domingo, 9 de janeiro de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XLIV

ESCRITOR MERGULHADO NO OFÍCIO

Escrever, escrever, escrever: eis a sua fixação e o seu objetivo. Cogita o escritor que não produz de modo contumaz ficção, mas não exclui a possibilidade de desarquivar o que já pensou e ensaiou nesse ramo da prosa em outras e raras ocasiões. Escreve, sim, em maior ocorrência poemas caracterizados pela estranheza causada nos leitores possíveis que creem no seu talento e no seu exercício diário com a palavra.

Recusa-se a escrever poesia em instantes diversos de sua vida, embora nunca haja conseguido deixar de escrevê-la totalmente. Atitude que não representa nenhuma vantagem para o duende da vida prática, que resulta desvirtuado e tateante feito cego em tiroteio. Entretanto, ao escrever mais poesia e crítica do que prosa ficcional, isso não diminui em nada a sua condição de escritor. Sabe que é apenas um a mais entre tantos autores e autoras existentes mundo afora. Aliás, seu ofício diário inclui a leitura desbragada e reflexiva e a escrita em bem menor voracidade.

Não empresta importância ao desempenho ambíguo que conduz à fama rápida e a vendagens em massa, majorado em reconhecimento efêmero e posterior desaparecimento. Não descarta o mergulho nas águas escuras, rasas e superficiais do anonimato. Nem teme também lançar-se nas ondas profundas, serenas e propiciadoras da solidão necessária para ler e escrever. E assim vem fazendo desde menino ainda e na juventude recente, e continuará a fazê-lo na atual e futura maturidade.

Acredita ser altamente recomendável praticar a busca de um sentido ético para a vida no mundo, que tem como consequência direta um lastro histórico e vivencial permeado de renúncias e intervenções. Detesta a covardia, a malícia, a traição e a inveja quais sentimentos reprováveis, espúrios e destrutivos. Dos seus tempos de estudante do ensino médio e universitário, quando militante no Movimento Estudantil, recorda a forte propensão para o debate e a conversa de grupo, a convivência com o diálogo da conciliação ou o manuseio das sementes da divergência. A política profissional em dias posteriores reaquece o fogo da experiência pública in loco na extensão verde litorânea e canavieira. Estende seus elos aos longes de um sertão mágico, violento e ancestral, que há muito vem se desvestindo de raízes, costumes e leis próprias. Compreende a tempo que tais políticas localistas reavivam seus dons e falácias de musas microrregionais ambíguas, impiedosas e inglórias.

A sua preferência nos encontros e embates inclina-se em maior proporção ao ouvir do que ao falar. Mas não nega, à sua maneira discreta ou exaltada, sempre que os eventos e as circunstâncias permitam ou exijam, a manifestação da própria fala. E destila, com o devido cuidado, mesmo que a rapidez o constranja, para apreciação dos outros circunstantes, seu discurso individual de signos e sons bem ou mal articulados em oralidade e escrita no espaço-tempo multidimensional. Referenda que debater ou discutir coisas é das atitudes humanas mais antigas e civilizadas, ainda que descambe, em numerosos casos e oportunidades, para uma agressividade indesejada. Intenta manter certa cota de serenidade nas conversas coletivas, o que demonstra que ninguém deve pensar a priori nos diálogos e embates de origens e intencionalidades diversificadas como atrito ou confusão.

No âmbito da prosa, rabisca textos de variada tendência. A crônica, o diário, a carta. O esboço biográfico, o recorte autobiográfico e o texto de historiografia, além da opinião jornalística. Contudo, vincula-se principalmente à análise e à crítica literária, sem renegar o ensaio de configuração literária heterodoxa em suas diferenciadas modalidades culturais. Pela literatura não se arrepende de ter deixado uma carreira técnica promissora para navegar nas águas incertas do ensino e do serviço público.

Em algum tempo de sua vida, trata de elaborar uma dissertação de mestrado fugindo um pouco ao viés acadêmico consolidado. Durante uma década e meia sua militância na crítica literária em suplementos, revistas e jornais, encontra-o sempre às voltas com livros alheios, a fim de contribuir, de algum modo, para o esclarecimento de determinada obra ou conjunto de obras de uma época. Produz boa quantidade de textos ajustados a uma interpretação literária e contextualizada das obras que chegam a suas mãos, sem apropriar-se da essência do trabalho estético dos autores lidos e estudados em termos de imitação ou rapina.

Mesmo que sua atividade crítica tenha sido acusada de fria, cerebral e dissecadora dos corpos e elementos apodrecidos e empobrecedores da escrita, continua a privilegiar a impessoalidade como uma virtude tão vã e banal quanto o uso egocêntrico em primeira pessoa ou o precário coletivo em terceira. Não se mostra hipócrita ao extremo de não pretender fazer aflorar minimamente que seja seu esforço literário nos meandros estético-formais de linguagem, palavra e signo.

Observa que quem assim não age, quem não aperfeiçoa o que realiza, trabalha contra si mesmo e deve cuidar de esboçar apenas relatórios, gráficos e projetos. Não se associa radicalmente a formas tecnicistas que gozam de uma grande reputação entre os remanescentes de estruturalistas, formalistas, lógicos, construtores, matemáticos, racionalistas, arquitetos e concretistas. Também não cede à hipnose das formas excessivamente impressionistas que, de outro lado, levam a uma opção pela crítica unilateralmente devedora do gosto pessoal, se bem que realizada com mestria e competência em seus moldes europeus e nos momentos elevados dos derivativos brasileiros.

Para o bem ou para o mal, dispondo de pouca ou relativa divulgação, considera-se um escritor. Mesmo falando no escuro ou pregando no deserto, não abre mão da sua condição de amante zeloso e aficionado dos livros e da produção cultural, intelectual e artística que ensejam. E por isso rejeita todo o amadorismo em literatura, a começar pelos erros crassos, abusivos e imperdoáveis de quem não tem intimidade com a escrita. Termina por concluir que o escritor é alguém que pode, voluntariamente ou não, despertar o olhar enviesado e traiçoeiro da inveja. A sua ligação e fidelidade à literatura logra incomodar aqueles que não se dedicam com exclusividade a essa tão exigente senhora.

No redemoinho da criação e da vida literária, defende que o escritor jamais deve adquirir ares de importância que efetivamente não tenha. Imagina que o que determinado grupo de leitores pensa de um autor só raramente vem à tona. Para depois constatar que tal confraria de leitores não identificados fica abstraída de todo o processo criativo, preferindo conferir à distância relances da vida daquele a quem admira e a desfrutar a sua obra já acabada e impressa, sem estabelecer relações de proximidade com o seu autor. Alguns leitores apostam no que ele faz e como o faz, isto é, com a possível honestidade intelectual e aquele sentido ético exigido para que alguém adentre o campo minado, altamente elastecido e ramificado da literatura. E assim tem como metas presentes e futuras trabalhar a escrita com entusiasmo e dedicação, consciência social e estética, além de humildade nas atitudes e ações individuais.

(Recife, janeiro de 2011)

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