domingo, 22 de maio de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXXVII




O FILHO ETERNO

Existem livros que no início se mostram densos, difíceis, desencorajadores e temporariamente impossíveis de leitura. Mas é preciso domar a fera, e isto só se faz com uma volta ao campo da luta. Não para derrotar ninguém ou espantar tigres invisíveis de papel, e sim para enfrentar algum tema mais absorvente, incômodo, extremado. O filho eterno, de Cristovão Tezza, como o título sugere, não é a versão clássica e idealizada do Cristo ao longo dos séculos. A experiência real de um pai escritor inominado com o filho Felipe portador de síndrome de Down é o mote do livro. O escritor, por mais que precise do tempo de que dispõe, e que ele intenta prolongar na escrita de obras sucessivas, flagra-se na condição de quem tem de dedicar quase todo aquele tempo ao menino doente. Considerado um dos melhores livros da década anterior (a 1ª edição é de 2007), de lá para cá os prêmios – e traduções – vêm se sucedendo, entre eles, Jabuti, Telecom, APCA, e o mais recente Charles Brisset, da Associação Francesa de Psiquiatria, pela tradução intitulada “Les fils du Printemps”.
Pai e filho, com a ajuda da mãe e de uma irmã que chega depois, vão formando laços inescapáveis e firmes para dinamizar o dia a dia, repartido entre exercícios, ensinamentos e estímulos visando à adaptação da criança ao mundo. Tudo isso exige o ludismo aplicado em pintura, teatro, jogos múltiplos, gestos que se repetem ao infinito, até o manuseio do computador. Somente no futebol Felipe desenvolverá a empatia maior que o vinculará à leitura a partir de nomes de times, jogadores e campeonatos. Uma ginástica mental de combinações diversas, mais oral do que escrita ou visual, incompreendida para os que estão de fora dos eventos de torcedores, juízes, técnicos e atletas com o auxílio de placas, camisas, jogadas marcantes e partidas finais. Assiste-se à transição de uma má vontade recorrente do pai para uma aceitação franca, uma afeição e integração que envolve uma espécie de dependência do sofrimento do filho.
O autor realiza uma exposição paralela de motivos e motivações de ser escritor, trazendo referências míticas e contemporâneas, tiradas filosóficas e irreverentes, lances autobiográficos a desvelar o processo lento de uma escrita a amadurecer na crise dos 30 e na virada dos 50 anos. A indisponibilidade estética e existencial, a resistência inicial de explicações diversas (de estreia a campo literário), feito negação renitente talvez, transforma-se em leitura inadiável e O filho eterno em texto de uma alta literatura a que se vai querer sempre voltar.

Inédito, 2011

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