sábado, 7 de maio de 2011

Notas Cotidianas e Literárias LXXXV

ENEIDA

O poema épico virgiliano Eneida, na tradução do maranhense Odorico Mendes, aparece um século e meio depois da primeira edição, publicada por ele em Paris. Da colaboração entre a editora da Unicamp e o Ateliê Editorial resultou um trabalho impecável, tanto graficamente quanto em relação à configuração final do texto, acrescido de novas notas e de um glossário por Luiz Alberto Machado Cabral, além da apresentação de Antonio Medina Rodrigues. Esta tradução tem como principal característica, já observada pelos contemporâneos de Odorico Mendes, o sistema de inversões sintáticas realizadas no texto. A isto, pode ser acrescido um preciosismo de linguagem como efeito retórico corrente em muitos autores do século 19. Constata-se, entretanto, que tal efeito não diminui a agilidade e a precisão com que verteu o poema. Tudo fica mais difícil quando se observa que não há termos rígidos de comparação ou correspondência entre a métrica latina e a portuguesa, pois na primeira todas as sílabas contam na concepção dos hexâmetros, enquanto que na segunda a última sílaba é, freqüentemente, muda. 

A saga de Enéias, que sobrevive a Tróia incendiada, fugindo com seus navios e guerreiros pelo Mediterrâneo, levando o pai Anquises e o filho Ascânio para fundar a nova terra romana, é narrada em doze cantos. A época de escrita da Eneida situa-se no intervalo entre 29 e 19 a.C., durante o reinado de César Augusto, que promoveu a paz romana depois do assassinato de Júlio César. Natural de Andes, lugar próximo a Mântua, Públio Virgílio Maro (70-19 a.C.) teve como protetores o imperador Augusto e Mecenas, que deram condições para que ele estudasse e vivesse sem trabalhar enquanto elaborava seus versos. Torna-se um poeta da corte, passando a seguir em sua poesia algumas sugestões destes poderosos seus amigos. Anteriormente à Eneida, Virgílio escrevera duas outras obras que passaram à posteridade como reconhecidamente suas, as Bucólicas e as Geórgicas. As Bucólicas, com dez poemas escritos na terra natal do poeta retratam a vida pastoril e as disputas entre pastores na arte de improvisar versos, tendo como influência geral o poeta grego Teócrito, tido como inventor do gênero. Nos quatro livros das Geórgicas, são encontradas orientações para a agricultura, incluindo um calendário de plantio e colheita para os camponeses, sinais para a identificação do tempo, segredos do cultivo das árvores, da criação de gado e da apicultura.

Um momento marcante do lirismo virgiliano na Eneida mostra-se como o encontro entre Enéias e Dido, rainha também exilada e que estava a construir Cartago. Dido se apaixona pelo príncipe troiano, o que terminará tragicamente, pois o obstinado Enéias sacrifica tudo à idéia da fundação de Roma. O livro IV relata o episódio do suicídio e das lamentações da rainha, o seu diálogo fúnebre, pungente e dilacerado com a irmã Ana: “Já traspassada, em veias cria a chaga,/ E se fina a rainha em cego fogo./ O alto valor do herói, sua alta origem/ Revolve; estampou n’alma o gesto e as falas;/ Do cuidado não dorme, não sossega./ A alva espanca do pólo a noite lenta,/ Lustrando o mundo a lâmpada febéia;/ Louca à irmã confidente então se explica:/ ‘Suspensa que visões, Ana, me aterram?/ Que hóspede novo aporta às nossas plagas?/ Quão gentil parecer! que ações! que esforço!/ Creio, nem creio em vão, provém dos deuses./ Temor vileza argúi. Dos fados jogo,/ Ai! que exaustas batalhas decantava!’’’. Mais à frente, Dido pragueja contra a paixão em que acreditou, contra o destino e o desventurado Enéias, agora visto em distanciamento e blasfêmia: “Mas engula-me o abismo, antes me arroje/ Do Onipotente um raio às sombras fundas,/ Pálidas sombras do enoitado inferno,/ Que eu te viole, ó Pudor, e as leis te infrinja:/ Quem a si conjuntou-me e a flor colheu-me,/ Consigo minha fé sepulto guarde”. A perda mostra-se demasiado incisiva, fazendo o percurso do amor até a morte, em nome de um dever e de uma piedade que eram os sentimentos mais fortes do guerreiro troiano, interlocutor de Júpiter junto aos homens.

O texto virgiliano inverte a ordem dos poemas de Homero: a primeira parte (seis primeiros livros) mantém similaridades com a Odisséia, onde o herói volta para casa (que será futuramente a Itália), saindo de Tróia, passando por Creta e pela Sicília e chegando a Cartago; a segunda, liga-se diretamente à Ilíada, com a narração de numerosas mortes, aventuras e sofrimentos causados pela guerra.  No canto XII, Enéias pretende poupar a vida de Turno, rei dos rútulos e seu maior desafeto, mas quando vê os despojos de Palante, troiano ainda jovem a quem seu inimigo matara, não hesita em executar sua vingança: “No peito aqui lhe esconde o iroso ferro:/ Gelo solve-lhe os órgãos, e num gemido/ A alma indignada se afundou nas sombras”. Nestes versos finais, Enéias cumpre a sua missão e sela o seu destino.

Do ponto de vista expressivo, percebe-se que Virgílio inaugurou, há vinte séculos, o processo poético da imitação, quando se apropriou dos temas e do verso heróico, simétrico e cesurado de Homero. Com o passar do tempo, a Eneida vai se transformando na epopéia do povo latino e a genialidade virgiliana vai também sendo reconhecida. Ele introduziu no poema, em meio às solicitações de Mecenas e Augusto, a sua verve e criatividade, fazendo prevalecer o seu modo de escrever pessoal, embora não desse o texto por acabado quando já estava próximo da morte. O mérito inestimável de seus protetores foi não ter deixado que os versos da Eneida fossem destruídos, como recomendado pelo poeta. 


In: Continente Multicultural, ano V, nº 59, nov. 2005.

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