sexta-feira, 1 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXIII

TRÊS EUS DA MESMA POESIA

Tríade é um livro que expõe o estranhamento de quem se reparte em heterônimos e fragmenta a própria poesia. Raimundo de Moraes assume em seus versos, além do próprio nome civil de cidadão e jornalista, dois outros, sustentados na espera elastecida da profana e mítica Semíramis e na performance hedonista homoerótica de Aymmar Rodriguéz. Não se configura em texto para amadores ou puristas, pela crueza e nudez de suas colocações, ideias e atitudes que daí se geram e ramificam.

Editado sob o patrocínio do Funcultura, amplia o conceito de diversidade e abertura para temas mais espinhosos e transgressivos que, num passado recente, seriam impossíveis de aprovação. É um fato que hoje, quando afastados os ventos nefastos da Inquisição e a navalha afiada da censura, ninguém mais precisa se esconder sob o recurso da alcunha ou do pseudônimo, do apelido familiar ou do batismo clandestino. Mas, neste caso de Moraes, existem revelações que ele somente pode fazer com aajuda de mais dois poetas que coexistem na sua persona.

A ousadia da proposta lembra os ritos pessoanos de se perder e reinventar em outras facetas, fruições e compulsões, lembrando embora as grandes e devidas diferenças entre ambos, de época e país, genialidade e talento, extensão das obras e modos de expressão. A partir da tripartição encetada, Raimundo de Moraes aposta sem hesitar na anulação de recatos e pudores para dizer o que lhe interessa. Coisa inimaginável para os guardiões do moralismo da espécie mais conservadora. E assim, desatam-se vivências subterrâneas e tribais de sexualidade radical principalmente.

Se há algo que une os três poetas, manifesta-se no estilo e na maneira de escrever que se identificam a partir dos sentidos, palavras e dicção comuns. Raimundo de Moraes é mais sóbrio e contido quanto a gostos exóticos e predileções sexuais. Aymmar Rodriguéz se mostra como aquele que não pretende esconder o que lhe vai no corpo e na alma, na pele e nos desejos e práticas rasgadas e desviantes, para ele, sempre confessáveis. Semíramis, a mulher que se debate entre a resignação e a rebeldia, sufoca as longas ausências do amado com o fogo multiplicado da poesia, a partir da presença de outras poetisas no lastro simbolista obscuro de vivências que dialogam no intertexto. A conjunção heteronímica que aqui se constata faz aflorar a novidade e inteligência de uma poesia tríplice e que merece ser lida com olhos bem abertos e atenção redobrada.
 
Diario de Pernambuco, 1 de abril de 2011

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