segunda-feira, 25 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXXI

UM POEMA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


CARTA

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

In: Andrade, Carlos Drummond de. Reunião -  10 livros de poesia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1980.

Notas Cotidianas e Literárias LXXX

UMA CRÔNICA DE ANTÔNIO MARIA

MAIO E MÃE, MÃE E MAIO

Os ofícios de maio, na casa-grande do engenho, começavam, ao escurecer, depois que todos se reuniam. Todos eram as moças da família de banho tomado, os cabelos molhados, escorridos, cheirando a sândalo. Eram as criadas. Eram as mulheres dos trabalhadores do eito, com as cabeças cobertas e os pés descalços. Vinham de longe, atravessando os brejos, subindo e descendo ladeiras. Chovia, em maio. As mulheres menos pobres tinham sapatos, mas traziam na mão, porque “pé estraga muito o sapato”. Não era importante calçar o sapato. Tê-lo, sim. Significava que a dona já era uma pessoa de certo trato.

Todas, com a cabeça coberta, se acomodavam num banco de madeira, ao fundo do “quarto dos santos”.

Entrava, então, “a senhora do engenho”, com a fita vermelha do Apostolado da Oração, uma mantilha negra, de rendas. O “Adoremu”, na mão. Atrás dela, uma música lenta, majestosa, que não se ouvia, mas se sentia e era tão real, aquela música, que alguns a viam. Todos se punham de pé. E o tempo, se não parava, ficava mais demorado, enquanto a senhora se acomodava no genuflexório, fitava súplice os olhos de Maria e, abrindo o livro, desenhava e dizia em nome do “Padre”. Aí, então, o tempo retornava a marcha de antes.

O Santuário, de nogueira ou de jacarandá, continha as imagens de Maria e de sua mãe, a Senhora Sant’Ana. Jesus Cristo, vestido mas com o coração à mostra, bem no peito. A outra imagem era mais das vezes a de Santo Antônio, com o Menino Jesus na palma da mão. O santuário sobre a cômoda, coberta com a toalha de linho, bordada, onde se liam as letras VJMJ, em louvor à Sagrada Família.

Rezava-se o terço. Cada dezena de ave-marias precedida da enunciação de um mistério. Os Mistérios Gozosos. De cada mistério, um fruto. A humildade, por exemplo,. Seguia-se a ladainha e cada invocação era respondida com um “rogai por nós”:

               Santa Mãe de Deus
               Santa Virgem das virgens
               Mãe da Divina Graça...

Aí, embora não fosse sempre, podia-se rezar o Magnificat, cântico de Maria, ao receber a Anunciação. Uma das orações mais bonitas do culto à Virgem Santíssima: “Minh’alma engrandece ao Senhor e meu espírito exulta em Deus, meu salvador. Porque pôs os olhos em sua humilde serva, todas as gerações me chamarão bem-aventurada”.

O enlevo e a fé estão fluindo ali, aprisionados, naquele quarto de santos. As velas acesas. Havia os gestos das chamas, em sombras, nas paredes. As flores. Havia também os gestos das flores, que iam curvando as bordas dos jarros. Um gesto agônico, nem sempre compreendido. Havia os gestos e os cheiros, das flores e das velas. Então, se recitava o Ofício de Maria Santíssima: “Agora, lábios meus, dizei, anunciai...”. E vozes doloridas respondiam: “Os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus”. Mais adiante, as palavras se iam adensando e se tornavam grandiosas, fazendo um sentido vetusto: “Deus vos salve relógio, que andando atrasado”. E as vozes: “Serviu de sinal ao verbo Encarnado”.


In: Com vocês, Antônio Maria. Seleção de texto Alexandre Bertola. Rio de janeiro, Paz e Terra, 1994.

domingo, 24 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXIX

A LEITURA DO MUNDO PRECEDE A
LEITURA DA PALAVRA

                                                                          Natanael Lima Jr*

Resenha crítica baseada na obra de Paulo Freire, A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam.


A obra traça um painel onde demonstra que a prática da leitura do mundo e da palavra estimula o leitor a pensar e refletir a realidade nua e crua à sua volta. São três artigos que se completam: "A importância do ato de ler"; "Alfabetização de adultos e bibliotecas populares: uma introdução"; "O povo diz a sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe".

No primeiro artigo o autor mostra que a leitura do mundo precede a leitura da palavra e propõe um novo modelo de alfabetização alicerçado nas palavras que expressam os diversos saberes oriundos do conhecimento adquirido ao longo da vida.

No segundo artigo, o autor trata da alfabetização de adultos e de bibliotecas populares, conjugando os referidos assuntos à importância da prática da leitura e sua compreensão da realidade. Afirma o autor que não há como negar a natureza política do processo educativo e nem o caráter educativo do ato político, fazer política é também um ato educativo.

No último artigo, o autor relata sua experiência na área da alfabetização de adultos na República Democrática de São Tomé e Príncipe. Descreve seu esforço em implantar um modelo de alfabetização politizado a serviço da reconstrução do país.

A prática da leitura não corresponde apenas a uma simples decodificação de símbolos, mas significa, de fato, interpretar e compreender o que se lê. A leitura precisa permitir que o leitor apreenda o sentido de texto, não podendo transformar-se em uma simples decodificação de signos linguísticos sem a compreensão semântica dos mesmos. Portanto, ressaltamos a necessidade do conhecimento prévio de mundo para compreensão da leitura, o qual pode inferir o caráter subjetivo que essa atividade assume.

Segundo o escritor Leonardo Boff, cada pessoa lê com os olhos que tem e interpreta onde os pés pisam. Para compreender o que alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma reeleitura.

A obra resenhada leva-nos à compreensão da prática democrática e crítica da leitura de mundo e da palavra, mostra-nos que a leitura não deve ser memorizada como um ato mecânico qualquer, ela deve ser desafiadora e que nos ajude a refletir e analisar a realidade que nos cerca.

Dessa forma, consideramos de fundamental importância a leitura da obra, no sentido de podermos rever nossa prática da leitura de mundo e começarmos a avaliar que, a importância do ato de ler, não está na compreensão equivocada de que ler é apenas devorar livros, sem realmente serem lidos e compreendidos. Trata-se, sem dúvida, de uma obra exemplar e esclarecedora sobre a importância da leitura para a conquista da autonomia e da liberdade em todos os sentidos e, principalmente, para a formação de cidadãos críticos e conscientes.

*Natanael Lima Jr é professor, poeta, membro da Academia Cabense de Letras e da Academia de Estudos Literários e Linguísticos de Anápolis – GO. Atualmente é Assessor de Relações Públicas da Prefeitura do Jaboatão dos Guararapes – PE.
natanaeljr12@hotmail.com

sábado, 23 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXVIII

A VIDA E O TEXTO

Moacyr Scliar antecipou-se a seus possíveis antologistas, críticos e biógrafos com a escrita de um novo livro de título O Texto, Ou: A Vida – Uma Trajetória Literária. De descendência judaica, mas nascido em Porto Alegre, passou boa parte de sua vida no bairro do Bom Fim, ele é, sem dúvida, um dos escritores de maior relevância do Brasil de agora. Sua idade corresponde praticamente à quantidade de livros que publicou, pois ambas se situam na circunvizinhança dos 70. Assim, torna-se bastante difícil contextualizar um autor que guarda uma produção literária dessa dimensão, que se inicia com o malogro de Histórias de um Médico em Formação (1962), manifestação literária imatura das histórias e experiências de um estudante de medicina, até acertar em 1968, no próximo livro, que ele considera deveras sua primeira obra, com os contos de O Carnaval dos Animais. Bem recebido pela crítica, pois trabalhado nos moldes do realismo fantástico aliado a um viés ideológico típico da década de 60, revela o escritor em pleno processo de amadurecimento. Mais à frente, nas próximas décadas, aparecem romances como A Guerra no Bom Fim (1972), sobre a repercussão da Segunda Guerra Mundial no bairro em que o autor foi criado e O Centauro no Jardim (1980), que tem como protagonista um menino metade homem metade cavalo, a mostrar o filho do imigrante judeu repartido culturalmente entre a influência do convívio familiar e a vida externa que, de algum modo, entra em choque com a cultura originária do seu povo.

Em A Majestade do Xingu (1997), Scliar traça o roteiro biográfico do médico e indianista Noel Nutels (1913-1973), que fez seu curso no Recife e depois foi para o Rio de Janeiro. Convocado para fazer parte de uma expedição ao Xingu, Nutels passou a dar assistência médica aos indígenas. Nos seus primeiros contatos, uma prova de fogo se faz urgente, que é curar uma indiazinha que agonizava, ação que tem desfecho surpreendente: “Noel termina de preparar a solução. Num rápido movimento, aplica a injeção no braço da indiazinha. A picada da agulha arranca-a ao torpor: com inesperada fúria, agarra a mão do médico – e a morde com vontade. Os índios riem. Não lhes desagrada ver um branco assustado, mas não é só isso, estão aliviados, felizes. (...) Quando, ao raiar do dia, vê que ela começa a melhorar, sente-se invadido por uma onda de júbilo e alívio. Sai da oca, espreguiça-se, olha ao redor a magnífica paisagem, a floresta, o majestoso Xingu; já é parte daquela paisagem, ele. Aquele é o seu cenário”.

Para quem escreve de um modo “prolífico” feito Scliar, que contabiliza ainda no conjunto da obra livros de ensaios e crônicas, e mais de vinte títulos de ficção infanto-juvenil, deve-se admitir e esperar que um ou outro destes volumes possa vir a decair um pouco na questão da qualidade literária. Pois não há como evitar a saturação formal e temática, sendo quase impossível evitar também a repetição de clichês ou lugares-comuns já existentes em trabalhos anteriores. Seja como for, o seu reconhecimento como autor de primeira categoria é assunto fechado. Nos cinco capítulos deste O Texto, Ou: A Vida, Scliar destrincha a sua atividade literária de décadas em paralelo com a medicina, uma servindo de suporte e influência à outra. Outra vertente de óbvia relevância para a trajetória literária vivida é a sua condição judaica e, em conseqüência, a sua ligação com a Bíblia e muito de suas histórias, parábolas e temas. Em vários textos ensaísticos ou ficcionais, ele aborda a medicina pública brasileira e a imigração judaica com a chegada, a acomodação e a sobrevivência dos judeus no Brasil. Trabalhos a que pouca gente tem acesso são trazidos a lume, inclusive um texto longo como Os Contistas, que retrata, com humor desabrido e ferino, a imensa e exótica fauna de contistas a quem o autor imprime vida e movimento, reunidos num lançamento de livro. Texto que poderia ser aplicado também, guardadas as diferenças de gênero, à imensa quantidade de pretensos ou, mais raramente, autênticos poetas que vagam por aí, bons e maus artistas do verso, vivendo no campo ou na cidade. Este trecho de Os Contistas reflete bem o clima do texto, de gozação, ironia e sátira explícitas: “O contista Morais parou de escrever para cultivar rosas, o contista Ymai para ser terrorista. O contista Murilo não deixou totalmente a literatura: abriu uma escola de escritores por correspondência. ‘Em um mês você estará escrevendo tão bem quanto Guimarães Rosa’, garante, em prospectos. O contista Feijó tinha seus contos sistematicamente recusados para publicação. Deixou os contos de lado, entrou no ramo de cereais e enriqueceu. Lançou, então, o Prêmio Literário Feijó, cujo regulamento estipulava que o conto vencedor passaria à propriedade do Grupo Feijó. De posse desse conto, Feijó rasgava-o, dizendo: ‘Este contista salvei de uma carreira de sofrimento’”.

Há uma passagem neste O Texto, Ou: A Vida de uma sagacidade e bom-humor implacáveis, que indica como o escritor é visto pelo homem comum, neste caso um vizinho, e vice-versa. “O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: ‘Descansando, senhor escritor?’ Ao que o escritor respondia: ‘Não, amigo, estou trabalhando’. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: ‘Trabalhando?’ ‘Não’, respondia o escritor, ‘descansando’.” E Moacyr arremata: “Uma ocupação que não parece trabalho mobiliza arcaicos sentimentos de culpa; afinal, e ao menos no Ocidente, ainda vivemos sob a influência do bíblico ‘ganharás o pão com o suor do teu rosto’”. Este questionamento já tinha aflorado, sob um ângulo bastante diferenciado, num livro anterior a este, Na Noite do Ventre, o Diamante (2005), a partir de uma conversa entre Spinoza e um discípulo seu, resumida adiante. Na Noite do Ventre, o Diamante foi escrito para a coleção “Cinco Dedos de Prosa”, da editora Objetiva, no qual Scliar construiu sua narrativa a partir de uma história sobre o dedo anular. O livro pode ser resumido dizendo-se que um diamante sai em estado bruto no século 17, época da Inquisição, de um arraial em Minas Gerais, passa pelo Rio e São Paulo, chega a países como a Holanda, Alemanha e Rússia, para voltar lapidado ao Brasil num anel da judia Esther Nussembaum. O diamante, ao mesmo tempo em que é valioso e mágico, leva os que o portam a caírem em desgraça. É o caso do menino Gregório, filho de Esther, forçado a engolir o diamante, ainda na Rússia, e que sofre, durante muito tempo, as conseqüências de tê-lo em seu ventre. Quando finalmente o operam, Gregório acorda e sonha com “anulares brotando do chão (...); um bando de anulares, uma coorte de anulares, um exército de anulares, uma multidão de anulares. Todos vindo em sua direção, todos convergindo para ele, todos ansiosos por mergulhar em suas vísceras, todos ansiosos pelo diamante que a noite do ventre – soma de todas as noites – engolira”. O livro exibe situações de aventura e mistério, além de personagens inesquecíveis como o padre Antonio Vieira, o filósofo Spinoza e o revolucionário Leon Trotsky. Num diálogo atribuído a Spinoza e seu discípulo Rafael Fonseca (que lapidou o famoso diamante, depois roubado por Diogo Moreino, um também discípulo de Spinoza), emerge, com muita lucidez, a separação entre o ato de escrever e uma atividade de sobrevivência. Rafael questiona o mestre acerca de sua necessidade de polir lentes e estudar óptica. Ao que Spinoza responde: “Em primeiro lugar, polir lentes é meu ganha-pão – filosofia, como já deves ter percebido, não dá sustento a ninguém. Depois, porque é trabalho manual. É importante usar as mãos, Rafael. Sobretudo no caso de pensadores, como nós. Usamos demais a cabeça, e isto acaba nos atrapalhando, nos distancia da realidade que afinal é uma coisa concreta, visível, audível, palpável, sobretudo palpável.” Aqui, percebe-se claramente como o escritor ou o pensador pode ter a necessidade de usar as mãos em atividades que não as que exigiriam apenas manusear a caneta, a máquina de datilografia (para muita gente, estas duas maneiras já em desuso na escrita de poesia ou prosa) ou o computador.

No último capítulo de O Texto, Ou: A Vida Scliar procura fazer uma retrospectiva do seu trabalho de escritor, desde a infância até os tempos atuais, das possíveis finalidades, objetivos e da própria razão de ser deste livro, de um modo implacavelmente realista: “Sim, a vela que, na infância, arde no bolo de aniversário é a mesma que enfeita o caixão. A vida passa; escrevendo, ou fazendo medicina, ou formando uma família, ou militando politicamente, ou trabalhando, ou bebendo – a vida passa. Chega um momento em que tudo que esperamos das velinhas é que elas iluminem, com sua tênue luz, o nosso passado e nos permitam extrair alguma conclusão de nossas trajetórias”. O começo de O Texto, Ou: A Vida indica que Scliar cresceu ouvindo histórias em casa e na rua, tendo lido também, segundo ele, “histórias de personagens que me emocionaram, me intrigaram, me encantaram, me assustaram – o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os Macabeus, os piratas, Emília, João Felpudo, Huck Finn (...)”. Estes mesmos personagens vão servir, circularmente, de fechamento ao livro: “Todos olham, em silêncio. Do ombro desse senhor, um pouco calvo, que, dizem, é autor de vários livros, mas que nesse momento é apenas o escritorzinho do bairro do Bom Fim contando sua história com a esperança de que as pessoas a acolham com um pouco de simpatia”. Exercício de modéstia e de reconhecimento das influências, familiares ou não, dos personagens e mitos, dos leitores anônimos ou especializados que o animaram e o fizeram prosseguir e contar aqui, com um bom-humor inteligente e necessário, sua “trajetória literária” percorrida até agora.

(Texto original. Publicado com modificações na revista Continente Multicultural, ano VII, nº 80, ago. 2007)

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXVII

JOÃO CABRAL E O POEMA "O ENGENHEIRO"

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) publicou no Rio de Janeiro, em 1945, um livro de poemas a que intitulou O engenheiro. Este livro instaurou uma ruptura na poesia brasileira feita até então, pela maneira como João Cabral passou a sugerir e reivindicar novas formas de se expressar em poesia. Tais formas incluíam tanto um sistema de rimas toantes (em tudo oposto ao que se usava tradicionalmente), somado a uma métrica embbasada na precisão e no rigor (embora não se abandonasse uma certa flexibilidade e abertura rítmica no poema), além de uma temática bastante voltada para a problematização ética e crítica das condições sociais e materiais da região nordestina.

A ruptura encetada por João Cabral aparece num contexto histórico-literário - referido aqui apenas de passagem -, coincidente com o término da Segunda Grande Guerra e com o surgimento da chamada geração de 45, com a qual o poeta mantinha uma ligação apenas cronológica. Ela propunha-se a encarar o poema como um "artefato", ensejava o combate ao modernismo da Semana de Arte de 22, e procurava distanciar-se dos poetas pertencentes à geração do segundo modernismo nos anos 30, a exemplo de um Carlos Drummond de Andrade, um Jorge de Lima, um Murilo Mendes, entre tantos outros.

No livro O engenheiro encontra-se um poema intitulado também "O engenheiro", que instiga à reflexão das novas atitudes éticas e perspectivas estéticas adotadas pelo poeta. O engenheiro para quem João Cabral escreve o poema é aquele que compre uma função social definida e consciente, que integra-se a valores éticos positivos, nos quais deveriam estar sensivelmente incluídos o amplo respeito ao indivíduo e ao ambiente e a prevenção de possíveis danos e devastações à natureza e à vida.

Nas duas primeiras estrofes, são apresentados os materiais de trabalho, o ambiente em transição e de construção onde ele se remove, os objetos componentes do seu sonho e o "mundo" sobre o qual ele reflete: "A luz, o sol, o ar livre/ envolvem o sonho do engenheiro.// O engenheiro sonha coisas claras:/ superfícies, tênis, um copo de água.// O lápis, o esquadro, o papel;/ o desenho, o  projeto, o número:/ o engenheiro pensa o mundo justo,/ mundo que nehum véu encobre".

A terceira estrofe, colocada entre parênteses, como  para estabelecer uma diferença formal e expressiva das outras três, moostra o acompanhamento da construção de um edifício pelo poeta, no seuu permanente interesse pelas coisas de ciência e tecnologia, ladeado por alguns de seus amigos engenheiros (Antônio Bezerra Baltar, Jooaquim Cardozo): "(Em certas tardes nós subíamos/ ao edifício. A cidade diária/ como um jornal que todos liam,/ ganhava um pulmão de  cimento e vidro)."

Na quarta e última estrofe, Cabral volta a nomear os agentes naturais que cercam o edifício e o solo em que ele se apoia, sem esquecer aqueles seres que dispendem o melhor de sua energia e esforço cotidiano para o soerguimento de tais estruturas na paisagem urbana, destinadas a fins os mais diversos: ""A água, o vento, a claridade/ de um lado o rio, no alto as nuvens/ situavam na natureza o edifício/ crescendo de suas forças simples".

Inédito, 1999   

terça-feira, 19 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXVI

UM POEMA DE SAMUCA (SAMUEL) SANTOS

“Poema frito na língua” leva a assinatura do poeta originário da geração independente Samuca (Samuel) Santos, e a cidade de Olinda como ambiência. Água, mangue, saúnas, aratus. Barcos, fumaça, caos. Sugestões desencontradas a quem se sente ofuscado pela paisagem viva na visagem da manhã, pelo inútil da criação que não cabe no silêncio que oprime e desconcerta o poeta.


da janela
maré enchendo
no mangue do quintal

saúnas festejam não-sei-o-que
aratus sobem nas cercas
os barcos, sábios
não dizem nada, balançam

e a manhã tem dois caminhos:
a espiral dos erros
as esquinas do caos
e um terceiro, inominável
e surdo, hermeticamente calado

não suporto esses dias
que começam com poemas assim

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXV

UM POEMA DE LARA DE LEMOS

Publicamos, nesta nota, o texto “Poema para o mundo”, de Lara de Lemos, poetisa gaúcha, falecida aos 87 anos, em 12 de dezembro de 2010, em Nova Friburgo, Rio de Janeiro. Editamos também um verbete sobre a sua vida, organizado por Rosane Saint-Denis Salomoni.

POEMA PARA O MUNDO

É certo que te amo.
É certo que palpito
em teus segredos diários
e me adivinho em dor
quando fores o mesmo
sem meu canto.

Moradora de mim,
habitando tão pouco onde existimos
ignorei os teus pretensos donos
e as sete chaves que te guardam
para uso exclusivo.
Preferi defender meu pequeno poema
ou calar
em covardias necessárias.

Porque te vi destruído em Hiroshima
é que te falo.
Porque vi teus peixes grávidos de morte,
tuas plantas calcinadas,
tuas crianças feridas,
teus vivos mutilados
e sobretudo porque me arrependo,
é que te falo.

Sofres sem opção.
Dividiram-te em pedaços desiguais,
tornaram-te em árido arquipélago
onde os abraços se fizeram ilhas.
Deram-te nomes diferentes
e em nome desses nomes
te destroem.

Mundo imenso, mundo nosso,
Mundo.

É preciso que protestes.
Teus mortos caminham deslembrados
e com olhos de outrora e de amor
te contemplam.
É preciso que fales.
E na voz dos sofridos,
dos poetas, dos puros,
digas tanto e tão alto,
que os homens, ferozes e ocupados,
escutem o teu grito
e sejas salvo.

In: Amálgama. Porto Alegre, Ed. Globo, 1976.


VIDA DE LARA DE LEMOS

Natural de Porto Alegre, Lara Fallabrino Sanz Chibelli de Lemos, foi criada pela avó em Caxias do Sul, tendo ficado órfã, de pai e de mãe, aos cinco anos de idade. Formou-se em História, Geografia, Pedagogia, Jornalismo e Direito, com especialização em Literatura Inglesa e Contemporânea pela Southern Methodist University, Usa. Atuou como professora, tradutora, poeta e jornalista, de forma intensa e combativa, sofrendo as conseqüências do regime militar imposto ao povo brasileiro em 1964, que a obrigou a interromper a carreira jornalística, tendo, inclusive, seu primeiro marido sido preso e, posteriormente, seus dois filhos.

Mudou-se para o Rio de Janeiro onde trabalhou em diversos setores do MEC, foi assistente do professor João Batista da Costa , titular da cadeira de Economia Política da Faculdade Cândido Mendes na mesma cidade. Participou de várias antologias sobre poetas modernistas, ganhou prêmios literários ( Prêmio Sagol ( 1957) pelo então inédito Poço das águas vivas, novamente premiado em 1990 com o Prêmio Nacional de Poesia Menotti del Picchia, do Instituto Nacional do Livro por sua obra Aura amara (1968)). Depois de aposentada fixou residência em Nova Friburgo, RJ.

Como contista estreou em 1955, na Revista do Globo ("Homem no bar" e "Mulher Só"). Na poesia, sua estréia foi com a obra Poço das águas vivas (1957), de características fortemente subjetivas, de indagações de si mesma, da busca do espaço e da individualidade de uma mulher. A partir de Canto breve (1962), volta-se para uma lírica de cunho social, de experimentação ( poema-processo), de investigação da palavra e da forma, que a determinam uma poeta de vanguarda consciente do seu fazer literário que diz: Escrevi sobre a areia/ não edifiquei sobre pedra./Sei, a rocha é eterna,/ breve meu poema. ( Transitório- em Águas da memória – 1990). Sua última produção é Dividendos do tempo, de 1995, em cuja apresentação, Maria da Glória Bordini ressalta: "Obra de uma poeta arredia, avessa à notoriedade, feliz associação de mulher política e lírica, este volume revisa uma carreira de 40 anos, inédita nas letras brasileiras."( Porto Alegre, LPM, 1995)

In: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/lara_vida.html.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXIV

Notas Cotidianas e Literárias LXXIII

TRÊS EUS DA MESMA POESIA

Tríade é um livro que expõe o estranhamento de quem se reparte em heterônimos e fragmenta a própria poesia. Raimundo de Moraes assume em seus versos, além do próprio nome civil de cidadão e jornalista, dois outros, sustentados na espera elastecida da profana e mítica Semíramis e na performance hedonista homoerótica de Aymmar Rodriguéz. Não se configura em texto para amadores ou puristas, pela crueza e nudez de suas colocações, ideias e atitudes que daí se geram e ramificam.

Editado sob o patrocínio do Funcultura, amplia o conceito de diversidade e abertura para temas mais espinhosos e transgressivos que, num passado recente, seriam impossíveis de aprovação. É um fato que hoje, quando afastados os ventos nefastos da Inquisição e a navalha afiada da censura, ninguém mais precisa se esconder sob o recurso da alcunha ou do pseudônimo, do apelido familiar ou do batismo clandestino. Mas, neste caso de Moraes, existem revelações que ele somente pode fazer com aajuda de mais dois poetas que coexistem na sua persona.

A ousadia da proposta lembra os ritos pessoanos de se perder e reinventar em outras facetas, fruições e compulsões, lembrando embora as grandes e devidas diferenças entre ambos, de época e país, genialidade e talento, extensão das obras e modos de expressão. A partir da tripartição encetada, Raimundo de Moraes aposta sem hesitar na anulação de recatos e pudores para dizer o que lhe interessa. Coisa inimaginável para os guardiões do moralismo da espécie mais conservadora. E assim, desatam-se vivências subterrâneas e tribais de sexualidade radical principalmente.

Se há algo que une os três poetas, manifesta-se no estilo e na maneira de escrever que se identificam a partir dos sentidos, palavras e dicção comuns. Raimundo de Moraes é mais sóbrio e contido quanto a gostos exóticos e predileções sexuais. Aymmar Rodriguéz se mostra como aquele que não pretende esconder o que lhe vai no corpo e na alma, na pele e nos desejos e práticas rasgadas e desviantes, para ele, sempre confessáveis. Semíramis, a mulher que se debate entre a resignação e a rebeldia, sufoca as longas ausências do amado com o fogo multiplicado da poesia, a partir da presença de outras poetisas no lastro simbolista obscuro de vivências que dialogam no intertexto. A conjunção heteronímica que aqui se constata faz aflorar a novidade e inteligência de uma poesia tríplice e que merece ser lida com olhos bem abertos e atenção redobrada.
 
Diario de Pernambuco, 1 de abril de 2011