segunda-feira, 25 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXX

UMA CRÔNICA DE ANTÔNIO MARIA

MAIO E MÃE, MÃE E MAIO

Os ofícios de maio, na casa-grande do engenho, começavam, ao escurecer, depois que todos se reuniam. Todos eram as moças da família de banho tomado, os cabelos molhados, escorridos, cheirando a sândalo. Eram as criadas. Eram as mulheres dos trabalhadores do eito, com as cabeças cobertas e os pés descalços. Vinham de longe, atravessando os brejos, subindo e descendo ladeiras. Chovia, em maio. As mulheres menos pobres tinham sapatos, mas traziam na mão, porque “pé estraga muito o sapato”. Não era importante calçar o sapato. Tê-lo, sim. Significava que a dona já era uma pessoa de certo trato.

Todas, com a cabeça coberta, se acomodavam num banco de madeira, ao fundo do “quarto dos santos”.

Entrava, então, “a senhora do engenho”, com a fita vermelha do Apostolado da Oração, uma mantilha negra, de rendas. O “Adoremu”, na mão. Atrás dela, uma música lenta, majestosa, que não se ouvia, mas se sentia e era tão real, aquela música, que alguns a viam. Todos se punham de pé. E o tempo, se não parava, ficava mais demorado, enquanto a senhora se acomodava no genuflexório, fitava súplice os olhos de Maria e, abrindo o livro, desenhava e dizia em nome do “Padre”. Aí, então, o tempo retornava a marcha de antes.

O Santuário, de nogueira ou de jacarandá, continha as imagens de Maria e de sua mãe, a Senhora Sant’Ana. Jesus Cristo, vestido mas com o coração à mostra, bem no peito. A outra imagem era mais das vezes a de Santo Antônio, com o Menino Jesus na palma da mão. O santuário sobre a cômoda, coberta com a toalha de linho, bordada, onde se liam as letras VJMJ, em louvor à Sagrada Família.

Rezava-se o terço. Cada dezena de ave-marias precedida da enunciação de um mistério. Os Mistérios Gozosos. De cada mistério, um fruto. A humildade, por exemplo,. Seguia-se a ladainha e cada invocação era respondida com um “rogai por nós”:

               Santa Mãe de Deus
               Santa Virgem das virgens
               Mãe da Divina Graça...

Aí, embora não fosse sempre, podia-se rezar o Magnificat, cântico de Maria, ao receber a Anunciação. Uma das orações mais bonitas do culto à Virgem Santíssima: “Minh’alma engrandece ao Senhor e meu espírito exulta em Deus, meu salvador. Porque pôs os olhos em sua humilde serva, todas as gerações me chamarão bem-aventurada”.

O enlevo e a fé estão fluindo ali, aprisionados, naquele quarto de santos. As velas acesas. Havia os gestos das chamas, em sombras, nas paredes. As flores. Havia também os gestos das flores, que iam curvando as bordas dos jarros. Um gesto agônico, nem sempre compreendido. Havia os gestos e os cheiros, das flores e das velas. Então, se recitava o Ofício de Maria Santíssima: “Agora, lábios meus, dizei, anunciai...”. E vozes doloridas respondiam: “Os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus”. Mais adiante, as palavras se iam adensando e se tornavam grandiosas, fazendo um sentido vetusto: “Deus vos salve relógio, que andando atrasado”. E as vozes: “Serviu de sinal ao verbo Encarnado”.


In: Com vocês, Antônio Maria. Seleção de texto Alexandre Bertola. Rio de janeiro, Paz e Terra, 1994.

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