadas. Demonstrando ainda um forte apelo classicizante, foram construídos no bojo de temáticas definidas antecipadamente pelo autor, presentes na maioria dos próprios títulos. Como anunciado no soneto inicial, “esses que são de mim corcéis de espuma/ de quem só sabe azul no contemplá-los”, a tônica a ser desenvolvida envolverá uma imagética fragmentada no voo impossível de “ventos abatidos”, na inútil contemplação de fabulosos céus e no movimento desarrazoado de “mares de procura e desconforto”.
A partir de Cidade submersa e outros poemas (1972 e 1973), há uma frequente tentativa dele em investir em outros metros, e em livrar-se, ao menos temporariamente, das formas fixas, buscando dar maior liberdade à criação. Mas, da leitura geral dos poemas, verifica-se que a sua habilidade poética resolve-se de modo mais satisfatório nos sonetos do que nos poemas de configuração livre, que exigem de um poeta uma grande dosagem de invenção e despojamento.
Contendo três partes, O domador de palavras (1987), mostra a iniciação do autor nas sextinas, entre as quais se destaca a “Sextina da vida breve”. Aqui ele empreende a indagação metafísica da vida e da morte, além de questionar as reais possibilidades e a eficácia da filosofia e da ciência ante a perplexidade da civilização e o desamparo irremediável dos homens: “O que vida será? O que será morte?/ Que haverá que eu não saiba muito em breve?/ A ciência dos homens, por mais lida,/ não decifrou sentidos nesta vida./ Toda a filosofia que se leve/ do mundo vão, nada terá de forte”. Os vocábulos finais de cada verso, palavras-chave da sextina, irão repetir-se nas demais estrofes e assumir também outras variações semânticas.
A opção profissional pelo Direito pouco aparece no texto domingueano. O que significa, de certo modo, uma separação nítida entre a prosaica vida cotidiana e o prazer e a angústia solitária de cometer versos. No entanto, tal separação não se perfaz em ruptura radical, como se comprova nestes versos de “Canção do que fala”, da coletânea Outros poemas de várias idades: “Não importa a Sentença./ Feita do inescrutável,/ imune a todo oráculo.// Ela será, apenas/ a fala da Fortuna”.
O exercício constante e recorrente de formas como o soneto e a sextina, tidas como de difícil consecução em poesia – quando não em elaboração gratuita e espúria –, tende a elevar o poeta à condição do criador que mais permanece. Faz-se importante lembrar que o poeta Geraldino Brasil escreveu, sob influência de Edmir Domingues, algumas sextinas que mereceriam figurar em qualquer antologia que se preze. Mas estes são tempos em que não se sabe quais os critérios que os antologistas estão adotando na escolha de poetas para a feitura de suas coletâneas, que primam sobretudo pela pressa, pelo registro irrefletido ou pelo oportunismo editorial mais deslavado.
No percurso da poesia domingueana, denota-se uma alta influência de Manuel Bandeira, tanto em certas injunções temáticas como no desempenho formal de numerosos poemas, e ainda em mais de uma dedicatória e referência direta em versos ao autor de Libertinagem. O que não permite conferir a Edmir a estatura de epígono apenas, mas o leva a pertencer a essa confraria de poetas líricos e cultores da melhor tradição da poesia ocidental.
Emir Domingues situa-se dentro de uma vertente significativa e cada vez mais rara de poetas que revelam um especial cuidado no trabalho com a forma poética. Pode-se afirmar que na sua poesia o sentido da forma é definidor e inseparável de uma concepção poética que envolve também um tratamento conscientemente radical e eficaz na demarcação de seu estilo e no arranjo fonético de seus versos e poemas. O lirismo daí resultante não se perfaz unilateralmente na repetição demasiado previsível e simplória de determinados modelos e nem se sustenta numa pretensão falseada e maneirosa de intentar ser novo.


UM POEMA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Um dos textos em que João Cabral melhor objetiva e exerce aquela “atenção visual” que programou para si mesmo, é certamente o poema “Pregão turístico do Recife”, do livro Paisagens com figuras, de 1956. Esse poema pressupõe uma dicção afirmativa, referendada pelos verbos ser e poder, que lhe dão sustentáculo. Tomando-se parâmetros lógicos, estaria aqui afastada a categoria do possível. E quanto à categoria do não, ocorrente ao longo de grande parte da poesia de Cabral, funciona como fechamento do poema, fazendo a sua aparição nos dois últimos versos, que se delineiam encadeados e inseparáveis, e além disso, diretamente dependentes dos dois anteriores. O desfecho do poema se dá com uma lição expressiva de contundência e denúncia da morte/vida que apodrece os habitantes das margens do rio. É nesse instante que o poeta deixa de lado a dicção mais centrada nos elementos materiais da paisagem para ir ao encontro do “sujeito motivador” do poema, o homem nordestino. Dedicado ao escritor mineiro Otto Lara Resende, confira-se o poema na sua totalidade:

Aqui o mar é uma montanha
regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos do sul.

Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.

Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura.

E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua marcha quase nula,

e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,

podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.


PARACHOQUES

Para manter o espírito leve, calmo e altivo
é preciso domar o ritual das urgências do dia.


COTIDIANAS

Inacreditável a quantidade de crimes de estupro de que sem notícia todos os dias. Tais crimes sempre existiram, mas permaneciam em surdina, e suas estatísticas não eram tão assustadoras. Não só na cidade grande, no interior também, em especial nas zonas rurais e praieiras. Em certos casos, a vingança é certa, independentemente da condição social e financeira de quem foi estuprado. Se paga o estupro com a morte por pauladas, facadas, tiros ou esquartejamento. Através do linchamento coletivo, que é mais raro, ou de retaliação particular. Há casos que primam pela crueldade, como deixar o órgão do estuprador em sua própria boca ou enfiada uma estaca no seu ânus. Pior ainda, se ele não tiver como resistir ao assédio de outros presos, se trancafiado num presídio. Poucos escapam às sevícias. O estupro atinge principalmente crianças e adolescentes, pelo pouco que guardam de defesa. Mas atinge também gente jovem, madura e idosa, além de meninos. Estupradores podem assumir disfarçadamente a feição desnaturada e doentia de pais, tios, primos, irmãos, padrastos, avós, vizinhos, conhecidos e desconhecidos.


RELEITURAS

Rabo de foguete (Os anos de exílio) – Ferreira Gullar. Esta seção inicia-se com a revisitação de um livro que revelou, no final dos anos 1990, a experiência da clandestinidade no Rio de Janeiro e o exílio vividos por Gullar na década de 1970, por suas ligações ao PCB. A peregrinação do poeta se estende por várias capitais do mundo como Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires. Faz um curso de Marxismo na Rússia e assiste à deposição de Allende no Chile. Desespera-se com a doença recorrente de um filho, vive um amor forte e depara-se com paixões fugazes, alegra-se na companhia solidária de outros exilados, procura simplesmente viver e resistir. Encontra espaço para relatar situações engraçadas, ainda que no ambiente austero das diretrizes partidárias. De espírito questionador, Gullar mostra como jamais aceita verdades prontas e embaladas, causando às vezes pequenos e passageiros constrangimentos para os que estavam sendo treinados para a luta revolucionária em Moscou. Sabe-se, ao fim, que embora Gullar não estivesse imune às perseguições, foi confundido num processo judicial com um líder camponês maranhense homônimo seu. Sem este equívoco, não existiria o Poema sujo, nem ele teria vivenciado situações que somente o fizeram crescer como poeta e cumprir um ciclo de experiências necessárias à literatura memorialística e política de um período histórico de violência e repressão que ainda não foi devidamente encerrado, esclarecido e resolvido.


ESTAÇÃO DE METRÔ

Banal e antiga a canção
que se refaz no presente.

Final de linha,
suor e fila

Espera calor multidão
com nenhum sorriso nos dentes.

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