sábado, 27 de março de 2010

Notas Cotidianas e Literárias XIX

A REVOLUÇÃO DA BESTA FUBANA

Estreante com o conjunto de crônicas A Prisão de São Benedito e outras histórias (1982), o escritor Luiz Berto vai conseguir destacar-se como ficcionista já no segundo livro, O romance da Besta Fubana. Este romance é feito de sucessos supostamente acontecidos e de outros que realmente aconteceram, tendo como marco temporal o período agosto-dezembro de 1953, iniciando-se exatamente um ano antes da morte de Getúlio Vargas. A cidade de Palmares, na mata sul pernambucana, terra natal do romancista e de outros nomes consagrados como Hermilo Borba Filho e Ascenso Ferreira, fornece o cenário e a ambientação para a instauração de uma República Rebelada fictícia, onde acontecimentos inauditos terão lugar, com a realidade convivendo estreitamente com a fábula, a fantasia e o sonho.

Na obra de Luiz Berto, o único livro que não tem Palmares como locação e assunto principal é o romance histórico Memorial do mundo novo (2001), ao que tudo indica, cometido intencionalmente para as comemorações do descobrimento. Sustenta-se no personagem Diogo de Paiva, que aporta no Cabo de Santo Agostinho em 1500 na expedição de Vicente Iañez Pinzon, desligando-se desta para ficar no Brasil e atravessar todos os momentos históricos da colônia, em especial da Província de Pernambuco. Esse personagem funde-se à própria história brasileira, deslizando acintosa ou subterraneamente nos limites de descoberta e perigo que perfazem a construção do “mundo novo”, entre guerras e insurreições e, mais à frente, entre a monarquia e as repúblicas velha e nova, até ser assassinado em 2003.

O romance Nunca houve guerrilha em Palmares (1987) tem seus momentos mais fortes na preparação de uma visita do governador Miguel Arraes a Palmares, na pichação de toda a cidade por um grupo de boêmios e comunistas e na evolução, à época, da luta de classes na zona canavieira, contando com a presença e a atuação do líder comunista Gregório Bezerra, até a voga da repressão em 1964. Neste livro, o cego Anísio, que toca sanfona e canta baiões e xaxados em troca das esmolas que a mulher recolhe, que teme também pelo fim do governo Arraes e dos benefícios garantidos aos camponeses, demonstra certas analogias de ofício com um dos cegos do Romance da Besta Fubana, Zé da Ferida, que forma com a família uma mini-empresa de mendicância, e quando a mulher Maria Banga enlouquece, ele passa a explorar a boa-fé de romeiros e crédulos de toda parte e sorte para ganhar dinheiro. Maria Banga se torna transparente e flutua acima do chão, e no décimo dia de loucura profetiza a vinda da Besta Fubana: “Ela vai chegar se abanando e dando o peito a mamar aos precisados. Mas, também, os despossuídos de piedade aos pobres vão conhecer a peia que arde por mais de dez anos. A merda vai dar dez tostões o dedal no oitão do mercado. Ela vai chegar alumiada e sombrejada, de uma vez só; e Palmares vai ter noite no pingo do meio-dia; noite de galinha subir nos poleiros”.

Ainda neste primeiro capítulo do Romance da Besta Fubana, são apresentados os personagens que irão ascender ao topo da trama, para depois desaparecerem em anonimato e desgraça. Serão os futuros membros da Junta Governativa da República Rebelada dos Palmares o cego Chico Folote, vendedor de raízes e garrafadas, que troca de mulher todo mês de setembro e fornica com duas sobrinhas e um sobrinho; o sapateiro comunista Joaquim, perseguido pela polícia política e sem penetração nas camadas médias e populares de Palmares; o poeta e astrólogo Telles Júnior, recluso em seu esoterismo e estranheza. Todos capitaneados e liderados pelo cantador de viola Natanael, também camelô e detentor de qualidades ímpares para a sobrevivência nos momentos mais dificultosos e a persuasão de quem porventura atravesse seu caminho. Sem esquecer a prostituta Amara Brotinho, escolhida na zona da Coréia pelo cantador para ser sua companheira na tremenda aventura de poder e fausto temporário que viverão.

A riqueza discursiva e, em alguns instantes, a prolixidade das falas iniciais de cada personagem principal são substituídas pela ação no segundo capítulo, que mostra todos os passos da Revolta. É flagrante a desorientação programática dos participantes, mas a junção de três passeatas durante a caminhada pela cidade, termina por arrebanhar o restante da população e até os animais: “Somente o propósito de alterar e subverter a rotina estabelecida guiava aquela gente. Até mesmo as lideranças se anularam e tiveram apenas que seguir as normas ditadas pelo imenso inconsciente coletivo da multidão. Uma vontade comum e indefinida unia as pessoas. Em determinado momento, o barulho dos animais sobrepujou o das pessoas, mas ninguém achou nada de anormal neste fato, e continuaram todos, gente e bichos na união mais perfeita, cada vez mais estreitada pelo enorme alarido”. Luiz Berto elege os mais frágeis e excluídos para se rebelarem: as putas, lideradas por Amaro Brotinho contra o delegado e os policiais que foram fechar a zona, derrotando-os em luta aberta; os pequenos comerciantes contra o fisco estadual, pelos impostos abusivos cobrados; e os romeiros contra a Igreja e seus representantes que teimavam em não reconhecer a santidade de Maria Banga. A Milícia da Besta, exército da República Rebelada, e a população palmarense vão enfrentar e derrotar, à maneira de um outro Arraial de Canudos, várias incursões e missões policiais e militares.

Este romance guarda algumas peculiaridades como a transitação, em seu corpus, de pessoas que realmente existiram ou ainda existem, em associação com personagens criados pela imaginação do autor e com aqueles em que o nome sofre modificações que ainda assim o tornam reconhecível, a exemplo de Ornaldo Timbu por Orlando Tejo. As falas e expressões populares são aproveitadas, muitas vezes, na sua origem remota e literal com seus palavrões e praguejamento, sua malícia e seus ditos sarcásticos. O imaginário popular é retemperado também por referências a festas religiosas e profanas, crendices e superstições, funções como cantorias de viola, pastoris e reisados, além de apresentações de bandas de pífanos e bandas municipais de música, entre outras manifestações.

A cobiça, a ganância e a luta interna pelo poder destroem o sonho da República Rebelada dos Palmares, o que nem o General-Presidente Natanael nem a Besta Fubana poderão impedir. Os Ministros desentendem-se incessantemente: o cego Chico Folote briga com Telles Júnior que briga com o sapateiro Joaquim, cada um pretendendo formar um país independente dentro do território da República. No capítulo final, o escritor segue dando notícias do que teria acontecido com os participantes da aventura, inclusive encerrando o livro com uma referência elogiosa à bibliotecária Jessiva Sabino, por ter guardado documentos relativos à revolta. No entanto, um trecho anterior, que mostra a partida definitiva da Besta, poderia muito bem encerrar o romance: “A Besta Fubana largou os Seus à própria sorte e bateu asas num vôo fantástico que provocou calafrios em todos que ouviram o barulho e presenciaram os clarões de fogo que cobriam os céus. Partia a Entidade para o espaço, desencantada com a desunião do seu povo. Castigava, com a Sua ausência, a desmesurada ambição dos condutores da Revolta. E, com Sua partida, apagava-se a chama que tanto brilhara. Acabava-se a incrível aventura. Exatos quatro meses durara aquela experiência da República Rebelada dos Palmares. O sonho diluía-se em meio à fumaça e à luz que a Grande Líder deixara no rastro do Seu vôo de volta para a imensidão do infinito. Mais uma vez o céu se iluminava ao bater das asas da Besta Fubana”.

Dentro da desordem estilística e vocabular parcial em que se removeu no Romance da Besta Fubana, Luiz Berto imprimiu ao que viu, ouviu e sentiu a necessária ordenação literária e estrutural, sem preocupar-se demasiado com possíveis classificações de gênero a partir das diversas concepções de realismo mágico, real maravilhoso ou realismo fantástico para a ficção em voga nas décadas de 1970 e 80, durante o “boom” latino-americano. Mostram-se como componentes expressionais de grande relevância na sua prosa o misticismo religioso e profano, o sexo despudorado, o relato de uma revolução política apenas imaginada e a sátira violenta aos poderes nascentes ou instituídos. Na condição de narrador onisciente e consciente do alcance do seu discurso, empresta dicção independente e diferenciada a cada um dos personagens do romance, gerando uma espécie de polifonia que tanto pode resultar da pesquisa de campo empreendida como da sua própria verve e espontaneidade criativa de ficcionista.

(In: Continente, “A revolução da Besta Fubana”, ano IV, nº 46, out. 2004; aqui, com pequenas alterações e obedecendo ao texto original do autor.)


POEMAS DA SÉRIE INÉDITA A OUTRA VOLTA DO SOL


O GUIA DE CEGO


No olhar firme e fundo

do comprido da fome

a sina que se estende

do menino ao homem


no destino de guia

ao humor inconstante

das tabicadas do cego

pelos estreitos caminhos


a circular pelas feiras

em fazendolas e casas

nos povoados e sítios

do Sertão brabo e da Mata


a pobre infância fendida

entre mil pragas de agora

na aspereza de uma vida

de sem família e memória.


Mas o guia menino

saciada sua fome

bota o olho comprido

no engraçado do dia


indiferente e alheio

a espalhar os boatos

imaginando intrigas

sem escolher suas vítimas


sem lhe importar o castigo

que certamente teria

nos puxavões de orelha

e chicotadas no lombo


em lamboradas de relho

desengonçado no tombo

que se refaz na afoiteza

de sua língua sem freios.

2 comentários:

  1. Excelente artigo...
    Amigo, vá a nosso blog e baixe gratuitamente nosso livro 50 PEQUENAS TRAIÇÕES, em PDF. Um abraço e bom final de semana!

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  2. Interessante o poema, a temática; notórias a influência de João Cabral e das vivências matutinterioranas.

    Saudações Poéticas,

    S. R. Tuppan.

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