quarta-feira, 23 de março de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXVI

O “GAUCHE” DAS MUITAS FACES


Em 1930, quando vivia ainda em Belo Horizonte, Carlos Drummond de Andrade lançou o seu livro de estreia, Alguma poesia, publicado às próprias expensas. O aparecimento deste primeiro trabalho do poeta de vinte e oito anos representou algo de grandioso, definidor e definitivo para a poesia brasileira, vindo juntar-se ao que já existia de exponencial na poesia de Manuel Bandeira e na lírica de Mário de Andrade. Além disso, a poética drummondiana passará a exercer, pelos próximos anos e mesmo nos nossos dias, uma notável e marcante influência sobre numerosos poetas, sem distinção excludente entre iniciantes ou experimentados.

Certas ressalvas foram feitas pela crítica da época, notadamente à vertente “piadística” constante no livro, derivada de um modernismo recente mas sem dúvida atuante, explicitada no curtíssimo e já bastante citado “Cota zero”: “Stop./ A vida parou/ ou foi o automóvel?”. Ou ainda, em um poema como “Caeté”, terceiro da série “Lanterna mágica”, caracterizado por uma dicção oswaldiana inconfundível, embora a estrutura formal o negue, pela aplicação de pontos e reticências infrequentes num Oswald de Andrade iconoclasta, inquieto e radical, inovador de formas e destruidor de mitos. Encontra-se presente também uma confluência sintática e diccional que lembra bandeira, como na ressonância da voz longínqua e distanciada “que sobe do morro”, no entanto demasiadamente humana e composta da mesma carne e estatura comum: “A igreja de costas para o trem./ Nuvens que são cabeças de santo./ Casas torcidas/ E a longa voz que sobe/ que sobe do morro/ que sobe...”.

Em “Outubro 1930”, subdividido alternadamente em poesia e prosa, esboça-se a sua visão problematizadora e “participante” dos acontecimentos nos anos intermediários às duas grandes guerras e nos dias históricos e expectantes de um levante tenentista sempre iminente e anunciado desde a segunda metade do século 19 e intensificado com a proclamação da República. E que fará também a crítica da política vigente, enquanto pulsar e renovar-se a sua voz de poeta, mesmo sob a condição um tanto contraditória de assessor de um ministro getulista, o mineiro Gustavo Capanema.

O tom abertamente polêmico de outros poemas, como o controvertido “No meio do caminho”, o mais famoso deles, chegou a gerar uma quantidade considerável de réplicas, achaques e críticas, tendo este material sido recolhido por Drummond em 1967 no volume Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema; “O sobrevivente” instigaria o poeta Murilo Mendes a escrever, em 1956, no final da “Advertência” constante na sua coletânea poesias (1925-1955), uma frase que é um verdadeiro e direto arremate a esse poema de Drummond, “Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo”. Neste rol, figura também o “Poema de sete faces”, que será referido mais adiante, em andamento e performance de comparação analítica com dois poemas do último livro do poeta, Farewell, publicado em 1996, nove anos após na sua morte.

Alguma poesia define, de modo certeiro e inequívoco, parte da orientação subsequente do fazer poético drummondiano. Poética que, ao ser inaugurada, se reinventará continuamente. E que se entremostrará concordante, de um lado, com a estruturação semântica e formal inicial, quando estas categorias do poético forem se alargando e elastecendo ao máximo de suas possibilidades. De outro lado, tal estruturação poderá também vir a contrair-se, e assim, em certos instantes, intentar renegar-se, no entanto ainda com o propósito interno da própria reinvenção, pelo abandono e eliminação do já escrito.

Em Brejo das almas, o segundo livro, datado de 1934, Ana em que mudou-se para o Rio de Janeiro, alguns poemas ainda serão escritos com o tom típico de um Drummond assumidamente provinciano, mas já ensaiando uma linguagem prenunciadora dos temas contemporâneos, universais e urbanos posteriores. Mais à frente, em Sentimento do mundo (1940), ele começará a mostrar verdadeiramente a sua faceta de universalidade e maior abrangência temática, incluindo aí uma safra de novos conteúdos, embora sem desvestir-se totalmente dos temas localistas iniciais. Tal fase de sua poesia vai desembocar em A rosa do povo (1945), livro que absorveu toda a radicalidade do gauche, do engajado e do militante comunista temporário, mas que continuaria alinhado à luta social do país daqueles tempos. Os poemas “cívicos” – no termo cunhado por José Guilherme Merquior –, extensivamente expressivos e dedicados à parcela da sociedade afastada da centralidade das decisões, e portanto refreada em seus impulsos e desejos mais legítimos, em suas carências e necessidades mais urgentes e características, serão uma prática constante nessa poesia, promovendo uma inegável e saudável abertura ao mundo de fora e dos homens.

Perfazendo aqui uma guinada arbitrária, entretanto sem muito distanciar-se dessas obras iniciais, Fazendeiro do ar é o livro de 1954, cujo título sui generis e insigne originou-se de um episódio curioso, mostrando outra das facetas do Drummond auto-irônico. Surgiu da reclamação e do protesto do poeta ao receber uma cobrança de impostos descabida, pela posse de uma fazenda deixada por seu pai, fato que o levou a escrever uma carta informando à fiscalização que não poderia pagar a quantia estabelecida, já que era apenas “um fazendeiro do ar”.

O livro contém um poema intitulado “Estrambote melancólico”, que põe a descoberto o fato de que, nos nossos dias, mesmo tendo-se em conta as turbulências da vida cotidiana, o sentimento melancólico permanece, talvez não com a intensidade romântica e subjetivista de antes, mas agora limitado pelas novas imposições de urgência, eficácia e competitividade. O poema revela um tratamento entre sério e irônico que o poeta confere a tema tão solene. Ele utiliza-se de uma forma fixa, o soneto, que aparece com um estrambote, neste caso, apenas um verso acrescido aos quatorze anteriores do poema. E, suprema ironia, ao escrever uma poesia altamente vinculada e comprometida com seu tempo, não esquivava-se também de praticar uma forma ancestral e de uso relativizado e delimitado pela competência intrínseca e pelo nível de exatidão rítmica de cada poeta.

Nos quatro primeiros versos, Drummond deixa entrever o estado melancólico a partir do qual se estratifica seu poema: “Tenho saudade de mim mesmo, sau-/ dade sob aparência de remorso, / de tanto que não fui, a sós, a esmo,/ e de minha alta ausência em meu redor.” São palavras definidoras deste quarteto, relacionadas a melancolia, saudade, remorso e ausência, ou ainda, expressões como “a sós’ e “a esmo”. O poema deflagra-se quando ele anuncia e faz a confissão de saudade que tem de si mesmo, embora esta seja uma espécie de saudade que adquire a feição incômoda de um remorso inesquivável e sem remédio. Saudade que traduz também as vivências pessoais e coletivas que ele talvez não teve, embotado pela solidão (como na expressão “a sós”) e pelos descaminhos do abandono (caso da expressão “a esmo”). Tudo isto reforçado por uma ausência que não é apenas a do mundo ao redor, mas a sua própria, que naquele instante paira acima das circunstâncias humanas.

A adjetivação “alta”, proposta para ausência, funciona em termos bastante positivos, numa recuperação dos três primeiros versos, sendo como é uma “alta ausência” dele enquanto poeta que recria o mundo e a linguagem. E ainda mais, apesar desta diferenciação, essa ausência não exclui o mundo de fora, quando ele tem notícia e interage com o que se passa ao seu redor.

A referência interna mais direta é o lugar onde está instalado – escritório, quarto ou sala – e onde pensa ou escreve. Espaço interior que tem o dom de facilitar a abstração de si mesmo e o mergulho constante no eu. E de outra parte, na condição de espaço privilegiado, pode vir a permitir também a sua reiterada reflexão do real,, a visão

Instantânea de uma realidade que o deixa perplexo, e o que é mais definidor ainda, a absorção do mundo externo através do pensamento, dos sentimentos e das emoções proporcionados pela poesia. A experiência individual e social – vivida ou imaginada – é apreendida neste momento único em que ele comete seus versos, arruma suas estrofes, constrói o seu poema e ultrapassa as fronteiras do próprio corpo.

Em artigo escrito para o Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo, na ocasião do lançamento de Farewell, o poeta Alcides Villaça, estudioso de Drummond, fez um registro importante: “a figura inaugural do ‘gauche’ culmina na de ‘O malvindo’”. Na trilha aberta pelos termos comparativos dessa afirmação, pode-se acrescer inicialmente que no “Poema de sete faces’ há a indicação de um estágio premonitório intuído pelo próprio poeta, que vai passar a emancipar-se através da condição requerida de “gauche”, Aliás, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna desenvolveu, no período de 1955 a 1969, sua tese de doutorado O gauche no tempo, sobre a ideia característica de “gauche” presente no “Poema de sete faces”, inclusive submetendo seu trabalho a um computador para, entre outras coisas, obter dados estatísticos e “quantificar o emprego do verbo” na poesia de Drummond.

O fato é que se sobrepõem no “gauche” as nuances de uma consciência tremendamente irônica dos acontecimentos diários e das relações surdas e controvertidas entre os homens. Essa consciência irônica e à sua maneira humana, histórica e política, envolve fortemente a capacidade de fazer rir, de rir tanto de si como dos outros. O anjo torto que diz “Vai, Carlos! ser gauche na vida”, na época do “suposto nascimento” do poeta – pois que oscilante entre a sua realização unilateral em poema e o ritual comum à normalidade dos nascimentos –, será o mesmo que o abandonará com os requintes do Deus castroalvino. Mas ele ficará ainda com a leveza e a vastidão do seu coração, com uma cota de esperança que aos poucos se suavizará e declinará, com o tempo sendo substituída por uma forma geral de ver o mundo discreta, porém descrente e desvestida de ilusões.

Essa perspectiva irá inverter-se bruscamente em “O malvindo”, no qual demonstrará um profundo e irado desgosto, emparelhado a um duro e amargo ceticismo. A iminência da destruição total do corpo, a fatalidade inelutável da vida se extinguindo, mais a inutilidade de um passado vivido ou um futuro inexistente, encontram eco nestes versos: “Inútil corpo, alma inútil/ se não transfunde alegria/ e esperança de renovo/ no universo fatigado/ em que repousa e não ousa./ Sua ficha foi rasgada,/ por ausência de sinais./ Seu nome – por que sabê-lo? E sua vida completa/ já nem é vida, é jamais”.

Se no “Poema de sete faces” ele situa-se sob uma malha temática que envolve a memória da província e da família, as poucas relações de amizade que serão cultivadas permanentemente, o seu remover-se ante um urbanismo não tão ostensivo quanto o de hoje, em “O malvindo” fica patente um balanço final e melancólico do que foi a sua experiência de poeta, funcionário público e jornalista, além de marido, pai e amante, tendo como saldo apenas a certeza de uma morte que rondava bem perto, como nos versos iniciais: “Vive dando cabeçada./ Navegou mares errados,/ perdeu tudo que não tinha,/ amou a mulher difícil,/ ama torto cada vez/ e ama sempre, desfalcado,/ com o punhal atravessado/ na garganta ensandecida”.

O “Poema de sete faces” suscitou outra colocação de evidente interesse aqui, do escritor e crítico Silviano Santiago, no “Posfácio” a Farewell: “Sua última coleção de poemas, planejjada enquanto em vida (...), abre sintomaticamente com um texto que contradiz o mais antigo poema publicado em livro: ‘Unidade’”. Transitando pela via do confronto e da colisão verificada preferencialmente no feitio conteudístico e na escolha da voz que se ensejará em cada poema, à maneira de apreensão do dito como uma espécie de fixação do sujeito da fala, no “Poema de sete faces” constata-se uma maior ocorrência do sujeito que fala de si, ainda quando referir-se em terceira pessoa a um “homem” que continua sendo ele mesmo. Este efeito não cessará, nem com a inserção da extensão “gente”, atrelada e puxada por um “eu” que abre a confissão ingênuo-coloquial da última estrofe: “Eu não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo”.

Em “Unidade” – o único poema que, segundo a vontade de Drummond, destoará da ordem alfabética de Farewell – há um “nós” que intenta solidarizar-se na luta contra a destruição dos seres e elementos naturais, tanto em sua relativa mobilidade de “plantas” e sensibilidade de “flor”, como na sua imóvel e impotente dureza de “pedra”. Tais elementos humanizam-se no cerne de um sofrimento universal, como seres-objetos indispensáveis à compreensão da realidade do mundo, que sem eles não poderia ser dita, vivida ou escrita pelo poeta.

Estão ali, talvez, apenas para evidenciar e após deixar intocada uma contradição aflorante e recorrente, e de certo modo insolúvel, pela impossibilidade de inclusão de um novo “nós” de representação e caracteres humanos na inevitabilidade e consecução desse sofrimento. Um “nós” que assim não retém o privilégio de banhar-se no misterioso rio do sofrimento, que não possui a percepção nem “a chave da unidade do mundo”, porque demonstra-se em alguma medida incapacitado e impermeável à dor que se manifesta naqueles elementos e serres naturais: “Não temos nós, animais,/ sequer o privilégio de sofrer”.

No seu confessar-se enviesado, no entanto sustentado por ímpar e surpreendente eficácia, Drummond praticamente esgotou as formas de dizer as vivências cotidianas do homem brasileiro contemporâneo e multifacetado, que com frequência se reconhece nessa poesia. Uma firme e alta sintonia a um presente no qual a vida não permite tréguas, inseparável do instante vivido ou a viver, talvez o levasse a relutar entre os foros oponentes de uma entrega total ao amor e o afastamento deliberado ou forçado dos seus des/semelhantes. O poeta, que em certos instantes, reprimia-se e esquivava-se, poderia seguir também se doando por inteiro a esse amor tão insistentemente cantado em momentos definidores e solidários da obra. Ou em livros mais específicos do enlace amoroso como Corpo (1984), Amar se aprende amando (1985).

O Amor natural, de publicação póstuma em 1992, todavia já conhecido de uns poucos em 1981, e com poemas editados em revistas de nu feminino da década de 1970, é o mais eroticamente explosivo deles. Contém uma fruição amorosa radical que parece desmitificar um Drummond resguardado enfaticamente da ambiência externa e da constância de contatos humanos mais dilatados no recato de uma propalada e invencível timidez, como um quase fechar-se ao mundo circundante.

Com a exposição pública através do exercício continuado da crônica em jornais e do acompanhamento direto da edição de seus mais de quarenta livros, no Brasil e em traduções estrangeiras, em coleções, reuniões ou antologias, ele não deixará de desfrutar, ao longo de quase sete décadas de poesia, a partir de uma conquista paulatina e paciente, da atenção e do alcance de um público significativo e fiel. Em contrapartida, logrará contemplar seus leitores com o fundamental da obra publicado enquanto vivo.

Numa linhagem de grandes poetas brasileiros, Drummond empenhou-se, no decurso de toda uma vida impulsionada por um estado permanente e privilegiado de poesia, em recompor os efeitos, comoções e premissas de uma solidão imponderável, aos transplantar para o poético imagens e vivências sociais do coletivo, com a coragem de dividir e expor tanto o mais rasteiro e poeticamente óbvio, como o mais raro e insuspeitado.

Suplemento Cultural (CEPE), ano XV, novembro de 2000

Um comentário:

  1. oi luiz tudo bem fico feliz de ve seu blog cheio de poesias tao lindas tenho orgulho de ser sua prima um grande abraço
    cicera rodrigues de aquino

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